Grace Jones e a força do sexo

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Música

Grace Jones e a força do sexo

Jones escreveu sobre sexo como se não pudesse e não quisesse viver sem ele. E por isso devemos agradecê-la por cada corpo pintado, cena de bondage e mamilo aparente que vemos hoje.
Daisy Jones
London, GB

Matéria original do Noisey UK .

Grace Jones tinha nove anos de idade quando a encontraram escondida dentro de um barril. Ela estava junto de um garoto de sua cidade natal na Jamaica, ambos descobertos por alguém da congregação de seu avô da igreja pentecostal. A comunidade levou duas semanas para decidir como a puniria. Em suas palavras: "Uma natural curiosidade sobre como eu me sentia de verdade — e não como me mandavam sentir — levou a um julgamento que implicava que havia quebrado a lei e enfurecido seu malicioso Deus. Os golpes vieram secos. A punição era a maneira de eles nos manterem na linha".

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Não é de se admirar que ela tenha fugido para Nova York ao completar 18 anos de idade, deixando seu cabelo crescer na forma de um afro, botando pra dentro toneladas de ácido e transando casualmente o tanto quanto desejasse. Mas isso não quer dizer que sua nova vida nos EUA era sinônimo de liberdade irrestrita. Enquanto sua criação religiosa pesou de forma de mais extremada em sua vida, a sociedade ao seu redor também apresentava uma opressão sexual bastante palpável, ainda que menor. Desnecessário dizer, mas ser mulher — especialmente uma mulher negra nos anos 60 — era (e é) ter que se conter de alguma forma, porque expressar desejo sexual sem vergonha alguma não é apenas desconfortável para algumas pessoas, como chega até mesmo a ser assustador; adjetivo que foi utilizado para descrever Grace Jones várias vezes ao longo dos anos.

Em recente artigo para o Hazlitt, Jess Zimmerman comentou que "A mulher de baixa manutenção, a ideal, não tem apetite algum". Ela continua: "O apetite de um homem pode ser grande, mas o de uma mulher é sempre voraz: sua fome sempre vai além porque não deveria existir. Se ela quer comida, é uma glutona. Se quer sexo, é uma vadia. Se ela quer cuidado afetivo, é uma escrota exigente, ou pior, uma 'attention whore', um amálgama de carência sexual e afetiva, gananciosa não apenas por ser comida e paga, mas pelo que há de mais imperdoável, por ser notada". E agora, quatro décadas após Jones ter desembarcado na cidade, ao mesmo tempo em que a BBC lança um documentário para celebrar sua vida e carreira, tais ideias estão mais relevantes que nunca.

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Jones nunca reprimiu seu apetite sexual e inclusive sempre foi notada pelo mesmo. De fato, ao longo dos anos seu nome tornou-se sinônimo de liberdade sexual ao ponto de que só ver seu penteado e maçãs do rosto proeminentes já é o bastante para fazer alguém corar. Desde sua voz grave que sempre soa como se estivesse prestes a fazer alguma revelação chocante até a maneira como ela alterna entre masculina e feminina de forma que parece tudo uma coisa só, Jones tem as manhas de injetar sexualidade em tudo que faz. Mas o mais importante de tudo, desde o começo de sua carreira, é que ela sempre escreveu sobre sexo como se simplesmente não pudesse nem quisesse viver sem ele.

Faz sentido que Jones acabasse por se apresentar ao mundo em 1975 com "I Need a Man", faixa que veio junto de um clipe em que ela rodopiava lentamente ao ritmo da disco com uma espécie de armadura de borracha prateada ao passo em que cantava "Ele entenderá o que sinto bem no fundo" como uma alienígena sensual esquisitona vinda de Vênus. A música não chegou ao topo das paradas, mas logo virou arroz de festa nos clubes gays underground de Nova York, tão próximo do desejo queer quanto do seu; um hino em homenagem ao desejo sexual reprimido que se soltava numa época em que o sexo homossexual havia acabado de sair da ilegalidade.

Falando com a Pitchfork, Tom Moulton, produtor do início da carreira de Jones, descreve como foi vê-la cantando a faixa em uma boate gay: "De repente os holofotes focam nela. Ela começa a cantar 'I Need a Man' e o lugar inteiro surta. Ao final ela lança 'Não sei vocês, queridos, mas eu preciso de um macho!'. Pense em alguém que sabia como comandar um público. O que quer que fosse necessário. Ela era muito determinada'. Em suma, Jones não expressava apenas sua sexualidade nua e crua, mas muitas vezes convidava outros a expressarem a sua também, qualquer que fosse.

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Claro que "I Need Man" estava longe de ser pornográfica. A maior parte dos lançamentos de Jones desta época eram mais suaves e menos diretos do que o que viria depois, quando ela deixou a disco de lado em favor de um estilo new wave mais andrógino e provocativo nos anos 80. "Pull Up to the Bumper", por exemplo, fala claramente de sexo anal (por mais que Jones insista que se trata de estacionar carros". 'Chega no meu para-choques baby, com sua enorme limusine preta', ronrona, sua voz surgindo sobre os ritmos percussivos com jeitão reggae. "Acelera, ajeita, me deixa lubrificar, chega no meu para-choques, baby".

Fora o fato de que Jones é a única pessoa no mundo que poderia deixar uma letra como essa remotamente sensual, era um tanto quanto subversivo ouvirmos mulheres cantando sobre sexo anal. Cacete, seria subversivo mesmo hoje. Mas naquela época, quando a crise do HIV estava devastando comunidades inteiras e mulheres mal cantavam sobre o tema, era um enorme tabu. E não só Jones cantava sobre o tema, como também sobre querer aquilo, exigindo que alguém a satisfizesse, com instruções detalhadas. Ouvi-la cantar "chega no meu para-choques baby e encaixa bem no meio" sem um pingo de timidez era ousadia pura — o que levou a música a ser banida da maioria das rádios comerciais.

Sua positividade sexual não se prendia somente às letras — permeia tudo que Grace fez. Durante a primeira e única vez que a encontrei, ela exclamou que sexo e música devem andar sempre juntos porque são a mesma coisa.  "Não dá pra separar música ou sexo!" gritou em minha direção, os olhos arregalados. Estávamos em um restaurante em South London e ela havia acabado de pedir um prato enorme de costeletas de cordeiro com molho, uma taça grande de vinho tinto e várias doses de Sambuca de sobremesa. Grace deu cabo da refeição rapidamente, não deixando a taça de vinho quieta, parando só pra contar histórias ou explodir em gargalhadas. Ao passar uma única noite com Jones, seja num restaurante ou ao vê-la de topless com bambolês no palco, fica claro que ela é a paixão pela vida em pessoa.

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Mesmo que você não seja um grande fã dela, provavelmente já viu suas famosíssimas fotos feitas por Keith Haring, Andy Warhol e Jean-Paul Goude. Suas colaborações com Goude em especial renderam algumas de suas imagens mais icônicas, em que seus membros bem lubrificados parecem se esticar sem fim, hipersexualizando-a; sua negritude destacada; sua androginia amplificada. Desde então muitos apontaram o trabalho de Goude como exploratório, mas a própria Jones sempre disse que Goude apenas capturou e celebrou a energia que ela exalava e que sentia orgulho de sua colaboração. "Esta energia brutal, animalesca em partes disco, em partes teatro da crueldade, duas formas lúcidas de apresentar um certo apetite pela vida", escreveu posteriormente. "Era uma descrição visual de um animal impossivelmente original, possível apenas neste planeta, uma centauro-fêmea emergindo de um abismo desconhecido, confrontando os medos dos outros. Talvez você consiga ver Jean-Paul se apaixonando por mim, fazendo de tudo uma carta de amor visual". Grace Jones nunca quis se frear e Goude a encorajou.

É difícil imaginar como seria o panorama pop sem Jones.  Estaria FKA Twigs pendurada ali, estilo bondage, em seu clipe de "Pendulum" se Jones não tivesse sido fotografada por Goude da mesma forma? Teria Rihanna surgido toda monocromática em "Rude Boy" se Jones não tivesse sido pintada nua por Keith Haring naquela época? Estaria Janelle Monáe de camisa de botão em "Tightrope" caso Jones não tivesse sido pioneira da estética andrógina? Kim Kardashian teria levado a internet ao chão na capa da Paper magazine  se Jones não tivesse posado da mesma forma décadas antes? Nicki Minaj se contorceria em uma jaula no clipe de "Stupid Hoe"  se Jones não tivesse sido imortalizada em posição idêntica para a capa do controverso livro de Goude de 1982 Jungle Fever? Estaríamos nós lotando o instagram com a hashtag #freethenipple contra a objetificação sexual não fosse o banimento de "Nipple to the Bottle"  de Jones das rádios em 1982 pelo mesmo motivo? Lady Gaga existiria?

Celebrar como Jones abraçou sua sexualidade ao longo dos anos vai além disso; trata-se de celebrar tudo que veio depois dela; tudo que não existiria caso ela não tivesse rompido tantas barreiras. Pois Jones não usou seu sexo apenas para seduzir o olhar masculino – ela exercitou e transformou em arma aquilo que ela reconhecia como seu por direito. Desde o princípio ela escolheu cair fora de uma sociedade que subjugava mulheres ao papel de objetos sexuais passivos, fetichizava negras e esperava que mulheres contivessem seu apetite sexual. Mas o mais importante disso tudo, ela decidiu que o que quer que fosse acontecer seria de acordo com suas vontades e regras, da forma mais ousada que qualquer um poderia imaginar.

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(Ilustração por John Garrison)

Tradução: Thiago "Índio" Silva