Mulheres negras e gordas interpretam suas próprias histórias no palco
Cena do espetáculo Vênus Negra. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

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Mulheres negras e gordas interpretam suas próprias histórias no palco

Africana que foi enjaulada e exibida como aberração no século 19 inspirou um projeto de dança em SP.

Muito à vontade no camarim, a artista Gal Martins faz movimentos circulares com a mão encharcada de creme hidratante sobre a própria pele enquanto fala com a VICE. Seu vestido parece ter aberturas propositais na altura da barriga e da ancas, áreas costumeiramente escondidas por quem considera estar acima do que é tido como "peso ideal". Dentro de alguns minutos, ela estará no palco apresentando Vênus Negra – um manual de como engolir o mundo!, espetáculo de dança criado e encenado por cinco mulheres negras e gordas que compõem o grupo paulistano Zona Agbara. A primeira temporada encerrou em agosto deste ano, mas estará em cartaz novamente em novembro na capital paulista.

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Os lábios vaginais hipertrofiados e o enorme quadril da africana Saartjie Baartman, conhecida como Vênus Negra, foram motivos para que ela fosse enjaulada e exibida nua como uma criatura selvagem durante eventos no Reino Unido do século 19.

Vista como aberração, a mulher serviu de inspiração para o projeto que mistura dança e teatro. "Suas curvas foram colocadas como algo surreal, fora da normalidade", pontua a artista da dança e importante gestora cultural da periferia paulistana Gal Martins. Depois de estudar artes cênicas na Unesp, ela fundou, em 2002, a Cia. Sansacroma, instalada no bairro do Capão Redondo, zona sul de São Paulo.

A artista Gal Martins aos cuidados da maquiadora Mika Safro. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Um dos temas que tece o espetáculo é a solidão, já que a exaltação da negritude, hoje, soa como ouro para ouvidos publicitários e para o famoso lacre online. "Quando postamos uma foto nossa maquiadas, tipo 'sou preta, gorda e sou foda', as pessoas comentam 'diva, poderosa'. Mas, no fundo, continuamos sozinhas. Ninguém beija a gente na balada", fala Gal, ainda no camarim.

"As pessoas comentam 'diva, poderosa'. Mas, no fundo, continuamos sozinhas. Ninguém beija a gente na balada" – Gal Martins

No camarim. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

É o corpo gordo – e como ele é encarado no dia a dia – que pauta toda a temática da apresentação. "O projeto eurocentrado da medicina nos massacra muito. Às vezes, vamos ao dermatologista e o problema é que a gente precisa perder peso. Falamos muito dessa violência, de olhar corpos gordos como doentes."

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A atriz e dançarina Fabiana Pimenta se preparando no camarim. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Um dos elementos que surge no espetáculo é a catraca de ônibus, que acaba sendo exorcizada com um banho de canela e açúcar. O cenário traz também discos de vinil, instrumentos de percussão, incensos e bonecas de pano.

A dançarina Rosângela Alves, conhecida como Didi, é responsável pela preparação corporal de Vênus Negra. Há anos resistindo no universo da dança, ela conta que foi preciso treinar não só o corpo mas também o emocional das outras artistas para o projeto. "Tem toda uma questão de cansaço, de pensar se vamos dar conta, se vamos conseguir chegar até o final", pondera. "Infelizmente, temos nossas limitações. Temos dores. Somos um corpo pesado, insistimos e acabamos nos machucando."

"Infelizmente, temos nossas limitações. Temos dores. Somos um corpo pesado" – Rosângela Alves "Didi"

Mas a dor não parece ser problema para essas mulheres, que, além de encarar os próprios demônios em frente ao público, contando suas histórias e experiências de vida, vão ao chão, rodopiam, cantam, batucam, movem o corpo desafiando a gravidade.

A dançarina Luciane Barros no camarim. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Didi já ouviu coisas como "isso não é pra você", mas não foi o suficiente para que ela largasse a dança. "Claro que não vou sair dando mil piruetas como uma bailarina clássica porque meu corpo não está pra isso, mas sempre vou achar um meio de fazer o que me proponho a fazer."

O jogo da vida ganha ares ainda mais desafiadores quando as artistas ficam completamente nuas na apresentação.

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"É importante mulheres pretas e gordas que sempre foram rejeitadas, que são vistas como feias, horrorosas, mostrarem como seus corpos são bonitos", menciona Fabiana Pimenta, atriz e dançarina de Vênus Negra. "A sociedade exclui a gente de tudo. Se você for comprar um sutiã acima de 46, vai ter só bege."

O grupo Zona Agbara se aquecendo antes da apresentação. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Ela diz contar nos dedos a presença de atores e performers negros em apresentações que acontecem no centro de São Paulo, o grande polo de eventos culturais. Por isso, entende a importância de rodar com o espetáculo na periferia. "É daqui que eu vim", arrebata.

Ficha Técnica

Concepção e direção: Gal Martins
Intérpretes criadoras: Fabiana Pimenta, Dandara Gomes, Luciane Barros e Gal Martins
Participação especial e preparação corporal: Rosângela Alves
Musicista convidada: Analu Barbosa

Para sacar mais do trabalho da Zona Agbara e acompanhar a divulgação de novas temporadas do espetáculo Vênus Negra, siga-as no Facebook.

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