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Comida

Parei de fumar e meu paladar continua uma bosta

Quarenta dias atrás, cortei o cigarro. Desde então, estou esperando pela epifania de sabor que me prometeram.
Foto via usuário do Flickr artgoeshere .

Matéria originalmente publicada pelo MUNCHIES França.

Quarenta dias depois do último cigarro que coloquei na boca e uma maçã ainda tem gosto de maçã. Desde que parei de fumar, ainda não experimentei o triunfante retorno total das minhas papilas gustativas, o que é muito frustrante.

Ganho a vida escrevendo sobre comida. Isso significa que há anos as pessoas me enchem o saco porque fumo, o que supostamente estava “destruindo meu paladar”. O mesmo vale para comentários de colegas quando vou a um restaurante e acendo um cigarro (“Ah… você fuma?”), observações do meu pai no Natal (“Que pecado fumar depois de experimentar esse Mouton Rothschild 89”); sem falar nos ex-fumantes — os novos aiatolás da vida saudável — que parecem ter esquecido como ser uma pessoa descente desde que esvaziaram seu último cinzeiro. Resumindo, faz tempo que as pessoas ficam putas comigo assim que coloco meu maço de cigarro na mesa. OK, posso ser teimosa, mas não sou idiota, então finalmente imaginei: e se, por causa dos cigarros, estou realmente perdendo uma verdadeira experiência em sabores?

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Tudo começou 15 dias antes de eu parar de fumar, quando acordei sofrendo de uma ageusia temporária. Sim, você leu certo: ageusia. Eu também não conhecia a palavra; ela é feia e assustadora, assim como o que ela descreve: a perda da capacidade da língua de sentir o gosto das coisas. Apesar de extremamente raro, o sintoma provavelmente era consequência do mal-estar gastrointestinal que tive alguns dias antes.

Naturalmente, esse problema é ainda mais divertido quando seu trabalho é preparar comida num programa de TV. De repente eu precisava que meu assistente experimentasse tudo porque eu não conseguia detectar as nuances do que estava fazendo. Até dei uma mordida numa cebola para ver o que acontecia: nada. E como a desgraça nunca anda sozinha, naquele dia um superchef estava participando do programa — o tipo que entra na sua cozinha com 25 ingredientes que você precisa experimentar! Com cada bocada que ele me oferecia, eu soltava os mais genuínos “humms” e “delícias” que conseguia. Não tive coragem de dizer que se ele me desse merda, eu não saberia a diferença.

Agora, cada dia sem cigarro me traz mais perto de um objetivo final: experimentar o sabor real das coisas.

No dia seguinte, a ageusia passou. Descobri isso assim que acendi um cigarro. O horror foi imediato — parecia que eu tinha engolido um cinzeiro. Foi como se minhas papilas tivessem acordado gritando: “Ficamos quietas sobre essa merda há anos, mas agora? Desculpe, é nojento!” E eu tinha mesmo que encarar os fatos: essa sensação horrível na minha língua tinha uma influência na minha percepção de gostos. Então decidi parar de fumar.

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Agora, cada dia sem cigarro me traz mais perto de um objetivo final: experimentar o sabor real das coisas. Todos os sites que li me fizeram a mesma promessa: “Em 2 a 3 dias, ex-fumantes vão recuperando seu paladar inteiramente”. Era como ser criança na véspera do Natal. Achei que três dias depois de apagar meu último cigarro, eu ia chorar incontrolavelmente quando mordesse um tomate. Dois dias se passaram, depois três. Cinco. Ainda nada. Aí, uma manhã, senti a diferença, literalmente: uma mistura de mijo, fumaça de cigarro e escapamentos atacou brutalmente minhas narinas no meio da rua. Moro em Paris há cinco anos e nunca percebi como a cidade tem cheiro de morte às vezes. Agora eu tinha o olfato de um São Bernardo. Que bom.

Na verdade, a explicação era simples: se não tive nenhum tipo de revelação gustativa, era porque minhas papilas não tinham sofrido tanto assim.

Depois de um mês sem fumar, comecei a me sentir confusa. Todo mundo ao meu redor tinha uma teoria: “Você tem que esperar pelo menos três meses / seis meses / três anos”; “É por que você mora numa cidade muito poluída”; e a minha favorita “Você escova a língua?”

Na verdade, a explicação era simples: se não tive nenhum tipo de revelação gustativa, era porque minhas papilas não tinham sofrido tanto assim com o tabaco. Não fui eu quem pensou nessa explicação; foi Anne Borgne, especialista em vício do Victor Ségalen Center da cidade de Clichy, França. Contei minha história para ela pelo telefone, e acho que ela até ficou um pouco impressionada.

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Finalmente, ela perguntou “Antes de parar de fumar, você achava que não estava sentindo o sabor das coisas?” Tenho que admitir que não esperava essa pergunta. A verdade é que não, isso nunca tinha sido um problema. Mas como todo mundo parecia concordar que fumar era um inimigo de uma verdadeira experiência de sabor, e como eu fumava há 12 anos, acabei acreditando nisso e não confiando mais no que sentia.

“Fumantes tendem a comer comidas mais salgadas e gordurosas porque precisam de mais intensificadores de sabor. Portanto, parar de fumar também significa mudar o jeito como você come.”

Como médica, Borgne confirmou que tabaco (mais especificamente queimar tabaco) destrói as papilas gustativas. Mas primeiro, você tem cerca de 8 mil delas na sua boca, então tem um certo espaço para manobra aí. Segundo, é algo extremamente gradual. Por último, é importante notar que papilas gustativas podem se regenerar assim que você para de fumar por alguns dias.

Então no caso de fumantes mais hardcore, sim, isso fode com o seu paladar, mas em muitos casos a coisa é mais sutil. “Quando fuma, é sua discriminação mais sutil que se torna mais difícil. Você distingue menos o açúcar e o sal, ou a diferença entre dois aromas”, explica Borgne. Fumantes conseguem sentir gostos, então pode ser um saco ter que diferenciar um do outro. Mas o que ela me disse depois foi o que mais me tocou: “Fumantes tendem a comer comidas mais salgadas e gordurosas porque precisam de mais intensificadores de sabor. Portanto, parar de fumar também significa mudar o jeito como você come”.

E foi aí que veio uma revelação na minha mente. Não aquela que eu estava esperando, mas dava na mesma. Eu estava obcecada com a ideia de descobrir todo um novo paladar que eu não esperava desde que parei de fumar. Quarenta dias depois, parei de salgar minha comida sistematicamente como fazia antes. Eu estava saboreando sobremesas que nunca chamaram minha atenção. Eu estava comendo menos comidas gordurosas, sem sentir que estava perdendo alguma coisa. E o mais incrível: eu podia participar de uma maratona de degustação de cervejas (42 tipos em uma tarde, sem mentira!) sem sentir que minhas papilas gustativas estavam exaustas.

E bom, meus amigos, essa é uma ótima razão para largar o cigarro.

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