Os refugiados que ajudaram Snowden a escapar de Hong Kong estão sendo punidos injustamente

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Os refugiados que ajudaram Snowden a escapar de Hong Kong estão sendo punidos injustamente

Depois de abrigarem o ex-funcionário da NSA, quatro adultos e três crianças estão sendo perseguidos pelas agências e autoridades que deveriam protegê-los.

Esse artigo foi publicado originalmente em alemão no Motherboard Alemanha

Pen drives e HDs criptografados cheios de documentos roubados da NSA cobriam a cama de uma suíte no luxuoso Hotel Mira, em Hong Kong. Junto de Edward Snowden estavam dois jornalistas do The Guardian, a documentarista Laura Poitras e sua câmera. Ele havia planejado tudo nos mínimos detalhes.

Quando Snowden deu um rosto e nome ao vazamento de informações da NSA, em junho de 2013, todos os detalhes — exceto um — haviam sido levados em conta: para onde ele fugiria e como ele chegaria lá.

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O rosto de Snowden brilhava em todas as telas do mundo quando o telefone de Robert Tibbo, advogado especializado em direitos humanos que atua em Hong Kong, tocou na calada da noite. Snowden, o homem em todos os noticiários, estava preso em um quarto de hotel, caçado por todos. Tibbo não pensou duas vezes: havia apenas um lugar onde ele poderia escondê-lo.

Ali começava uma corrida contra o tempo, uma perseguição saída de um romance de espionagem. Apesar da relevância do caso de Snowden, o local onde ele buscou refúgio imediatamente após sua icônica entrevista permaneceria em segredo por mais de três anos, até a publicação de uma reportagem investigativa do National Post em novembro de 2016.
Para Tibbo, havia apenas um lugar onde seu cliente ficaria seguro. Algumas horas depois, ele ajudou Snowden a escapar, ileso para uma das favelas da cidade, onde muitos de seus clientes vivem. Snowden permaneceria lá por cerca de duas semanas. Deixaria seu esconderijo apenas para embarcar em um avião rumo a Moscou, numa operação extremamente sigilosa.

Durante essas duas semanas em Hong Kong, apenas oito pessoas sabiam onde Snowden estava: Tibbo e os refugiados Ajith, Vanessa, Supun, Nadeeka e três crianças. Sem a ajuda deles, Snowden poderia não ter sobrevivido àquelas duas semanas.

Enquanto o mundo admirava a coragem de Snowden, sete pessoas arriscavam suas vidas para salvá-lo. Aqueles que o abrigaram compreendiam sua situação; afinal, eles também eram refugiados.

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Apesar de milhares de pessoas terem entrado em contato com o martírio dessas sete pessoas, a situação dos refugiados de Hong Kong só piorou. Nos últimos anos, as autoridades têm infernizado a vida dos quatro adultos e das três crianças que ajudaram a salvar Snowden.
"Sempre me preocupei em arrastar outras pessoas para o buraco comigo", confessou Snowden em uma entrevista para o National Post publicada no ano passado.

Ao que tudo indica, esse medo era justificado. Nas últimas semanas, o Motherboard entrevistou esses sete refugiados e Tibbo, advogado de Snowden, para descobrir como suas vidas mudaram desde que suas identidades foram reveladas por investigadores do jornal alemão Handelsblatt e do National Post. Segundo eles, a situação piorou drasticamente.

"Lutamos pelos direitos de todos os refugiados do mundo. Queremos um futuro melhor para todos eles, não apenas para a gente"

A história dessas sete pessoas lança luz sobre a tão ignorada crise global de refugiados: mais de 300 páginas de documentos obtidos pelo Motherboard mostram como o Estado de Hong Kong está ignorando refugiados que sofreram ameaças e torturas em seus países de origem.
Hong Kong terceirizou o cuidado de seus refugiados a uma ONG com sede em Genebra. A International Social Services, também conhecida como ISS, presta serviços a mais de 120 países. A filial local é conhecida como Social Services Hong Kong (ISSHK, na sigla original). A organização é um importante ponto de encontro para os refugiados locais, servindo como um intermediário entre eles e o governo de Hong Kong.

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Mas entrevistas com esses refugiados e Tibbo — que hoje atua como seu advogado —, além de relatórios independentes sobre o bem-estar dos imigrantes locais, revelam que a organização e seus funcionários não oferecem a seus tutelados cuidados adequados ou oportunidades econômicas.

Em uma declaração enviada em resposta a essas alegações, a ISSHK afirmou que "devido a uma preocupação com a privacidade de nossos beneficiados, não comentamos casos individuais", negando qualquer ação punitiva contra os refugiados com base em "supostas interações com e/ou assistência dada ao Sr. Edward Snowden".

A história de Snowden é importante, mas ela já foi narrada milhares de vezes. Aqui está a história das pessoas que o abrigaram, em suas próprias palavras:

Supun, Nadeeka e um de seus filhos. Crédito: ANTHONY WALLACE/AFP/Getty Images

OS PRIMEIROS ANFITRIÕES DE SNOWDEN: SUPUN E NADEEKA

Durante sua infância no Sri Lanka, o caminho de Supun Thilina Kellapatha até a escola era enfeitado pelas cabeças de alunos decapitados, uma tentativa da polícia de deter os movimentos insurgentes do país. Supun já foi um jogador de críquete de sucesso, mas aos 32 anos, ele deixou o país na tentativa de fugir de uma guerra civil — sua família estava sendo perseguida por apoiar o partido político "errado". Supun chegou em Hong Kong há 12 anos, e desde então ele tenta obter asilo.

Sua namorada, Nadeeka, também veio do Sri Lanka. Aos 18 anos, Nadeeka começou a costurar roupas de bebês para marcas como a Nike e a Marks & Spencer, seis dias por semana. Por volta dessa época, ela foi perseguida — e estuprada — por uma pessoa influente no governo do Sri Lanka.

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O casal se conheceu em Hong Kong. Ambos seus filhos, um de cinco anos e outro de oito meses, nasceram no país, o que faz deles apátridas. Após sua entrevista com Poitras, Snowden encontrou refúgio no apartamento desse jovem casal. Quando o ex-funcionário da NSA apareceu em sua casa, eles cederam sua única cama.

Desde então, a situação dos dois só piorou. No começo de janeiro, a pequena família foi obrigada a deixar sua casa — investigadores do Sri Lanka haviam viajado para Hong Kong para prender os dois refugiados. Supon falou com o Motherboard pelo Skype, em uma ligação feita de um esconderijo arranjado por seu advogado. Seu relato pode ser lido abaixo.

Motherboard: Conte-nos como você está se sentindo.
Supun: Eu não me sinto seguro. Cada dia é um desafio. Minha namorada, Nadeeka, está muito assustada. Fomos ameaçados e nosso advogado nos instruiu a deixar nossa casa imediatamente. No momento estamos fugindo de um lugar para outro. Minha filha me pergunta quando vamos voltar para casa, ela também está com muito medo. Ela não entende por que não pode ir para a escola. Ela vê outras crianças de uniforme na rua e fica querendo ir junto.

Como foi esconder Snowden em sua casa?
Ele impressionou a gente. Minha filha ainda fala sobre ele. Eu percebi desde o primeiro momento que ele tinha um jeito de herói, um ar de homem honesto. Mas eu também entendi na hora que ele seria não apenas um risco para nós, mas também uma oportunidade única. Se não tívessemos ajudado ele, ninguém nunca ouviria falar sobre nós. Então tentamos não pensar nas consequências.

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Você chegou a contar para alguém que estava escondendo Snowden?
Não. Nós mantivemos esse segredo por mais de três anos. Não contamos nem para nossa família. Foi bem difícil. Meus pais sabiam que ele estava em Hong Kong e mencionavam ele durante nossas conversas, as pessoas no ônibus falavam sobre ele. E eu não podia contar para ninguém que aquele cara estava morando na minha casa!

Como esse encontro com Snowden afetou vocês?
O Snowden mudou minha vida. Antes de conhecer ele, eu já havia desistido de mim mesmo. Ele tem muito a ensinar. Ele não tenta se auto-promover, ele não tem um exército de seguidores, ele é um cara simples. Ele nunca desistiu. O que ele fez foi muito perigoso, e ele sofreu muita oposição. Mas ele seguiu com muita paciência e coragem, porque ele sabia que estava fazendo a coisa certa. E hoje muitas pessoas sabem disso, já até fizeram um filme sobre ele [ Snowden, de Oliver Stone]. Ele renasceu das cinzas como uma fênix. Eu quero ser assim. Quero continuar lutando, por mim e minha família. Essa história teve dois efeitos: por um lado, temos medo de represálias, do que o futuro nos reserva. Mas por outro, esse encontro nos trouxe esperança.

O que você acha do fato de Snowden estar em relativa segurança e vocês não?
Quando nos despedimos eu pedi a ele: Por favor, fale sobre nós quando você estiver em segurança, eu quero ter um futuro. Ele respondeu: "Claro, eu juro que vou fazer isso". E ele realmente fez, ele realmente me ajudou. Ele não disse mais nada nos últimos três anos, acho que ele pensou que a situação havia melhorado. Mas ela não melhorou. Ainda estamos aqui.

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O que poderia ser feito para melhorar sua situação?
As autoridades não respeitam os moradores das favelas. Eles só entenderam que o mundo estava de olho neles, e que eles tinham que nos ajudar, depois do lançamento do filme [ Snowden, do diretor Oliver Stone]. É claro que eu tenho medo de que eles nos acusem de algum crime e recusem nosso pedido de asilo. Mas eu sou um ser humano e tenho meus direitos — foi isso que aprendi com Snowden e meu advogado. Não vou lutar com minhas mãos, mas com meus direitos e palavras.

Sei que devo muito à ISSHK. Se não fosse por eles, eu não teria o que comer. Não quero parecer ingrato. Graças a eles, pude morar nesse país por 12 anos.
Não quero que outros refugiados achem que estamos monopolizando a atenção da mídia. Queremos ajuda para todos nós. Eu adoraria que nossa mensagem atingisse todos os refugiados, não apenas aqueles que falam inglês ou cantonês. Quero estender nossa solidariedade a todos eles, quero evitar qualquer hostilidade entre nós. Lutamos pelos direitos de todos os refugiados do mundo. Quero um futuro melhor para todos eles, não só pra gente.

Como seria seu futuro ideal?
Sei exatamente o que quero fazer: estudar. Quero andar com meus próprios pés. Não sei se isso será possível aqui em Hong Kong, mas não tenho para onde ir.

A COMPLICADA RELAÇÃO ENTRE HONG KONG E SEUS REFUGIADOS

Hong Kong, uma região administrativa especial da China, tem uma baixíssima taxa de aceitação de refugiados: segundo o The South China Morning Post, apenas 0.56% de todos os pedidos de asilo são aceitos. Muitas vezes, os refugiados esperam por anos — ou até décadas — para viver legalmente no país.

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"O sistema é incrivelmente injusto", afirma Tibbo. Na maioria das vezes, o processo de pedido de asilo se arrasta por quase uma década. Nesse meio tempo, os refugiados lutam diariamente para sobreviver, ao mesmo tempo em que são retratados na mídia chinesa como a raiz de todo mal — opinião corroborada por muitos habitantes de Hong Kong.

Os documentos obtidos pelo Motherboard revelam uma disputa em curso entre os representantes legais dos refugiados e a ISSHK, a organização contratada pelo governo para auxiliar os 60.000 refugiados que vivem em Hong Kong. Infelizmente, relatos de refugiados locais indicam que a organização é omissa, e que muitos de seus tutelados não têm recebido o devido auxílio.

Muitos relatam que, em diversas ocasiões, a organização desligou o acesso à energia elétrica sem aviso prévio. O apoio financeiro aos refugiados também pode ser suspenso sem motivo, e por vezes eles passam semanas se alimentando apenas de arroz e frango congelado.

"Os refugiados são marginalizados a tal ponto que eles se tornaram os intocáveis da sociedade de Hong Kong"

Os alojamentos oferecidos aos refugiados são indescritíveis. Algumas fotos divulgadas pela ONG Vision First mostram casas com goteiras, insetos, portas sem fechaduras e pouquíssimo espaço.

Quando questionado em relação a essas acusações, um porta-voz da ISSHK respondeu ao Motherboard com uma declaração que continha um link para o site da ONG, além da seguinte passagem:

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A ISSHK nega veementemente as seguintes acusações: que a ISSHK estaria em falta com requerentes de não-expulsão, aos quais temos a obrigação de fornecer assistência humanitária adequada em conformidade com os termos da assistência a requerentes com pedidos pendentes no Departamento de Assistência Social do Governo de Hong Kong; e a acusação de que quaisquer indivíduos estariam sendo "punidos" pela ISS-HK com relação à suposta interação/assistência dada ao Sr. Edward Snowden. Essas acusações são absolutamente errôneas e sem fundamento.

Todos os questionários entregues pelos nossos assistentes sociais seguem nosso padrão de avaliação de auxílio, segundo o qual avaliamos as necessidades e demandas de todos nossos clientes. A assistência humanitária é fornecida mediante a conformidade com os atuais critérios de elegibilidade.

De forma a proteger a privacidade de nossos clientes, não comentaremos casos isolados.

Caso algum cliente necessite de nossa assistência, ele pode entrar em contato com nossos assistentes sociais. Estamos dispostos a fornecer abrigo e alimentos para aqueles em situação de emergência.

Para Snowden, a situação de abandono vivida por muitos refugiados criou o esconderijo perfeito. Como essa população é negligenciada e difamada pela sociedade, seus alojamentos — "localizados no meio da cidade, onde ninguém nunca pensaria em procurar", nas palavras de Tibbo — revelaram-se o esconderijo ideal para o homem mais procurado do mundo
"Os refugiados são tão marginalizados que eles se tornaram os intocáveis da sociedade de Hong Kong", disse Tibbo em uma palestra no Chaos Communication Congress, um congresso hacker ocorrido em dezembro de 2016.

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Quando Hong Kong, uma ex-colônia britânica, foi devolvida à China em 1997, a realidade de seus refugiados não era tão drasticamente lamentável quanto ela é hoje, afirma um relatório da Anistia Internacional. Em Hong Kong, os refugiados vivem em condições desumanas, habitando favelas ao lado de lixões, criadouros de porcos ou alojamentos construídos no centro da cidade. O governo de Hong Kong não permite que os refugiados trabalhem, e aqueles que são pegos desrespeitando a lei podem ser condenados a até dois anos de prisão.
Em contrapartida, Hong Kong é uma das cidades mais caras do mundo. Alguns anos atrás, o "povo enjaulado" de Hong Kong chamou a atenção da mídia: o mundo foi bombardeado com fotos de pessoas sem documentos ou emprego vivendo em jaulas por até US$1580 por mês.

A ISSHK se recusou a nos mostrar os contratos que explicitam o escopo da parca assistência dada aos refugiados, mas no site da ONG, sua missão é descrita de forma detalhada: "Os serviços oferecidos […] incluem necessidades básicas como alimentação, transporte e moradia". No entanto, os documentos obtidos pelo Motherboard mostram que isso nem sempre é verdade.

Tibbo, que já representou centenas de refugiados, nos forneceu um resumo inquietante da atuação da ONG: "A ISSHK é obrigada a atender as necessidades básicas dos requerentes de asilo. Mas as autoridades já deixaram claro que eles não se importam se os refugiados morrerem de fome".

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Da esquerda para direita: Ajith Puspa, refugiado do Sri Lanka; Vanessa Rodel, das Filipinas; Supun Thilina Kellapatha, do Sri Lanka; e Robert Tibbo, advogado. Crédito: ISAAC LAWRENCE/AFP/Getty Images

O GUARDA-COSTAS: AJITH PUSPA

Ajith Puspa teve bons motivos para fugir do Sri Lanka. Em seu país, ele foi estuprado repetidas vezes por um superior no exército, sendo em seguida preso e torturado pela polícia militar durante uma tentativa de fuga. Mesmo gravemente ferido, ele conseguiu escapar – mas aquele seria apenas o início de uma odisseia que está longe de ter fim.

Após fugir do Sri Lanka, Ajith pretendia seguir até o Canadá. No entanto, seu atravessador o abandonou no meio do caminho. Hoje, Ajith vive há 12 anos em um quarto sem janelas no centro de Hong Kong, esperando o dia em que o Estado irá aceitar seu pedido de asilo.

 "Estou com muito medo"

Sua experiência no exército fez com que ele fosse escolhido como guarda-costas de Snowden em junho de 2013. Foi Ajith quem buscou Snowden no centro de refugiados da ONU, onde ele havia preenchido um pedido de asilo às pressas após fugir de seu hotel. Ajith também escoltou Snowden no trajeto entre seus esconderijos.

Ajith acredita estar sendo vigiado. Desde que sua identidade foi revelada ao público, Ajith diz estar sendo seguido. Segue, abaixo, seu relato ao Motherboard:

Motherboard: Você teve algum problema com as autoridades após seu contato com Snowden ter vindo à público?
Ajith: Sim, infelizmente. Perdi minha carteira há algum tempo. Meu vale-alimentação do mês estava lá dentro. Fui direto para a polícia e levei o boletim de ocorrência para a ISSHK. Meu assistente social, que em outras ocasiões havia me elogiado por ter ajudado Snowden, me tratou de forma extremamente fria. Ele disse que não iria substituir meu cartão, nem naquele dia nem nunca, e que eu deveria ter tomado mais cuidado."Por quantos dias eu vou ficar sem meu cartão? Como eu vou me alimentar?", perguntei. Ele me ofereceu algumas latas de comida, mas elas são reservadas para os refugiados que chegam muitos desnutridos. Eu não aceitei. Elas só dariam para dois dias, de qualquer jeito.

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Que meios você tem para se defender desse tipo de tratamento injusto?
É difícil ser ouvido quando se é um refugiado. Como eu já tinha passado por coisas parecidas antes, entrei com uma queixa formal no mesmo dia, para que minha situação fosse avaliada. Mas quando eu fui entregar minha queixa, a ISSHK se recusou a aceitá-la [ Nota do Editor: A queixa datada foi apresentada ao Motherboard .]

Por que eles não aceitaram sua queixa?
Ela estava escrita na minha língua materna, o cingalês. Meu inglês não é muito bom. Eles me mandaram embora dizendo que eu precisava contratar um tradutor, caso contrário eu podia esquecer minha queixa. É claro que eu teria que pagar esse tradutor; mas eu não posso pagar. Eu não tenho dinheiro nem para tirar uma cópia.

E o que aconteceu depois?
Graças a meu advogado e algumas reportagens sobre o caso, eles emitiram um cartão três semanas depois. Eles se sentiram pressionados, aí me deram uma carta na qual um grupo de advogados afirma que eles nunca mais vão emitir um cartão novo para mim. [ Nota do Editor: Essa carta de intimidação foi apresentada ao Motherboard].

O advogado de Ajith respondeu a isso com um balançar de cabeça. "Eu não entendo", disse Tibbo. "Por que uma suposta organização sem fins lucrativos com 20 advogados luta contra um refugiado e se desdobra para negar o pouco que ele precisa para sobreviver, e que na verdade ela é obrigada por lei a fornecer?". O Motherboard enviou essa e outras perguntas à ISSHK, mas até o momento não obtivemos nenhuma resposta.

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Enquanto isso, Ajith continua a lutar por seus direitos. Em uma outra entrevista, um funcionário lhe disse que ele deveria apresentar os recibos de todos os alimentos consumidos por ele durante o mês, caso contrário seu cartão seria bloqueado. "Você não vai fazer isso!", gritou Tibbo, visivelmente irritado, durante nossa entrevista por Skype. "O que você come não é da conta deles!"

"Eu estou com medo", disse Ajith, sua voz miúda.

Robert Tibbo, advogado, ao lado de seus clientes refugiados. Crédito: Jayne Russle

O ADVOGADO: ROBERT TIBBO

Os refugiados não são os únicos prejudicados; seu advogado também está sendo lesado. "Minha esposa diz que eles queriam que eu morresse", conta Tibbo.

Tibbo não deixou claro se ela está falando de forma literal; mas é evidente que o governo não hesita em afogar o advogado em burocracias.

De acordo com documentos apresentados ao Motherboard, o governo reabriu 30 processos entre setembro e outubro de 2014, muitos dos quais estavam encerrados há anos, "e exatamente na época em que eu havia saído do país para uma viagem curta ", disse Tibbo ao Motherboard durante nosso encontro em Hamburgo.

De repente, um governo anteriormente letárgico passou a exigir respostas imediatas do advogado: documentos precisavam ser entregues, cartas precisavam ser escritas, dossiês precisavam ser lidos, compromissos precisavam ser honrados e prazos, mantidos. Caso contrário, seus clientes corriam o risco de serem deportados.

Algo parecido aconteceu após nosso encontro no Congresso Hacker de Hamburgo, entre o Natal e o Ano Novo de 2016. "Quando eu voltei para a Alemanha, recebi uma carta. A carta ameaçava deportar Supun e Nadeeka caso eu não entregasse uma série de documentos. O prazo era de apenas um dia", contou Tibbo, claramente exausto, durante uma ligação por Skype feita após seu pouso em Hong Kong.

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ANTHONY WALLACE/AFP/Getty Images

A MÃE SOLTEIRA QUE MORA AO LADO DE UM PROSTÍBULO: VANESSA RODEL

Vanessa Mae Rodel, nascida nas Filipinas, trabalhava como empregada doméstica em Hong Kong. Durante uma visita a seu país de origem, ela foi sequestrada e estuprada. Alguns anos mais tarde, ela conseguiu voltar para Hong Kong. Nesse meio tempo, ela perdeu seu emprego. Junto com sua mãe e sua filha Keana, de quatro anos, Vanessa espera o resultado de seu pedido de asilo — feito há 14 anos — em um pequeno apartamento de Hong Kong.

 'Meu Deus', eu pensei, 'o homem mais procurado do mundo está no meu apartamento!'. Mas faria tudo de novo

Quando questionada sobre Snowden, Vanessa disse ao Motherboard via Skype que não hesitou em abrigá-lo nem por um segundo— mesmo não sabendo quem era aquele jovem angustiado que seu advogado tinha trazido até sua porta. "Quando ele me pediu para comprar o jornal, no dia seguinte, eu entendi quem ele era. 'Meu Deus', eu pensei, 'o homem mais procurado do mundo está no meu apartamento!'. Mas eu faria tudo de novo".

Vanessa, você pode me descrever seu estado atual?
Minha vida não está muito boa. Não me sinto segura na minha casa. Moro do lado de um bordel. Minha filha tem cinco anos, e ela ouve tudo que acontece lá por causa das paredes finas. Além disso, o prédio está sempre cheio de homens estranhos. E meu provedor de eletricidade está me cobrando 7.000 dólares de Hong Kong (cerca de US$900), uma quantia que eu não tenho.

Como isso aconteceu?
Meu antigo senhorio embolsou o dinheiro que ele recebia da ISSHK. Minha assistente social tem me tratado muito mal desde que ela descobriu que eu ajudei Snowden. Eles cancelaram minha ajuda financeira, a única renda que eu, minha mãe e minha filha temos.

Por que você acha que essas duas coisas estão ligadas?
Quando a notícia se espalhou, fui chamada para uma entrevista na ISSHK. Meu dossiê continha várias reportagens sobre a estadia de Snowden em Hong Kong, e muitas delas narravam nossa situação. Minha assistente social me submeteu a um interrogatório. Ela me perguntou: "Por quanto tempo você escondeu Snowden?", e eu respondi que infelizmente não podia revelar essa informação, e que ela deveria entrar em contato com meu advogado. Desde então, eles me negam qualquer tipo de auxílio, sempre sob falsos pretextos.
Pedi que a ISSHK me realocasse para outro apartamento. Além de ser do lado de um bordel, os jornalistas descobriram meu endereço. Eles são muito invasivos e desrespeitosos: às vezes entro na minha cozinha e encontro um jornalista. Não me sinto segura aqui.

E qual foi a resposta das autoridades?
Minha assistente social descobriu que haviam criado uma campanha de doações para a gente na internet. Ela me disse: "Você tem uma página no GoFundeMe. Você é famosa! Você não precisa mais da gente". Hoje, eu não recebo mais assistência para mim e minha filha, estou com dívidas e não posso trabalhar. E eu não posso voltar para meu país. Nossas vidas estão em risco. Não sei o que vai acontecer com a gente daqui para frente.

UM FUTURO INCERTO As histórias dessas três famílias não são excepcionais, mas sim exemplos típicos do tratamento dado a refugiados em Hong Kong. A ilha já sofreu represálias da ONU em decorrência de suas violações dos direitos humanos.

Hong Kong "trata, já de partida, todos seus requerentes de asilo como sanguessugas", diz um relatório confidencial do comitê contra tortura da ONU obtido pelo Motherboard.

"O comitê observa, com pesar […] que o governo de Hong Kong impede seus refugiados de trabalharem legalmente, obrigando-os a viver abaixo da linha de pobreza".

Atualmente, um grupo de advogados está tentando levar essas três famílias para o Canadá. Lá, os refugiados acreditam que eles terão mais chances de receber asilo. O atual chefe do Ministério da Imigração, Refugiados e Cidadania do Canadá é um refugiado: hoje cidadão canadense, Ahmed Hussen fugiu da Somália para o Canadá em 1993.

Outra opção é pedir asilo na Alemanha. Tibbo está esperançoso. "A Alemanha já recebeu quase um milhão de refugiados, eles podem receber mais sete, não é?"

Tradução: Ananda Pieratti