O vilarejo que comemora a Páscoa com uma pancadaria quase generalizada

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O vilarejo que comemora a Páscoa com uma pancadaria quase generalizada

Todo ano, pessoas se juntam na cidade de Lanchkhut, na Geórgia, para participar do Lelo, um dos esportes mais antigos e violentos do mundo.

Fotos por Robert Cooper.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

Centenas de homens cercam o Padre Saba, tensos. Uma mistura inflamável de álcool, adrenalina, Deus (Ortodoxo) e sabe mais o que corre em suas veias e vaza pelo suor neste dia quente de primavera. Os homens se focam na grande bola preta de couro que está nas mãos do padre. Eles estão agachados, prontos e ansiosos para explodir. Um grupo começa a gritar "Lelo, Lelo, Lelo". Do nada, uma vaca surge da multidão e anda na direção do padre, como se o animal entendesse que algo sagrado, mais ou menos, está acontecendo. Um dos caras chuta a vaca clandestina, que volta para a multidão. Uma pistola dispara, e o Padre Saba arremessa a bola preta de 15 quilos no ar. É assim que o Lelo, um esporte sangrento anual georgiano, começa na Georgia: com uma bola e um estouro.

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Faz sentido que no dia em que os georgianos comemoram a ressurreição, eles joguem um jogo que os faça sentir vivos.

Enquanto desce do céu, a bola parece uma abóbora de couro gigante. Ela é recheada de areia e serragem, uma mistura que depois é ensopada com vinho sagrado e a bola costurada. Todos os jogadores também estão cheios de vinho, e sua beligerância é quase palpável no sol quente da tarde. Quando a bola atinge o chão, um caos infernal explode imediatamente enquanto a multidão se fecha e começa a se atacar. Muitas mulheres, crianças e idosos gravitam ao redor, longe do centro da treta, formando um tipo de círculo. A maioria dos homens faz o oposto, criando um aglomerado de colisão perpétua que vai continuar pelas próximas horas, enquanto eles perseguem a bola e tentam carregá-la para um "gol" improvisado, encerrando o jogo.

Todo ano na Páscoa Ortodoxa — 1º de maio este ano — a briga deslancha nas ruas pavimentadas que passam por Lanchkhuti, uma cidade da região de Guria na Geórgia. O jogo, se é que dá para chamar assim, é um amálgama de rugby, batalha e mosh pit. A violência é íntima, mas não pessoal. Faz sentido que no dia em que os georgianos comemoram a ressurreição, eles joguem um jogo que os faça sentir vivos.

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Não há regras no Lelo. Há alguns costumes vagos. O objetivo é levar a pesada bola de couro até um dos dois riachos, ou "lelos", que ficam nos limites opostos da cidade e funcionam como gol. O jogo não acaba enquanto isso não acontecer. Os dois riachos ficam a uma distância igual do centro da cidade, onde o Padre Saba começa a partida. Há 300 anos, os homens georgianos perseguem a bola de Lelo, às vezes se ferindo gravemente e ocasionalmente morrendo. No futuro, muitos georgianos provavelmente morrerão na busca. Isso é algo entendido por todos que jogam; é a tradição.

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Durante a partida de Lelo, a cidade é dividida com uma linha imaginária que se enraizou na mente dos residentes de Lanchkhut como se fosse um desfiladeiro. Só os moradores de Lanchkhut e das cidades vizinhas sabem quem está em qual time, apesar de pessoas de toda a Geórgia virem até aqui participar. Todo mundo — seja seu irmão, sua mãe, seu filho — cuja casa fica do outro lado dessa linha se torna seu inimigo. Um lado ou time é chamado "De Cima", o outro "De Baixo". Não há uniformes, nada que marque de que lado o jogador está.

Entre os dois rios fica a principal via de Lanchkhuti, que é fechada na Páscoa para o Lelo. Paradas de ônibus, jardins e até varandas das casas são consideradas parte do campo, o que dá ao esporte uma vibe de guerrilha urbana. Se um jogador quer diminuir a velocidade, ele pode jogar a bola numa área cercada. Simplesmente ficando no caminho, você se torna parte do jogo; você está jogando. Se não sair da frente, você será empurrado, pisoteado, arrastado, convidado a tomar vinho de uma garrafa plástica, ou tudo isso ao mesmo tempo.

Quando o padre começa o jogo, a bola é raramente vista por olhos humanos. Quem a encontra se vê instintivamente tentando agarrá-la e segurá-la. Os participantes são consumidos, esmagados contra o asfalto, presos embaixo de uma pilha humana com pouca chance de escapar. Ano passado um senhor de meia idade morreu assim. Seu nome era Gocha Pirtkhalaishvili e ele teve um ataque cardíaco fulminante quando ficou preso dentro de uma massa de jogadores.

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Segundo a tradição, no final da partida a bola é deixada no túmulo da pessoa mais recente a morrer na Páscoa passada. Este ano a bola foi colocada no túmulo de Pirtkhalaishvili. Ano que vem uma nova bola será feita, e um novo jogo vai começar. Apesar da tragédia ocasional, não há muita conversa sobre tornar o Lelo mais seguro. Todo mundo com quem falei durante a partida disse que o verdadeiro significado e espírito do jogo é "tradição", mesmo que isso signifique um sacrifício humano acidental de vez em quando.

Também há muito mais estratégia do que você esperaria: os jogadores mais velhos e experientes comandam os mais jovens, muitos deles com medo (portanto bebendo constantemente), na batalha. No espetáculo deste ano, a VICE notou dois líderes diferentes comandando o movimento do jogo: Gela "o General" Pirtkhalaishvili e Nona "a Rainha" Chkhaidze.

Nona "a Rainha" Chkhaidze.

Chkhaidzer tem 65 anos. O neto e a neta vieram acompanhar a avó de outro vilarejo para abraçar o caos do Lelo. Durante o jogo, ela estava sozinha, de pé atrás dos homens carregando a bola, o lugar mais perigoso para se estar. Em certo ponto, ela literalmente empurrou jogadores para frente e gritou para onde e como eles deveriam se mover.

Ela disse que está jogando este ano em homenagem ao irmão, que morreu recentemente. "Ele amava muito esse jogo", ela disse. "Ele está jogando com a gente agora."

Gela Pirkhalaishvili, o "General" do time De Baixo.

"Jogo desde criança, e sou um dos líderes", nos disse Pirtkahalaishvili, um homem grande e loiro incrivelmente em forma. "Fazemos as regras: Você não pode bater numa pessoa caída. E quando alguém cai e se machuca, todo mundo levanta as mãos. Estamos controlando tudo. Também desenvolvemos uma estratégia de como roubar a bola dos oponentes."

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O "General", como parece que ele é conhecido na cidade, passa a maior parte do dia perseguindo a bola e gritando ordens para os colegas de time até seu rosto ficar vermelho. Sua liderança mostra resultado e o lado De Baixo ganha pela primeira vez em vários anos. A Rainha foi derrotada.

"Me sinto perfeito. Enquanto estiver vivo, sempre vou jogar", disse Pirtkhalaishvili assim que o jogo terminou. "Mas [Lelo] não é seguro. Somos todos loucos, por isso jogamos. Jogamos por orgulho. Temos sangue de guerreiro, mas não somos invasores como os mongóis. Estamos defendendo algo e esse jogo é meio que uma reprodução disso — se defender do inimigo. Há momentos em que tenho medo, mas isso me torna mais forte. Sinto uma responsabilidade com meus ancestrais quando jogo."

Dato Kilasonia, vice-presidente da Federação Lelo.

"O Lelo pode ter três mil anos, talvez mais", diz Dato Kilasonia, vice-presidente da Federação Lelo, que ajuda a organizar o evento toda Páscoa. Outros dizem que referências ao jogo aparecem pela primeira vez num poema do século 12. "Temos a mesma genética dos nossos ancestrais. Por isso jogamos Lelo. É um ancestral do rugby. Desde que a Geórgia se tornou um país cristão, as pessoas jogam Lelo em eventos religiosos.

"Muitos anos atrás, os georgianos jogavam Lelo para se aquecer antes da batalha. Todo dia o exército georgiano joga Lelo. Esse é um dos três jogos mais antigos do mundo. Se um homem morre jogando esse jogo, sua família sente que ele morreu na batalha, que ele se sacrificou."

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Koba Pirtkhalaishvili, um jogador veterano de Lelo de 64 anos.

A história do Lelo, como você pode imaginar, inclui muitas lendas.

"Muitos anos atrás, a bola caiu num poço e vários homens pularam atrás dela", me disse Koba Pirtkhalaishvili, um jogador veterano de Lelo. Ele também me contou seu momento favorito: "Tinha um homem chamado Solomon, muito alto e forte. Ninguém conseguia tirar a bola dele. Então uma senhora muito esperta pegou uma lâmina a cortou a calça dele. A calça caiu e quando Solomon se abaixou para levantá-la, eles pegaram a bola dele".

O arcebispo Mirian Pirtkhalaishvili.

Mas nem todo mundo está satisfeito com o status quo do jogo.

"Nunca joguei", disse Mirian Pirtkhalaishvili, o arcebispo do vilarejo, que assistiu outro padre começar o jogo horas antes. "Acho que deveria haver pelo menos algumas regras, e que o jogo deveria ser mais civilizado.

"Por exemplo, teve um ano em que eles quiseram homenagear um velho jogador de Lelo chamado Kosta Oragvelide, então pediram que ele começasse o jogo oficialmente jogando a bola. Quando entregaram a bola a ele, ela era tão pesada que o idoso não conseguiu segurar e caiu no chão. Todos os jogadores pularam em cima dele para pegar a bola. Ele acabou com quatro costelas quebradas e nunca mais conseguiu andar. Ele morreu pouco tempo depois."

No final do jogo, depois que o time De Baixo venceu, encontramos um jovem georgiano de 20 e poucos anos deitado no meio da estrada perto do rio, fumando um cigarro. Sua perna estava claramente quebrada e um grupo estava tentando convencê-lo a colocá-la na sarjeta para ficar mais elevada. O jovem estava cansado demais e com muita dor, e simplesmente se recusava a se mover. Oferecemos carregá-lo até um táxi para levá-lo ao hospital, mas ele recusou educadamente. Em vez disso, alguém entregou uma cerveja, o que ele aceitou. Antes de ir embora, perguntamos "Se você soubesse que isso ia acontecer, você ainda teria jogado?"

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"Claro", o cara respondeu, enquanto tomava um gole da cerveja e dava um trago no cigarro. "E vou voltar ano que vem."

Mais fotos do Lelo abaixo.

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Tradução do inglês por Marina Schnoor.

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