Como as minas enfrentam o machismo na cultura canábica
Alice e Maria Eugênia, criadoras do Instagram @girlsingreen420. Foto: Carolina del Blue

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Drogas

Como as minas enfrentam o machismo na cultura canábica

"Mas você sabe mesmo bolar?"

Com 4/20 logo aí, na próxima sexta-feira (20/04, pô), a VICE Brasil, em parceria com a Bem Bolado, resolveu apresentar cinco dias de matérias especiais sobre a situação da legalização no Brasil que batizamos de Semana Canábica. Entre 16 e 20 de abril, nossa coluna Baseado em Fatos apresenta os artigos, culminando com um documentário. Além disso, o endereço vai agrupar todas as nossas informações prévias e futuras sobre o universo da maconha.

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A guerra às drogas é a principal responsável pelo encarceramento de mulheres, principalmente negras e pobres. Dentre as 42,3 mil brasileiras presas, 60% estão lá por tráfico de drogas, segundo os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). O lugar que essas mulheres ocupam no tráfico é muitas vezes ligado aos homens de suas vidas: elas transportam maconha em pequenas quantidades para seus companheiros e familiares presos ou assumem papéis desempenhados por eles antes da prisão.


O tratamento às usuárias por parte da polícia acumula inúmeros relatos de revistas indevidas e assédio moral. Não só. Quem é mulher e curte fumar a erva provavelmente já passou por alguma situação machista em rodas de beck ou em ações do dia a dia que envolvam a cannabis. Aqueles “pequenos” machismos da vida de qualquer mulher que quebre algum estereótipo de gênero.

No rolê, tudo começa na hora de decidir quem vai bolar. Conversando com algumas minas que fumam, saquei que não é difícil aparecer aquele engraçadão que desafia a mina da roda. “Um cara falou ‘Mas você sabe mesmo bolar? Não quer que eu bole pra você?’", conta Carol*, estudante de arquitetura. "E depois que bolei ele ainda disse ‘Caralho, pra uma mina até que você bola bem'."

Tem também aquele sem noção que pula as minas na roda, outros que passam o beck falando “sabe passar goma?” e muitos que simplesmente não conseguem entender como uma mulher pode saber tanto. “Surpreende quando eu falo que sei o que é extração, os diferentes métodos que existem e qual a diferença entre cada um deles. É engraçado ver a galera surpresa que a pretinha não fuma só baseado cheio de amônia e borrachudo”, conta Mariana*, que tem 23 anos e é formada em publicidade.

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"Pra uma mina até que você bola bem"

Infelizmente os relatos não ficam só nesses pequenos machismos do rolê. Entre as mulheres com quem conversei, muitas contaram situações semelhantes em que o contato, o dealer, não entende que elas não estão interessadas neles e sim no produto que estão vendendo. “Fui fazer um corre sozinha, marquei com o cara na frente de uma livraria e quando ele foi me encontrar, além de me xavecar ficou mandando mensagem depois", relembra Gabriela, 23, publicitária. Com a advogada Maria* foi pior: ”Uma vez um cara passou a mão em mim quando fui pegar beck na biqueira.”

As soluções pra alguns desses lances já estão começando a aparecer, ainda bem. As minas têm preferido recorrer a outras minas pra fazer seus corres.

Mariana* conta que começou a passar cannabis de forma orgânica na época da faculdade: “Eu fumo bastante e as pessoas que convivem comigo sabem que fumo coisa boa, então começaram a me procurar e falar que queriam fumar tal extração e perguntavam onde podiam conseguir". Nessas, ela começou a ir atrás de corre "por gentileza". Até que se questionou se valia a pena se colocar em risco sem ter nada em troca. “Então comecei a passar com a ideia de só pagar pela cannabis que eu fumo", pontua.

"Como vocês entendem tanto de haxixe? Aposto que é macho tentando se passar por mina."

Que o tráfico nunca foi só na biqueira todo mundo sabe. A classe média brasileira usa desde maconha prensada até a flor que veio da Califórnia ou do Uruguai. E a internet tem sido grande aliada. Para Mariana, a internet "está transformando o tráfico tanto de informações quanto de drogas, porque amplia as conexões".

A questão pontual de ser uma mulher também exige cuidado. "Me sinto muito mais segura por só passar pra mulheres em pequenos grupos em plataformas online. Faz toda a diferença. Ainda mais eu, como mulher negra. A gente sabe que a corda estoura pro lado do mais fraco", menciona Mariana.

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"Tento sempre passar pequenas quantidades e busco não viver disso. Porque não é nisso que acredito. Não quero virar estatística com todos os privilégios que eu tive de formação, de estudar em escolas particulares.”

A mulher maconheira como objeto da indústria

Se formos pensar na indústria da cannabis em geral, a situação piora. O meio é hiper masculinizado e coloca a mulher maconheira como objeto. No Instagram isso fica bem claro: mulher gata, nua – ou vestindo uma calcinha com a planta canábica – e fumando um baseado na cama é o maior clichê dos Instas canábicos.

Até o público de contas do Instagram voltadas para mulheres às vezes acaba sendo invadido por caras atrás de maconheiras gostosas. Alice e Maria Eugênia tiveram esse problema com a @girlsingreen420, um espaço de troca de informações entre mulheres sobre extrações, redução de danos e cultura canábica ao redor do mundo. Tudo em português e inglês. Só tinha um lance: 64% de seus seguidores eram homens. Então, elas convocaram suas seguidoras mulheres a marcarem outras mulheres que pudessem curtir o conteúdo da página: “A gente recebia muita mensagem dizendo: 'Duvido que vocês sejam mulheres. Como entendem tanto de haxixe? Aposto que é macho tentando se passar por mina'", contam. Isso acabou as incentivando a criar um espaço coletivo de representatividade para mulheres no meio canábico.

O jogo virou, e agora as minas são maioria entre os seguidores. “A troca que eu tenho com as mulheres é bem interessante. Recebo mensagens no direct do Instagram o dia inteiro. Muitas dúvidas, elogios e assuntos mais sérios também”, diz Alice, que é psicóloga e sabe mais sobre extrações do que você e todos os seus parças.

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"Dentre as 42,3 mil brasileiras presas, 60% estão lá por tráfico de drogas"

Esse ano ela participou de um curso do Frenchy Cannoli, um consultor, escritor e educador na arte tradicional de fazer hash, e era a única mina do curso. “Fui pro Spannabis, em Barcelona, e um dia antes fiz um curso do Frenchy Cannoli para aprender a fazer bubble hash, que é o ice –feito sem solvente, só com água e gelo. Em um grupo de 40 pessoas, eu era a única mulher. Me senti até um pouco intimidada no começo. Se o ramo da cannabis já é masculino, o dos concentrados é mais ainda. Conheço pouquíssimas mulheres que fazem haxixe. Duas meninas incríveis da Califórnia, uma que foi aprendiz do Cannoli, a @cherryblossom_belle, e a @thedankduchess, que também é muito foda.”

Feminismo e antiproibicionismo

A política proibicionista tem impacto direto na vida das mulheres. O tratamento às usuárias por parte da polícia acumula inúmeros relatos de revistas indevidas e assédio moral. A guerra às drogas é a principal responsável pelo encarceramento de mulheres, principalmente negras e pobres. Segundo os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), dentre as 42,3 mil brasileiras presas, 60% estão lá por tráfico de drogas. O lugar que essas mulheres ocupam no tráfico é muitas vezes ligado aos homens de sua vida: elas transportam maconha em pequenas quantidades para seus companheiros e familiares presos ou assumem papéis antes desempenhados por seus companheiros depois de serem presos.

Desde 2012 alas feministas vêm sendo criadas nas marchas da maconha de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, com o lema de que "a proibição mata e o machismo também", dando voz ativa às mulheres e LGBTs.

*Os nomes das entrevistadas foram trocados.

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