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reportagem

Por que o número de infectados com HIV ainda cresce no Brasil

Beto Volpe, ativista e portador do vírus há 28 anos, explica como o combate à epidemia regrediu no país.

Foto: Divulgação

"Ao contrário da criança responsável que eu parecia ser, sempre tive um grande prazer em me colocar em situações de risco." É assim que Beto Volpe, 56, começa sua biografia Morte e Vida Posithiva (Realejo, 286 págs., R$ 45) lançada em 2016. No livro, o ativista paulista morador da cidade de São Vicente narra sem culpa os 28 anos em que vive com o vírus HIV, tempo em que ele não apenas enfrentou muitas vezes a Tal — como ele se refere à morte —, como se tornou um dos principais ativistas brasileiros ligados à causa da AIDS.

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Hoje, com a volta do crescimento do número de infectados no Brasil, sobretudo entre os jovens, a lição de Beto em relação ao HIV é ainda mais necessária. "Todo o movimento organizado nesses 30, 35 anos está sofrendo com a banalização da epidemia [do HIV], me diz ele.

Dados divulgados pelo Ministério da Saúde no final de 2016 dão conta de que, na última década, o número de infectados com o vírus dobrou entre jovens com 20 a 24 anos. As mortes em decorrência da AIDS, no entanto, caíram 42% entre 1995 a 2015. E outro número que chama atenção no balanço é a previsão de que mais de 800 mil brasileiros vivam com o HIV, dos quais cerca de 260 mil pessoas não tratam a doença.

"Depois da descoberta do coquetel, os investimentos em pesquisa pela cura caíram 90%" — Beto Volpe

"Na verdade, a gente está cometendo o mesmo erro que foi cometido com a tuberculose no século passado", continua Beto, que falou comigo por telefone. O ativista lembra que, assim como para a tuberculose, também descobriram tratamento para a AIDS e o resultado, segundo ele, é que "hoje a tuberculose é a segunda causa de morte em vários segmentos sociais. E com a AIDS está sendo feita a mesma coisa, depois da descoberta do coquetel, os investimentos em pesquisa pela cura caíram 90%".

E ainda que hoje se morra menos em decorrência da doença e o tratamento com coquetel no país seja ofertado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) desde 1995, Beto — que já passou por 23 cirurgias, venceu o câncer duas vezes e foi uma espécie de cobaia para tratar os inúmeros efeitos do HIV — entende que além da falta de pesquisa no tratamento, há também menos campanhas de conscientização.

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"Existe um movimento dos jovens não tomarem remédio [ao saber que estão com HIV]", diz o ativista. "[Os jovens] vão começar a tomar remédio quando ficam ruim. Da mesma forma que faltam programas de prevenção às infecções, faltam programas de adesão ao tratamento."

Capa da biografia de Beto em que ele narra os quase 30 anos como portador do vírus. Foto: Divulgação

Para Beto, não basta apenas ter medicação acessível, é preciso um acompanhamento que mostre aos jovens infectados, por exemplo, por que é tão importante aderir ao tratamento. "Existe uma tese [de uma pesquisadora] da USP que demonstrou que perto de 90% das mulheres que tiveram um câncer de mama diagnosticado desenvolveram transtornos e sintomas análogos ao transtorno pós-traumático", explica. "O que faz pensar que com o HIV é diferente? E ainda tem o estigma sexual em cima. Então a forma como a pessoa recebe o diagnóstico, o acompanhamento, grupos de adesão ao tratamento — que eram comuns na década de 1990 —, isso acabou, não existem mais os programas de adesão ao tratamento. Por falta de esclarecimento [o jovem não toma o remédio sozinho] e não basta o médico falar que tem que tomar remédio".

Beto, inclusive, quando soube que era portador do vírus em 1989, conta que foi ao infectologista — o mesmo responsável pelo prefácio de seu livro — para começar o tratamento. Mas ainda assim, na sua biografia, ele também relata toda a confusão que viveu na época, a ponto de abusar da cocaína e do álcool neste período. Só depois da fase que ele chama de porra louca, Beto se tornou mais um adepto mais dedicado ao tratamento — e foi aí também que a militância virou sua função maior.

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Em várias passagens do livro, o ativista lembra que tirar a culpa dos portadores do vírus é essencial para um tratamento mais eficaz. Tirar a culpa sobre o estigma sexual que ronda a doença e a culpa sobre a ideia do tratamento perfeito. O início do tratamento, diz Beto, é difícil. "Você começa [o tratamento] com uma droga que provoca alucinação", explica. "Então você já imaginou começar [a se tratar] com um medicamento que odeia estar tomando? Ele provoca alucinações, dá sensação de realidade aos sonhos — e nessa hora você não está sonhando com o Brad Pitt, você sonha com um Tiranossauro." Os efeitos, conta o ativista, tendem a desaparecer com o tempo, "mas começar um tratamento e ter que aguentar dois, três meses disso, não é todo mundo que aguenta."

Às vésperas de mais um Carnaval, a propaganda de prevenção à AIDS feita pelo governo tem como protagonista um casal heterossexual e um dos destaques da campanha fala sobre como é possível manter o vírus indetectável. Para Beto, esse tipo de conscientização — que não atinge o principal grupo de infectados pelo HIV, jovens homens gays — acontece por "pressão das igrejas cristãs e do próprio Congresso Nacional", não à toa campanhas de prevenção voltadas para o público homossexual foram barradas graças à pressão de grupos religiosos.

"O Brasil continua apresentando acréscimo de infecções, então, é uma linha ascendente ainda, enquanto o mundo está numa corrida descendente, por isso esses programas de conscientização — tanto para pessoas com HIV quanto para a sociedade em geral — devem sofrer ainda mais com essa visão conservadora", coloca Beto. "Isso sem falar da dificuldade de financiamento com a restituição da PEC e o próprio desmonte do SUS."

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Para Beto, fica difícil tratar uma epidemia em que "as únicas alternativas de prevenção que temos visto são por via medicamentosa". Ele se refere ao uso cada vez maior da PEP, a medicação que pode ser tomada até 72 horas depois de fazer sexo desprotegido e que previne a contaminação pelo vírus; ou a PREP, outro medicamento que pode ser tomado antes do sexo desprotegido. "As iniciativas sociais, que são as ações diretamente feitas junto à população de travestis, de homossexuais, jovens homossexuais, não acontecem."

Como militante há mais de 30 anos, Beto também acredita que a fragmentação dos movimentos em inúmeros subgrupos atrapalha na luta pela causa. "No Encontro Nacional de Pessoas Vivendo com HIV [que aconteceu em dezembro de 2016], os jovens falavam que têm que substituir os antigos pelos novos", me disse Beto. "Aí, eu levantei e falei: 'Desculpa, interromper, eu estou extremamente triste porque eu sou de um tempo que o simples fato de ter HIV nos irmanava, o resto era detalhe. E o mesmo se aplica a diversidade sexual."

A solução? Para Beto, que no fim do seu livro rejeita carinhosamente o rótulo de "exemplo", é continuar informando, como ele tem feito nos quase 30 anos como portador do vírus. " A guerra é contra a epidemia", me diz ele. "E eu falo assim: 'tô de olho em você, continua aí estocado'. Eu estou há cinco anos com HIV indetectável."

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