Conversamos com um matador sobre o jeito certo de sacrificar animais
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Conversamos com um matador sobre o jeito certo de sacrificar animais

"Meus olhos enchem de lágrimas. O que eu posso fazer se sou pago para fazer este trabalho?"

A primeira coisa que o açougueiro me diz é que ele está sem tempo e tem muito o que retalhar, mas sorri quando mostro os seis litros de cerveja que eu trouxe para refrescá-lo. Estamos diante de um carneiro pendurado pelas patas traseiras. Com um talho na garganta, ele dessangra sobre os próprios intestinos esparramados pelo chão. Um grupo de moscas sobrevoam o cadáver. Em seguida o abandonam e vêm para a minha cerveja; sou obrigado a espantá-las a tapas, porque suas garras estão empapadas de bactérias e sangue.

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O apelido deste magarefe — pessoa que tem por ofício matar e esquartejar animais destinados ao consumo — é Chuck Norris. Seus amigos o batizaram assim por achá-lo parecido com o carateca e ator norte-americano de filmes de ação. A história de como ele se tornou um açougueiro remonta a uma guerra em que ele se negou a combater. Isso ele só vai me contar mais para o final, quando seu coração estiver embriagado e o cheiro forte do sangue de um cordeiro se misturar com o cacarejar de galinhas incitadas pelos latidos de um cachorro.

VICE: Que animais o senhor já sacrificou ao longo desses anos de trabalho?

Chuck: Galinhas, bodes, cordeiros, coelhos, porcos, carneiros, perus, ovelhas, cervos e vacas.

Como o senhor aprendeu este ofício?

Eu não conheci a minha mãe, ela morreu quando eu nasci. Por isso, cresci como um selvagem. Fui criado pelo meu pai numa fazenda. Ele cultivava milho e era também apicultor, criava abelhas. Eu me formei praticamente sozinho. Aprendi observando meus vizinhos sacrificarem animais. Matei o primeiro aos 14 anos. Peguei uma faca grande, levantei a pata do porco e apunhalei o sovaco dele, bem no coração. Depois me ensinaram a tratá-lo ― dessangrar, retalhar e limpar a carne para o consumo.

Às vezes Dom Chuck e o animal choram juntos, um ato de empatia do homem com sua presa.

Como cada animal deve ser sacrificado?

No caso das vacas, eu quase sempre dou um tiro bem acima dos olhos ou na cara com um rifle calibre 22. Quando não tenho uma arma à mão, eu corto o pescoço e espero elas dessangrarem. Com os perus e galinhas, eu torço a cabeça até estalar e depois os penduro pelas patas para que o sangue desça para o pescoço e não jorre na hora de decapitá-los. Com os coelhos, é só dar uma paulada na nuca. Quando é com os porcos, eu jogo no chão, puxo uma patinha e meto a faca no coração para eles morrerem rápido.

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O que acontece quando o animal é sacrificado da forma errada?

No caso do porco, se eu não acertar a faca no coração, ele vai demorar para morrer e a carne vai ficar escura, com uma textura desagradável. Cordeiros, bodes e carneiros têm que ser pendurados pelas patas e degolados de cabeça para baixo para o sangue sair rápido e não coagular. O mais importante é que o animal não sinta dor nem se estresse, porque isso endurece a carne e a deixa menos suculenta; quanto menos ele sofrer, mais macia vai ser a carne. A [carne] dos touros poderia ser comida, mas depois de tudo o que eles sofrem na arena, a carne fica muito ruim. Picadores, bandarilheiros, toureiros e espadas: todo esse estresse prejudica a carne.

Um carneiro precisa ter entre dois e três anos para servir de alimento. Um porco só precisa ter quatro meses.

Já li e ouvi falar de uma suposta venda de carne humana, de cachorro e de cavalo aqui no estado. O senhor já comeu alguma delas?

Aqui em Mérida [Yucatán], nos mercados [populares], a carne de cavalo é vendida misturada com a de vaca. Eu tenho amigos açougueiros que me contam isso. As pessoas não diferenciam. Apesar da cor mais arroxeada do que vermelha, o sabor é parecido. É claro que essa carne é de cavalos velhos ou que foram usados por algum picador ― toureiro que monta um cavalo para lutar contra um touro ― e levaram chifradas na arena.

Eu comi cachorro há uns 15 anos em um bar que se chamava Sans Souci. Os donos eram turcos. Serviam como petiscos espetinhos e poc chuc ― carne de porco marinada em laranja ácida e cozida na brasa. O negócio ia bem até que a inspeção sanitária encontrou várias cabeças de cachorro lá dentro. Ninguém suspeitava, porque os funcionários passavam entre as mesas carregando um pernil de porco para fingir que era a carne que era servida. O fato é que era gostoso.

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Carne humana eu ainda não comi, não que eu saiba. Carne de cobra sim, tem um gosto de frango com peixe de água doce, mas depois que matei uma jiboia, parei de comer.

Dom Chuck toma um gole de verveja enquanto marina um carneiro com urucum e recheia o estômago do animal com vísceras.

Por que o senhor matou uma jiboia?

Meus coelhos começaram a desaparecer e eu discuti com uma vizinha, achando que ela os estava roubando para alimentar a família. Um dia eu estava limpando o chiqueiro e vi a cabeça de uma cobra saindo de dentro de um cano. Por medo, não por valentia, eu enterrei meu facão nela. Era uma jiboia-constritora de 30 quilos. Dentro do corpo dela estavam os meus três coelhos e um peru que ela tinha comido em algum outro curral. Levei ela para a calçada para mostrar para as crianças, voltei para o meu curral e, quando saí de novo, ela não estava mais lá. Meus vizinhos disseram que um caminhoneiro a tinha levado, talvez para fazer carteiras e cintos, porque a pele dela é brilhante e tem um padrão bonito.

De uma caixinha de som escutamos "La ley del monte", cantada por Vicente Fernández. Música que lhe dá ânimo para trabalhar.

Qual é a sua opinião sobre as touradas e o maltrato de animais?

Não defendo que as touradas sejam proibidas, porque tem gente que vive disso. Fazendinhas que vendem seu gado para as touradas. O que aconteceria com eles se proibissem? Quanto ao maltrato de animais, eu tenho três cachorros e não é só por ter, como algumas pessoas fazem. Eles trabalham comigo. O trabalho deles é latir e me avisar se houver algum problema. Em troca, eu cuido deles, olho o pêlo deles para ver se tem carrapato e os alimento com ração e o que sobra de carne. Jamais os agrido.

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Uma coisa que eu não concordo é com a caça de animais. Aqui em Yucatán os cervos estão desaparecendo porque são caçados indiscriminadamente. Se a polícia encontrar um cervo no seu porta-malas, você vai preso. Também não caço pacas ― uma espécie de roedor que pesa 10 quilos ―, mesmo sabendo como. É uma carne fina e gostosa. Elas vivem em cavernas. Quando a lua está coberta, eles saem para comer. O que eu faço é pendurar a minha rede e, quando ouço o barulho de folhas secas, ilumino os olhos delas e atiro.

O toque final, uma camada de rodelas de batatas e folhas de babosa.

Você já chorou quando estava sacrificando um animal?

Sim, já chorei, porque eu acabo me afeiçoando aos animais depois de conviver com eles durante meses ou anos. Os bodes e os carneiros sabem quando vão morrer. Assim que eu os penduro pelas patas, eles me olham nos olhos e começam a chorar, como se pedissem para eu não matá-los; é aí que meus olhos enchem de lágrimas. O que eu posso fazer se sou pago para fazer este trabalho? É por isso que, quando eu crio o animal, eu não o mato. Pago outra pessoa para matá-lo, e eu só cozinho.

Un horno se alista para cocer carne durante ocho horas.

Como o senhor acabou exercendo este sangrento ofício?

Quando eu era jovem, abandonei Yucatán e atravessei a fronteira aos Estados Unidos. Primeiro ilegalmente, depois com documentos falsos. Trabalhei muitos anos cultivando morangos e alface em Santa Maria, na Califórnia ― a três horas da baía de São Francisco. Eu gostava muito de lá, principalmente do salário, que em uma semana equivalia ao que eu ganhava aqui em três meses. O problema é que quiseram me mandar para a guerra e eu preferi sair do país e voltar a morar com a minha família. Em pouco tempo em Yucatán, eu me estabeleci como funcionário da Telmex, até ser demitido pelo meu costume de beber. Depois a minha esposa me largou. Eu não consegui mais trabalho e só o que me restou foi matar e cozinhar animais, duas coisas que tinha aprendido de pequeno. Já estou nesse trabalho há 40 anos.

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Uma assadeira de 40 quilos será o banquete de um aniversário esta noite.

Por que os Estados Unidos queriam mandá-lo à guerra sendo que o senhor é mexicano?

Eu vou te contar uma coisa que nunca disse a ninguém, porque não quero que digam que eu sou um covarde. "Vem aqui, alemão! É verdade que você é yuca ― de Yucatán? O que você veio fazer aqui?", me perguntou um tabelião que conheci na fronteira de Mexicali na segunda vez que tentei atravessar para a Califórnia. "Bom, vim fazer a mesma coisa que todo mundo, tentar atravessar", respondi. "250 dólares por documentos para você atravessar. Você não tem que me dar nada agora, que eu não sou mão-fechada. Me paga quando eu te entregar", ele disse.

A identidade que ele vendeu para mim era de um mexicano nascido nos Estados Unidos que tinha morrido em Oaxaca alguns meses atrás. David Olivas Anaya, era esse o meu nome. Nunca vou esquecer. Como eu sou loiro de olhos azuis, me confundiam com um gringo. Estava tudo indo bem até que no início dos anos 70 eu fui escolhido para ir para a guerra do Vietnã. O que eu ia fazer lá se não sabia atirar com matraca (metralhadora)?

Se o Cassius Clay ― nome real da lenda do boxe Muhammad Ali ― não quis ir à guerra, imagine eu. Eu nunca mais tive notícia dos meus conhecidos que foram lutar. Foi uma matança. Para os Estados Unidos terem abandonado a guerra é porque foi complicado, eles nunca dão para trás.

Este post foi originalmente publicado na VICE MÉXICO.

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