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A indústria do açúcar cancelou um estudo de 50 anos atrás que sugeria um vínculo com câncer

Eliminar qualquer associação entre o açúcar e doenças era um objetivo importante para as empresas da época. A solução foi mudar o foco do debate científico para outro problema: a gordura.
Crédito: Ruth Bushi / EyeEm

Há aproximadamente 50 anos, pesquisadores deram início a um estudo para examinar como uma dieta rica em açúcares afetava a flora intestinal de ratos. O estudo era financiado por um grupo comercial da indústria do açúcar e, como seus resultados associaram a dieta rica em açúcar a doenças cardíacas e câncer de bexiga, o grupo encerrou o projeto. Esse estudo nunca foi concluído; seus primeiros resultados nunca foram publicados, contudo, eles foram descobertos em arquivos recentemente.

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Isso é o que afirma um artigo publicado na revista de acesso livre PLOS Biology. Aproveitand0-se de documentos internos da Fundação Internacional para Pesquisa sobre o Açúcar (ISRF, na sigla em inglês), os autores Cristin Kearns, Dorie Apollonio e Stanton Glantz, da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos EUA, descreveram um estudo com ratos conhecido como Projeto 259. Para esse projeto, um pesquisador chamado W.R.F. Pover, da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, planejou comparar dois grupos de ratos: um grupo alimentado com uma dieta rica em sacarose, ou açúcar branco, e o outro grupo consumia amido.

Na época, os cientistas não entraram em um consenso a respeito da possibilidade de o açúcar elevar os triglicerídeos, um tipo de gordura no sangue; níveis altos de triglicerídeos estão associados com maior risco de doenças cardíacas. Os primeiros resultados do Projeto 259, conforme observado pela ISRF em um resumo interno, apresentou “uma das primeiras demonstrações de uma diferença biológica entre os ratos alimentados com sacarose dos alimentados com amido”. Ele sugeria que uma dieta rica em açúcares poderia ter efeitos mensuráveis e nada bons. Em particular, ele sugeria que, sim, uma dieta rica em açúcares pode elevar os triglicerídeos, aumentando o risco de doenças cardíacas.

Contudo, eliminar qualquer associação entre o açúcar e doenças cardíacas era um objetivo importante para a indústria do açúcar na época: Kearns e seus colegas já utilizaram documentos de predecessores da ISRF, a Fundação para Pesquisa sobre o Açúcar, para mostrar como a organização reuniu estudos financiados pela indústria a fim de mudar o foco da causa de doenças cardíacas para a gordura, em vez do açúcar, em 1967. No ano seguinte, o Projeto 259 começou.

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Quando a ISRF recebeu os resultados sobre os triglicerídeos, ela cortou o financiamento do projeto, deixando o estudo inacabado e sem publicar seus resultados. Os autores do novo artigo argumentam que a dissolução do estudo serviu como propósito da ISRF para manter a imagem do açúcar imaculada, sem associações com doenças cardiovasculares.

Isso também significou que um resultado preocupante dos estudos com ratos – a associação entre o açúcar e câncer de bexiga – permaneceu desconhecido. Os autores argumentam que essa associação deveria ser retomada hoje. Apenas um ano mais tarde, a Associação do Açúcar, nome atual do grupo comercial da referida indústria, afirmou que “nenhum vínculo confiável foi estabelecido entre o açúcar ingerido e o câncer”.

De acordo com os autores do artigo, o Projeto 259 é só uma parte de um padrão muito maior. “O objetivo deles era mudar o foco do debate científico a respeito do problema – e eles fizeram um ótimo trabalho”, conta Stanton Glantz, professor do Instituto Philip Lee Philip R. Lee para Estudos de Políticas de Saúde, e coautor do estudo.

O artigo também ressalta o grande problema das pesquisas patrocinadas pelas indústrias. “Acredito que o ponto mais importante dessa história é que a indústria do açúcar se recusou a financiar uma pesquisa que corria o risco de se mostrar desfavorável para ela”, fala Marion Nestle, professora emérita Paulette Goddard de Nutrição, Estudos Alimentares e Políticas de Saúde, da Universidade de Nova York. “É uma prática comum em pesquisas financiadas pela indústria farmacêutica, mas é o primeiro exemplo documentado, de que tenho conhecimento, relacionada a alimentos.” (Nestle escreveu um editorial sobre a análise prévia da equipe da UCSF dos documentos internos, mas não estava envolvida no estudo.)

Quando questionada, a Associação para o Açúcar respondeu com uma declaração afirmando, em parte, que “o estudo em questão foi descontinuado por três motivos, nenhum dos quais envolveu potenciais descobertas da pesquisa: o estudo foi adiado significativamente; ele estava muito acima de seu orçamento; e o atraso somou-se a reestruturações organizacionais quando a Fundação para a Pesquisa sobre o Açúcar se transformou em uma entidade nova, a Fundação Internacional para Pesquisa sobre o Açúcar. Havia planos de retomar o estudo com financiamento da Fundação Britânica de Nutrição, porém, por motivos desconhecidos por nós, isso não aconteceu”.

A presidente e CEO da Associação para o Açúcar Courtney Gaine também respondeu por e-mail que “ainda não existem associações ou relações diretas entre o açúcar e o câncer. A pesquisa mencionada por eles foi conduzida há quase 50 anos, e nunca foi concluída, então quaisquer achados poderiam ser considerados, no mínimo, preliminares e investigativos.”

Glantz reconhece o atraso no Projeto 259 e o orçamento excedido, mas discorda de que esses achados são agora considerados preliminares justamente porque seu financiamento foi cortado, o que impediu os pesquisadores de concluírem o estudo. Ele e Kearns enfatizam que não fizeram alegações sobre o açúcar causar câncer, mas eles acreditam que essa associação exige mais pesquisas. Após quase cinco décadas, não é tarde para dar continuidade a isso.

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