​Por que maquiagem e cabelo viraram ferramentas políticas para as mulheres negras no Brasil
Foto: Felipe Larozza/ VICE

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​Por que maquiagem e cabelo viraram ferramentas políticas para as mulheres negras no Brasil

Em tempos de Kim Kardashian, não afinar lábios ou nariz é ouro.

Quando inventaram a maquiagem, os egípcios não buscavam alcançar somente um padrão de beleza. Eles acreditavam que os olhos maquiados ajudavam a reter a luz solar e evitar a poeira do deserto. Hoje, a pintura facial é meramente estética para boa parte das mulheres e dos (poucos) homens adeptos. Mas, para as mulheres negras, a maquiagem tem se tornado uma ferramenta política. É o caso da maquiadora Camila Lima, 23, que encontrou nas cores e nos pincéis uma forma de assumir sua identidade negra sem repelir ou disfarçar os próprios traços, como os lábios grossos e o nariz largo. Ainda que vivamos a "era do contorno", técnica que joga com tons claros e escuros para afinar e modelar partes do rosto e do corpo (até mesmo a nuca), popularizada, principalmente, por Kim Kardashian.

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A maquiadora Camila Lima. Foto: Felipe Larozza/VICE

Durante a adolescência, Camila comprava todo tipo de produto de beleza e nada parecia satisfatório. O objetivo principal era ficar mais parecida com a maioria das meninas do colégio particular em que estudava: brancas de cabelo liso. "Pensei que eu precisava me reconhecer", explica a profissional quando decidiu fazer um curso. "A partir daí, eu vi a possibilidade de trabalhar essa questão da mulher negra dentro da maquiagem."

A indústria brasileira de cosméticos ainda é cruel: a maioria das paletas de cores de bases e corretivos não contemplam todos os tons de pele negra, que variam dos mais claros até os mais escuros. A dificuldade para encontrar a tonalidade correta é tanta que boa parte das mulheres negras misturam produtos de tons diferentes para chegar até a cor adequada para o seu rosto.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Os preços exorbitantes também prejudicam as pessoas com pigmentação mais escura. "Quando você encontra produtos para pele negra, eles são de marcas gringas", pontua Camila. "Mas nem todas as meninas têm condições de pagar R$ 300 numa base." Para ela, a solução é que as marcas nacionais queiram expandir suas opções. "E realmente enxergar que existem tons de peles negros diferentes", complementa.

Durante a infância, a jornalista Nathalia Barbosa, 22, fuçava na caixa de maquiagens da mãe com curiosidade. Já na adolescência, a decepção com a tonalidade dos produtos disponíveis em lojas e farmácias refletia de maneira negativa. "Não tinha base e corretivo da minha cor. Eu usava lápis de olho, batom. Se eu passasse um pó, ficava parecida com uma múmia", conta. Somado à frustração, vinha o complexo com o cabelo, que nunca havia sido solto mesmo com procedimentos químicos feitos desde os nove anos de idade para alisar e domar os fios. "As pessoas falavam: 'Nath, eu nunca vi você de cabelo solto. Como é seu cabelo?' E eu falava que era feio, péssimo, duro, ruim'."

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A jornalista Nathalia Barbosa. Foto: Felipe Larozza/VICE

O primeiro passo pra mandar a vergonha do cabelo às favas e assumir sua negritude veio quando uma amiga, que também sempre alisou os fios, se mudou para o Rio de Janeiro, onde iria cursar a faculdade, e voltou com novidades. "Ela mandou uma mensagem com uma foto dela de cabelo crespo falando: 'Resolvi me libertar'", relembra a jornalista, que ficou em choque. Nathalia perguntou o que tinha acontecido e a amiga relatou que tinha ido a uma festa onde a maioria das pessoas eram negras e tinham "cabelos blacks maravilhosos". "Todo mundo vivendo e respirando a cultura, e eu ali com aquele cabelo liso. Me senti pobre. Me senti sem cultura. Eu não estava representando nada, não estava me representando, me encontrando", disse a amiga, que chegou em casa e decidiu assumir o próprio cabelo. A partir desse dia, Nathalia resolveu que também precisava de uma mudança.

Hoje, a jornalista está em processo de transição capilar, técnica que consiste em macetes ou até mesmo cortes de cabelo (às vezes mais radicais) para retirar toda a química gradativamente e receber os novos fios que começam a nascer. "É como me reencontrar dentro de mim mesma", fala, emocionada. "Aproveitei o Carnaval e coloquei tranças. Estou amando. Quero trocar de cor."

A jornalista Nathalia Barbosa. Foto: Felipe Larozza/VICE

Na internet, sites como o Cacheia não só incentivam mulheres de todas as cores a assumirem seus cabelos cacheados e crespos como dão dicas essenciais para conseguir largar a química – tarefa complicada pra muita gente que não desiste de alisar ou domar o próprio cabelo.

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Os tempos ruins durante a infância e adolescência, em que Nathalia ouvia piadas por ser negra, gorda e pobre, continuam na memória, mas dão ainda mais motivos para o brilho dos novos dias surgir com força. "Na escola, eu me sentia mal. Foi traumatizante. É muito cruel. As pessoas não tem noção de quão cruel é você inserir uma criança nesse lance de 'seu cabelo é ruim'."

A jornalista Nathalia Barbosa. Foto: Felipe Larozza/VICE

Hoje, sempre que o humor permite, ela recorre ao delineador verde ou azul e abusa de cores quentes na boca. "Uso batom roxo, laranja. A cor que eu quero. Não tenho essas regras de cor. É o que eu gosto, compro e passo", fala, taxativa.

A maquiadora Camila Lima. Foto: Felipe Larozza/VICE

O sentimento de rejeição é um dos principais fatores a desencadear doenças como a depressão. Há algum tempo, publicamos uma matéria explicando que pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Michigan descobriram que nosso cérebro responde à rejeição social liberando analgésicos naturais da mesma maneira que faz quando encara a dor física.

A maquiadora e antropóloga paulistana Ariane Molina, 30, acredita que toda mulher afrodescendente passa por um período de aceitação. Conhecer outras mulheres negras e debater esses temas, tantas vezes dolorosos, ajudam. "Quando estamos mais alinhadas politicamente com nossas ideias, nos respeitamos mais esteticamente", afirma.

A profissional Ariane Molina maquiando a cantora Elza Soares. Foto: Crewactive | Photography

Assim como a também maquiadora Camila, Ariane não gosta da ideia de esconder traços característicos. "Não faço uso de maquiagem corretiva para afinar nariz ou esconder o real do rosto. Gosto de valorizar pintas, sardas e cicatrizes."

Ela relata que a dificuldade de produtos adequados para a pele negra não está somente na indústria nacional. "Tenho algumas amigas modelos negras que precisam portar seu estojo de maquiagem diariamente pelo fato dos profissionais não disporem dos tons de pele mais retintos."

A profissional Ariane Molina maquiando a cantora Elza Soares. Foto: Crewactive | Photography

Recentemente, Ariane maquiou a cantora Elza Soares, que no ano passado balançou as estruturas da música citando a violência de gênero na faixa "Maria da Vila Matilde". "Ela gosta muito de maquiagem e opinou em todas as cores. Ela é muito versátil", relembra a maquiadora, que acredita que, há muito tempo, "há um padrão de embranquecimento que aprisiona a identidade" da mulher negra.

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