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Identidade

Este ilustrador foi atacado por desenhar um Papai Noel negro e gay

'Santa's Husband' faz uma nova leitura da lenda do Papai Noel. O criador conta o que aprendeu com o furor que seu personagem gerou.
Noel (esquerda) e seu marido trocam uma bitoca numa ilustração de Santa's Husband. Todas as ilustrações por A.P. Quach. 

Matéria originalmente publicada na VICE US.

Tudo começou no Natal de 2016. Um shopping dos EUA contratou um Papai Noel Negro, e a internet quase quebrou. Em resposta, o escritor de humor Daniel Kibblesmith tuitou que quando ele e a esposa tivessem filhos, ele diria para as crianças que Papai Noel é negro, e quando elas vissem um Papai Noel branco, ele diria que é o marido do Noel.

"Vamos ter esse bebê superpolitizado que está aberto para um Papai Noel com todas as orientações [sexuais]", me disse Kibblesmith, meio que de brincadeira.

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O tuíte viralizou e levou o ilustrador A.P. Quach a postar um desenho de um Papai Noel negro e um branco se abraçando amorosamente. E assim nasceu Santa's Husband .

O livro infantil publicado pela Harper Collins saiu na semana passada nos EUA, e apesar de ter surgido como sátira, o resultado é uma história realmente fofa que retrata um casamento muito feliz — uma visão particularmente valorosa, considerando a escassez de relacionamentos adultos, queer ou não, apresentados nos livros para crianças.

Mas claro, Kibblesmith e Quach estão encarando muita trollagem graças a arte que desafia o status quo; Kibblesmith disse até que encontrou sua foto num site de supremacistas brancos que tentou o expor como judeu. A VICE falou com Kibblesmith sobre os vários temas políticos que ele e Quach infiltraram em seu livro infantil aparentemente inofensivo, e o que ele aprendeu com a treta e a reação tão previsível da internet para seu Marido do Papai Noel. Saque a entrevista — editada para melhor compreensão — abaixo:

VICE: No livro você toca em outros temas políticos, como sindicatos. É um daqueles livros infantis que na verdade é para adultos?
Daniel Kibblesmith: Vemos o livro como para todas as idades; nas livrarias ele vai ficar na seção de humor. Mas nosso objetivo era escrever algo que qualquer tipo de família possa gostar na época do Natal. Talvez você seja um casal sem filhos que ache o livro charmoso e divertido; talvez vocês sejam novos pais que querem introduzir uma tradição de final de ano diferente na sua casa, ou só reforçar a ideia de que tradições como essa são maleáveis, uma coisa viva que cada família interpreta de um jeito.

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Nossa política fica clara já pelo título — você sabe exatamente o que está comprando. Mas pensamos nisso mais como pequenas piadas internas, não uma mensagem direta na sua cara. Além disso, num mundo onde o Papai Noel está num relacionamento interracial gay, essas pessoas podem ver o mundo da maneira que Quach e eu vemos, e queríamos ter piadas que refletissem nossas filosofias.

As políticas são óbvias, claro, mas, ainda assim, vale a pena reiterar a importância desse tipo de representação em livros infantis.
Apesar de as tradições natalinas serem repetitivas, ou parecerem repetitivas, elas na verdade evoluíram com os anos para se tornarem intrinsecamente estranhas, com coisas bem norte-americanas sendo acrescentadas na mistura — como Rudolph nos anos 30 e o Elfo de Prateleira na última década. Parece que elas sempre estiveram aqui, mas as pessoas vêm mexendo nessas tradições aqui e ali, e esse livro, esperamos, é a mesma coisa. Ele permite que mais pessoas celebrando o Natal tradicional norte-americano se vejam — ou vejam algo diferente.

Tem uma página do livro que foca nas muitas interações do "Noel" que vimos com os anos, o que parece útil porque você está abordando os detratores dessa ideia, mas não de um jeito defensivo.
De várias maneiras, esse livro é como qualquer outro primeiro livro do Papai Noel, do mesmo jeito que Era Véspera de Natal contém basicamente tudo que você precisa saber para participar do "Papai Noel". Para fazer isso, tivemos que reconhecer as mesmas coisas que a piada original no Twitter reconhecia: se esse é o Papai Noel, a explicação para o conflito em potencial entre muitas outras interpretações precisava estar presente.

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Quais foram as melhores respostas que você viu na internet?
Tem sido um microcosmo muito interessante na internet como um todo. Vou colocar isso de um jeito um pouco diferente: as pessoas que não gostaram tendem a ser anônimas, e as pessoas que gostaram querem falar conosco de maneira muito íntima nas redes sociais, com seus nomes verdadeiros, com seus rostos na foto de perfil.

Meu comentário favorito foi em março, quando a Time publicou uma matéria dizendo basicamente "Um novo livro vai retratar Papai Noel como gay e num relacionamento interracial", e um dos primeiros comentários embaixo da matéria era "Parem de reescrever a história". E isso realmente chamou minha atenção, porque, claro, nossa política é que Papai Noel existe, é negro, é casado com um homem e mora no Polo Norte. (Piscadinha.) Mas, sabe, tem gente que argumentaria que a lenda de Papai Noel é melhor descrita como uma lenda mesmo, e que estamos mais interpretando UMA história que reescrevendo A história.

Temos recebido muitas reações de pessoas que são contra isso, política e filosoficamente. Elas fazem muitas piadas óbvias, tipo "O que vem depois? Um Coelho da Páscoa trans muçulmano?" E minha reação geralmente é "Claro, por que não?"

Quais foram algumas das piores respostas? Vocês receberam ameaças de morte, como mulheres geralmente recebem quando escrevem ou falam sobre coisas assim?
Acho que o grau de trollagem que você está descrevendo tende a acontecer mais com, digamos, minha esposa e minhas amigas do que comigo. E por isso tenho muita, muita sorte, o que é tipo um dos temas do livro no geral. Tenho sorte de ser uma pessoa que estava interessada em fazer algo que outros que não estão na minha posição podem apreciar, e que ainda não tinham visto. A parte mais assustadora para mim tem sido o antissemitismo que venho recebendo.

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O que você acha que essas respostas — tanto as boas quanto as ruins — dizem sobre nossa cultura hoje?
O comentário mais memorável que recebemos foi de um podcast no YouTube — um desses pseudo podcasts de cultura que existe por lá. Geralmente esses perfis só regurgitam notícias ou são descaradamente políticos, mas encontramos alguns deles falando sobre Santa's Husband. Embaixo de um deles tinha um comentário dizendo: "Deixe as coisas continuarem como estão".

E isso virou uma coisa que eu e minha esposa começamos a dizer sarcasticamente, porque sabemos que essa objeção pode vir de muitos lugares — como um lugar de divisão racial, ou um lugar de homofobia, ou só de um leve desconforto —, mas acho honestamente que a maioria das objeções veem de um desconforto em geral com a mudança. Acho que quando as pessoas ficam putas ou desconfortáveis, sempre tem essa camada de medo da mudança. Elas só querem que as coisas "continuem como estão". Claro, discordo dessa reação, mas parte de mim também quer confortar essas pessoas.

Um livro não vai fazer o Papai Noel ser negro em outdoors, ou beijar um homem num comercial. E talvez daqui 30 anos haja interpretações diferentes desses ícones na mídia, mas a quantidade de medo que essa gente está sentindo não parece proporcional para um livro que pode ser completamente ignorado se elas quiserem.

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