Mutarelli põe bundas e reptilianos na frequência do mal em seu novo livro

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Entrevista

Mutarelli põe bundas e reptilianos na frequência do mal em seu novo livro

A viagem filosófica amorosa de 'O filho mais velho de Deus e/ou livro IV', novo livro do autor de 'O Cheiro do Ralo'.

Lourenço Mutarelli é um cara normal. Ele não vai te mostrar um olho de vidro ou falar coisas desconexas e sombrias. Vai te servir café em um jogo de xícaras delicado e comentar como o dia está bonito. Dependendo do horário, talvez te ofereça uísque. Mutarelli não é como seus personagens — não está à beira da loucura e não parece ameaçador. É gentil, lúcido e afável.

Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Aos 54 anos, Lourenço Mutarelli está lançando um de seus romances mais diferentes. O filho mais velho de Deus e/ou livro IV conta a história de Charles Noel Brown, e/ou Peanuts, e/ou Albert Arthur Jones, e/ou George Henry Lamson, um sujeito medíocre e frustrado que entra para uma seita secreta em troca de uma nova identidade e da possibilidade de uma vida diferente.

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Charles é enviado à Nova York, onde fica hospedado em um hotel, O Chelsea Savoy, primo sem charme do histórico Chelsea Hotel. Ali, Charles espera pela iniciação nos Cães Alados, uma irmandade que acredita na existência de reptilianos, seres supremos vindos do espaço, enquanto remói o passado. Um episódio, em especial, não sai de sua cabeça: sua primeira vez, com Sarah Jane, que topou dar para ele e para o amigo Peter, “mas só a bunda”.

Cético, obcecado pela primeira transa e entregue novamente ao álcool depois de anos em abstinência, Charles vaga pela “Maçãzona” (uma brincadeira do narrador com o apelido Big Apple, da cidade) em busca de um sentido para a vida, que, ao que tudo indica, é mesmo desnecessária, como lhe disse certa vez o pai.

As coisas melhoram um pouco para Charles quando ele conhece Trudy, uma reptiliana que lhe revela a parte da verdade da existência que ele é capaz de assimilar em sua limitada forma humana. Homem e alienígena se apaixonam e vivem uma longa história de amor até o dia em que a paixão esfria. Coisas da vida.

Tudo isso, que pode soar ridículo numa sinopse, é muito bem trabalhado por Mutarelli. O primeiro filho de Deus é, antes de qualquer coisa, um livro engraçado. Desse universo absurdo de demônios, extraterrestres e teorias da conspiração, nasce um retrato existencial tragicômico de nós, terráqueos, seres pequenos, com ideias fixas, entre o bem e o mal, mas cheios de amor pra dar.

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Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

O livro faz parte da coleção Amores Expressos, projeto da editora Companhia das Letras que mandou dezessete escritores brasileiros a cidades estrangeiras por um mês com a missão de voltarem com uma história de amor. É o oitavo romance de Mutarelli, que ficou conhecido por seus quadrinhos e por atuações no cinema.

Abaixo, alguns trechos de minha conversa com o autor, em sua casa:

VICE: Fiquei surpreso quando vi que o livro fazia parte do Amores expressos, depois de tanto tempo.
Lourenço Mutarelli: 11 anos.

Foi bem diferente mesmo dos seus outros processos, você escreve muito rápido.
Os primeiros foram muito rápidos.

Cinco dias para escrever o O Cheiro do Ralo, né?
Foi. Depois eu fiquei mais 10 dias trabalhando nele. O Natimorto, Jesus Kid, foi tudo numa média de 15 dias. Quando eu fiz A arte de produzir efeito sem causa eu fiquei um ano trabalhando e achei que fez muita diferença. Você tem que deixar o livro descansar. Quando eu estou escrevendo, não é muito racional, não tenho muito controle. Só quando leio no dia seguinte e vou mexendo.

Você deve entrar num processo meio de transe para escrever tão rápido.
Totalmente, mas tudo que eu faço é um pouco isso. Precisa ser um transe mesmo. Mas esse foi muito desgastante. Eles [a editora] foram muito duros. Fiz um livro e eles interferiram demais. Mexi no que eles falaram, não gostei e abandonei. Na época eu estava publicando muita coisa e a gente foi deixando passar. Aí passou muito tempo.

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O Filho é um dos teus livros mais engraçados, um dos mais leves, até. Ao mesmo tempo, muito mais estranho (estamos falando de sexo intergaláctico, afinal). Você não se preocupa com a recepção desse tipo de coisa?
Eu escrevi esse livro rindo. É meu preferido, e foi o que teve mais trabalho, confecção e pesquisa. Quando eu estava na metade eu dei pra minha mulher ler. Ela me devolveu e disse: "só você vai rir e gostar desse livro". Mas é o que me importa. Esse é meu leitor. Eu não me preocupo, de verdade. Todos os meus livros são um desafio, eu tento sair do que eu sei fazer direito, eu gosto de estar num lugar que é uma experiência.

De onde veio a ideia desse livro?
Uma noite eu estava bêbado vendo TV e no Discovery estava passando: Sereias. Eu pensei "não, sereia não dá, é muito ridículo". Depois de uma hora e quarenta acabou e eu fiquei com muita raiva, porque não era nada. Um ano depois, teve o Sereias II e eu falei "não vou ver", mas eu estava bêbado de novo (eu fico bêbado toda noite) e fiquei fascinado. Depois que acabou eu pensei: "tenho que escrever um livro sobre a coisa que eu acho mais ridícula, mas que em algum momento tenha alguma verdade, alguma dúvida". Aí eu pensei em reptiliano. Eu não acredito, o narrador não acredita e o protagonista não acredita. O desafio nesses quatro anos era muito também essa construção: devagarinho ir colocando elementos que dessem alguma credibilidade na história. Foi uma chance de explorar essa ideia que veio de uma coisa esquisita.

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Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Mas você acredita mesmo ou esse é só um interesse artístico?
É a mesma coisa dos demônios. Uma época eu comecei a pesquisar demônios, eu queria listar isso. Eu não acredito, mas acho muito fascinante. Tem um imaginário muito interessante. Agora, OVNI, essas coisas eu acredito. Acho muito ingênuo achar que só aqui existe vida, mas eu não tenho obsessão.

Já teve alguma experiência extraterrestre?
Tive, no Recife, mas depois fiquei em dúvida. Depois de uma palestra que eu dei, uns meninos perguntaram se eu não queria falar num bar para quem não conseguiu entrar. Disseram que não podiam pagar, mas tinham uísque. Ficamos no quintal, conversando, e tal, bebendo, e uma hora eu vi uma esfera de um azul muito bonito, voando num movimento reto uniforme, tinha umas nuvens baixas e onde ela passava rebatia nas nuvens, uma coisa muito bonita. Podia ser um relâmpago, ou uma coisa física. Quando vi, falei: “caralho, um OVNI”, mas quando o pessoal levantou já tinha ido para trás das árvores. Tinha uns três ali comigo que disseram: “cara, aqui é o Recife, é assim mesmo”. Tive que ligar para minha mulher pra contar, porque ela sabe que é meu sonho ver um OVNI. Ela perguntou quantos uísques eu tinha tomado, eu disse que só cinco (risos). Mas depois eu fiquei pensando numa coisa: eu já estava dando aula toda noite usando projetor e a porra do negócio projeta uma luz azul redonda que ficava muito no meu olho. Então talvez eu tenha visto outra coisa, mas foi lindo. Mas nunca vi nada além disso.

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Voltando ao livro, por que a maioria das personagens é homônima de um serial killer ?
Na minha primeira versão, que foi rejeitada, eu criei tudo enquanto eu tomava café na cozinha. Então os personagens eram Toddy, Scotch Brite… E o principal era o Chester, porque tinha uma cena de amor que era “…E ela deitou no peito de Chester, ela lambeu o peito de Chester…”, mas o Luís Schwarcz [editor da Companhia das Letras] achou muito ridículo e mandou eu mudar esses nomes. Aí eu comecei a pesquisar e por acaso caí num obituário que, além do nome, tinha a foto da pessoa, um perfilzinho da vida dela. Eu comecei a usar isso, mas eu achei muito fúnebre, eu não ligo pra essas coisas, mas era triste, pensei que era muito maldoso e desrespeitoso, não era isso que eu queria. Aí eu decidi procurar serial killers e caí nessa Murderpedia, que é muito fascinante. E comecei a escolher gente que tinha matado pelo menos três pessoas de forma violenta.

Curioso você dizer isso, porque parecia uma escolha intencional.
Mas no fundo tem uma intenção existencial. Eu tenho o nome do meu pai. Eu sou Lourenço Mutarelli Júnior e meu pai era policial, era torturador. Ele foi policial e a tortura era uma ferramenta que eles usavam. A gente tem o mesmo nome, mas a gente não é a mesma pessoa. Então tem um pouco disso, de pessoas que carregam o mesmo nome e são monstruosas. O peso do próprio nome vem daí. Algumas pessoas podem pensar: "Lourenço Mutarelli me torturou". É o mesmo nome. E na minha casa era mais louco porque minha irmã tem o nome da minha mãe. Por isso eu tenho muita dificuldade em guardar nome, eu não consigo associar.

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Essa busca de tentar entender o sentido do mal é uma coisa constante na sua obra. Você acha que isso tem a ver com essa experiência com o seu pai?
Isso se mistura, mesmo que eu não perceba. Às vezes leva um tempo. Como eu reflito muito, ao longo do tempo eu fui percebendo que isso tem tudo a ver, embora 90% seja ficção.

Ao mesmo tempo, muita gente identifica seus personagens com você.
Não tem nada a ver. É muito doido isso. As pessoas falam "eu li seu livro escutando sua voz" e eu falo que eu não sou aquele narrador e nem aquele personagem. Tem situações, humor, elementos, que você mistura ali, mas a maioria é ficção.

Você comentou publicamente que seu pai chegou a te levar para testemunhar uma sessão de tortura e que você ficou do lado de fora, sentado, escutando tudo, e que até hoje você se sentia sentado nesta cadeira.
Mas é verdade. Tem uma coisa muito doida, uma diferença de geração, que eu falo e meu filho não entende: o que era um pai e um filho quando eu fui filho, e o que é um pai e um filho hoje. Eu lembro de um dia que eu estava lavando louça e meu filho veio e me encoxou. Eu falei que se eu fizesse isso no meu pai eu tomava um soco na cara.

Eu não tive coragem de sair daquela cadeira: eu sabia que eu não podia sair, tinha uma coisa que me imobilizava e me prendia ali, mas, eu às vezes penso que podia ter saído. Sei lá.

Você tinha quantos anos?
Dezessete. E teve a coisa dele trazer o cara e me explicar: “eu vou te mostrar como a gente transforma uma pessoa inocente em uma pessoa culpada”. O cara tinha roubado uma calça num drive-in.

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Não era nem uma tortura política.
Não, era um instrumento de trabalho. Tinha uma coisa também da minha infância que eu demorei muito para entender. Sempre que meu pai chegava com a manga dobrada minha mãe ficava brava e não falava com ele. Eu via aquilo e não entendia. Um dia eu vi ela lavando a camisa e tava tudo respingado de sangue. Era quando ele tinha torturado alguém. Meu pai quebrava muito a mão fazendo isso. Mas não, não era político. Embora tenha uma doutrina. Por exemplo, meu pai não lia russo. Eu falava: "você devia ler Dostoiévski" (meu pai lia muito), mas ele falava: “não, russo eu não leio”, porque ele tinha essa coisa na polícia, de comunista…

Acho que muito do que você faz é tentar desmistificar essa visão maniqueísta do que é uma pessoa boa e o que é uma pessoa má.
Mas é isso mesmo. Tem uma coisa que não está no livro e que eu vou usar em outro que surgiu conversando com uns amigos no bar. Moralmente, o que ensinam para a gente é que bom é o que você faz para os outros e mal é o que você faz pensando em você. É meio isso. E esse momento que a gente tá vivendo de “ou é isto, ou aquilo”, essas brigas ingênuas e virulentas, gente defendendo volta de coisas como ditadura militar…

Você acredita na maldade pura?
O David Lynch fala muito do mal como essência. Eu acho que tem uma vibração que é o mal. Se você ler essas histórias de serial killer… é quase desumano. A ciência vai explicar de uma outra forma, mas tem coisas que são frequências mesmo, que se atingem. Eu sempre falo que escrever é a forma mais profunda que eu tenho de pensar. Essa teoria de bem e mal é uma coisa que eu conversava muito com alguns amigos quando eu já estava bem bêbado. Eles pediam pra eu falar a teoria e eu dizia que precisava escrever. Mas eu acredito que eu não cheguei nela ainda.

E esse mal tá presente em tudo…
Em tudo. Todo tipo de matéria pode ter acesso a isso. Eu acredito, mesmo, que existe uma essência do mal, uma frequência do mal que você pode chegar nela de alguma forma. Agora, o bem é uma coisa difícil de ver. Na natureza, se você for olhar um quintal é uma puta guerra. Eu concordo muito com o Schopenhauer quando ele fala da força da vontade, da vida: a vida quer seguir, independente do que for. Não tem nada de bom nisso, é a perpetuação de coisas, através do sexo, de ilusões. Nessas coisas que eu lia desses ocultistas, teve algo que eu usei, acho que em Miguel e os demônios, que é: ninguém se serve do mal, você não vai ganhar nada em troca, o mal é uma ilusão qualquer, não vai te trazer nada em troca, não é uma coisa da qual você vai se beneficiar, vai te trazer uma ilusão momentânea. Só isso.

Foto: Larissa Zaidan/VICE Brasil

Você tem uma sentença recorrente em alguns livros (aparece neste, em O Grifo de Abdera e no seu primeiro fanzine) que é: "a vida é uma piada de mau gosto". Esta frase parece sintetizar bem uma ideia central em toda sua obra.
A vida é difícil pra caramba, mas, se você se cerca de amigos, se diverte pra caramba. A gente consegue ter bons momentos, uma outra frequência, ter um pouco mais de leveza e eu acho que é isso. Porque [a vida] não é bonita. A gente esconde muita coisa. Tem um amigo meu que sempre fala que meus livros sempre têm merda, cu, mas é porque tem! Isso é muito a vida, são funções primárias e existenciais que não precisa esconder. Não precisa mostrar, mas também não precisa esconder, e elas são muito simbólicas. No O Cheiro do ralo eu fiquei pensando no Bosch, porque ele tem essa coisa do cu, de coisa entrando e saindo e tal… é o portal do inferno, é um simbolismo pra muita coisa. São coisas muito simbólicas e muito presentes. Lendo eu pensava: “por que eu tenho que escrever que o cara cagava fino”?, mas é fundamental esse estrangulamento. Eu li um dia desses um cara falando da importância do estado das fezes pra medicina chinesa… e até aqui, se faz exame de fezes porque isso reflete a sua saúde. A gente não precisa ser que nem gato, de enterrar as fezes, mas a gente enterra. A Mentira [nome de uma das três gatas de Mutarelli], se eu tiver lá na hora dela cagar, fica me olhando até eu sair.

Sobre o que você diria que é este livro?
Eu brinquei com os meus alunos uma época que era um livro sobre reptilianos e sexo anal (risos). Eu acho que ele tem muito dessa questão da existência mesmo: um cara que passa a vida preso em uma coisa que não vai voltar. Também é uma história de amor, da dificuldade que é o amor. Tem ainda essa coisa da dificuldade de estar confortável em algum lugar. Nesse ponto, tem muito a ver comigo, são poucos os lugares que eu me sinto à vontade. Tem essa coisa da vida ser desnecessária, que o pai dele [o personagem] fala. Para a vida, você tem que gerar vida, e ele não gerava. De repente ele gera, mas aí é isso, acabou, ele não tem mais o que fazer e a vida não precisa mais dele. Eu gosto muito também do sentido da esperança como espera. Ele intui que a Trudy não vai voltar, mas ele espera, porque ele não tem mais nada pra fazer. Uma coisa triste que eu via eram os amigos do meu pai que aposentavam, que achavam que aquilo era um sonho, e aí entravam em depressão, porque passavam a vida de pijama e a vida é isso. Como alguém pode querer isso? As pessoas são levadas a acreditar que isso é bom e elas desejam isso.

Você ainda se sente um artista marginal?
Uma coisa que eu me orgulho muito é que eu sou mais radical e experimental do que quando eu era moleque punk, quando comecei meu trabalho. Eu estou numa grande editora faz tempo e ouso mais do que se eu estivesse numa editora de fundo de quintal. Tem uma figura que criam de mim e, sei lá, é engraçado, porque eu sou isto aqui. Eu sou isto, pra algumas pessoas é estranho.

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