Quando a moda se tornou tão obcecada com colaborações?

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Quando a moda se tornou tão obcecada com colaborações?

Uma investigação sobre o fenômeno colaborativo mundo fashion.

Esta matéria foi originalmente publicada na i-D .

Aqui vão apenas algumas das colaborações de moda que aconteceram em 2016: Uniqlo e Lemaire, Alexander Wang e adidas, Palace e adidas, Gigi Hadid e Tommy Hilfiger, Guess e A$AP Rocky, Raf Simons e David Sims, Raf Simons e Robert Mapplethorpe, Riccardo Tisci e Nike, Gucci e Gucci Ghost, Balmain e H&M, Rihanna e Puma, HBA e PornHub, Christopher Kane e Crocs. Aí você tem toda a coleção Primavera/Verão 2017 da Vetements: cada peça foi feita em conjunção com outra marca. A maior parte da coleção passada do Gosha também, quando ele imaginou gigantes do sportswear italianos em seu mundo pós-soviético. A Supreme quase só lança trabalhos criados com outra marca, artista ou estilista.

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Hood by Air x PornHub.

Devem ser milhares de chamadas de vídeo sincronizadas e reuniões de café da manhã, isso sem falar na temporada de desfiles de moda masculina no final de janeiro nos EUA, que apresentou praticamente uma colaboração por dia nas passarelas. Gosha (de novo), que trabalhou com Stephen Jones e adidas em seu desfile em Kaliningrado. Junya Watanabe continua seu experimento na reinvenção da marca com a North Face e Carhartt. Cottweiler e Reebok na Pitti. Bobby Abley e Power Rangers. Christopher Raeburn e MCM. Balenciaga e Bernie Sanders (brinks, rs). E claro, o paizão, Louis Vuitton e Supreme. Tem alguma coisa aí, alguma coisa sinistra. Será que podemos chamar o fenômeno de colaborações de Arquivo X?(Sacou?)

Mas essa onda de colaborações não é um todo homogêneo. Podemos dividi-la toscamente em algumas categorias. Há aquelas que confundem high e low, ou high fashion e high street. É óbvio o que as duas partes ganham com isso: dinheiro, credibilidade, alcance. Desde a primeira colaboração de Karl Lagerfeld com a H&M 15 anos atrás, todo mundo da Topshop a Target, Comme des Garçons a Margiela [C&A aqui no Brasil], se juntaram ao culto do diretor criativo a um preço acessível. Essa onipresença (diga uma marca que não fez uma linha de high street) significa que a necessidade de confundir esses limites está praticamente morta. Mas, claro, isso também matou a surpresa e a emoção — com poucas exceções.

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Comme des Garçons x Cindy Sherman.

Além disso temos as colaborações celebridade x marca, que se explicam por uma exploração mútua benéfica para as duas partes. A coisa da moda x esportes também faz sentido, como um tipo de elitismo utilitário — tudo muito raro, edição superlimitada, mas vagamente acessíveis. Há também as collabs, por exemplo, entre artistas e estilistas que compartilham uma sensibilidade estética, trabalhando juntos para atingir algo que não conseguiriam sozinhos.

Isso não quer dizer que não há parcerias genuinamente criativas por aí, mas o grande número delas certamente deixa nosso juízo sobre as identidades de marca um tanto nubladas. Então, por que estamos passando por uma febre das colaborações? Todo mundo virou BFF de repente ou é só uma questão de grana mesmo? Atingimos o pico das colaborações? Quanto falta ainda para a fadiga das collabs?

Olhando para trás, podemos encontrar colaborações de moda de raízes mais altruístas e artísticas do que o que estamos testemunhando agora pode sugerir.

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Yves Saint Laurent x Piet Mondrian.

Talvez o primeiro caso tenha sido Schiaparelli x Dali. A estilista italiana usou a iconografia do grande surrealista em suas criações nos anos 30, os exemplos mais famosos sendo o Lobster Dress e o Shoe Hat. Essa mistura estava na raiz de muitas das colaborações que aconteceram entre os anos de Schiaparelli e a sobrecarga de 2017. Yves Saint Laurent e Mondrian, naquele vestido, claro, ou mais recentemente, Comme e Cindy Sherman trabalhando juntos nos anos 90, se destacam como momentos de beleza memoráveis.

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A arte e a moda formaram a raiz histórica das collab, ou, pelo menos, seu extremo mais representativo, e é fácil entender o porquê. Num nível comercial, a alta moda e as artes sempre tiveram apelo com cerca de 1% do mundo — basicamente os ricaços do jet set. A arte empresta à moda uma certa credibilidade, enquanto a moda dá à arte um apelo com as massas. O que, como você pode imaginar, exerce uma atração para certo tipo de artista. Enquanto arte e moda formavam parcerias mutualmente benéficas, as marcas dificilmente tendiam a trabalhar umas com as outras. Em vez disso, nos anos 70 e 80, Moschino — ou a Iceberg sob JC de Castelbajac, por exemplo — estava envolvida num jogo de gato e rato de pirataria; se apropriando e substituindo com um espírito alegremente anárquico imagens pescadas da cultura pop, das artes, da cultura de massa e da alta costura.

Moschino x Roy Lichtenstein via Museum FIT.

Franco Moschino, especialmente, tirou tanto da história da moda quanto da cultura pop, misturando coisa como Chanel, Roy Lichtenstein e estampas construídas com itens cotidianos. Ele fazia roupas com um desrespeito saudável pela postura metida da elite fashion. Sua atitude anarquista enraizou a ideia de colaboração de moda como um jeito de esmagar barreiras imaginadas.

A moda masculina, em particular, sempre esteve cheias de colaborações desse tipo. Talvez porque a moda masculina tradicionalmente dependa muito dos uniformes restritos ao tribalismo — dos yuppies aos punk rockers — e isso entrincheirou códigos, fosse o corte do terno ou os patches numa jaqueta de couro. A colaboração começou como uma maneira de explorar o método tradicional de se vestir.

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Como na cena atual, Raf foi quem fez isso melhor, mesmo não sendo pioneiro. No final dos anos 90 e começo dos 2000, ele refinou e, praticamente sozinho, criou um estilo autêntico na moda masculina além da ideia da alfaiataria Savile Row ou da moda de luxo e heritage wear. Raf apresentou a moda masculina como algo que também deveria ser levado a sério. Seu trabalho durante esse período era baseado no que hoje pensamos como "colaboração" — seu trabalho com Peter De Potter, por exemplo, ou suas coleções fazendo referência a Manic Street Preachers ou Kraftwerk. Mais tarde, ele faria uma integração mais extensiva de influências em seu trabalho; Brian Calvin é um dos artistas em que ele baseou coleções.

Raf Simons x Sterling Ruby

Mas o exemplo mais famoso é a colaboração de Raf com Sterling Ruby em sua coleção Outono/Inverno de 2014, que parece a reunião colaborativa de mentes mais completa que tivemos a sorte de testemunhar. Uma coisa que ajudou, claro, foi Sterling ser um fabricante prolífico de roupas, transformando os extras descartados de seu trabalho em moda de estúdio. A colaboração foi mais que apenas uma questão de dinheiro, foi artista e estilista criando juntos. Raf repetiu o truque na temporada passada com sua coleção Robert Mapplethorpe, mas dessa vez ele estava tratando suas roupas como paredes onde as imagens do fotógrafo eram penduradas.

Se Raf definiu o nível mais alto [dessas parcerias], o bastão vem sendo passado e carregado em centenas de direções. Podemos ser cínicos ou otimistas sobre as interações nas quais a humilde colaboração criativa fashion acabou. Chegou num beco sem saída criativo? Tente uma colaboração! O dinheiro está acabando? Tente uma colaboração! Precisa se reinventar ou rejuvenescer? Tente uma colaboração! Pegando um pouco pesado, claro, mas às vezes é fácil sentir que várias colaborações por aí são mais uma questão de branding e exercício de marketing do que diálogo criativo genuíno. Mas algumas se destacam.

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Entre a variedade de high fashion meets high street do momento, Uniqlo x Lemaire parece feita sob medida para as duas marcas. A abordagem do estilista francês tem se integrado completamente ao gigante japonês da fast fashion, o que se destaca ainda mais pelo falto de que Lemaire tomou um papel maior na companhia recentemente — indo além da etiqueta Lemaire x Uniqlo para uma colaboração unificada e mais duradoura. Por outro lado, pense em algo como o trabalho de anos de Palace e adidas. Essa collab é claramente benéfica para ambos, já que a adidas tem um alcance, expertise e orçamento que a Palace pode utilizar. Além disso, quem pode realmente culpar marcas menores por trabalharem com marcas estabelecidas se isso significa que as duas podem manter as luzes acesas?

Palace x Adidas

É um ímpeto diferente, você pode imaginar, que move as colaborações em sportswear mais recentes de Gosha. Para um estilista tão obcecado por símbolos quanto ele, parece natural investir em subverter e recontextualizar a iconografia fashion através de suas lentes pós-soviéticas. O mesmo com a desconstrução e reinvenção contínua de Junya Watanabe de peças clássicas de marcas icônicas como Levi's ou North Face.

Sem citar nomes, algumas colaborações parecem menos holísticas. Num sistema fashion acelerado e deformado, há uma necessidade de se manter relevante o ano inteiro — algo muito difícil se você depende da rotação tradicional a cada seis meses de desfiles e lançamentos de produtos. Como você garante cobertura da impressa e interesse do público no meio tempo? Uma marca grande tem opções de fazer pré-coleções e campanhas publicitárias chamativas, o que seria financeiramente impossível para marcas mais independentes de streetwear. Um lançamento de colaboração no meio da temporada indicado nas redes sociais e o próprio buzz disso fazem todo sentido.

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Também faz sentido que o consumidor fique cada vez mais obcecado com raridade, já que uma projeção do eu via Instagram ia desejar colocar as mãos no lançamento mais exclusivo vindo de uma colaboração como meio de se destacar. Mas todo mundo está usando as peças exclusivas mais difíceis de achar, e isso leva a um tipo de fadiga da colaboração e homogeneidade criativa. Quando todo mundo está ocupado demais sendo único, o que é único se torna onipresente. É o tipo de dicotomia que levou à ascensão do normcore algum tempo atrás.

Na era digital, a velocidade de tudo — incluindo ciclos de ação e reação — só aumenta. Circulamos por tendências a uma velocidade cada vez maior. E isso nas costas de 15 anos de colaborações entre estilistas x street wear, o mais democrático e utilitário que a alta moda pode ser. O choque dos preços acessíveis também passou.

Supreme x Louis Vuitton

Sendo assim, Supreme x Louis Vuitton parece ser a collab para acabar com todas as collabs. Ou, pelo menos, quem vai tentar superar isso, né. A coleção contém tudo que define a colaboração nos últimos 18 meses, no volume máximo. Duas marcas, no topo de dois mundos muito diferentes, construídas sob sua própria iconografia poderosa, juntas, conseguiram de algum jeito criar algo mais poderosamente icônico que as duas separadamente.

Digo que essa é a colaboração que vai acabar com todas as colaborações porque simplesmente parece que não há mais para onde ir, criativamente, em termos de impacto, nada tão chocantemente emocionante para mapear ou propor. E se colaborações são parcialmente um jeito de construir uma ponte entre mundos diferentes, então a collab LV x Supreme é um jeito de dizer que esses mundos diferentes não estão mais tão distantes.

Tradução: Marina Schnoor

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