A amiga genial
Imagem: divulgação/HBO

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Entretenimento

O que esperar da série baseada na obra de Elena Ferrante

Para especialista que estuda a italiana, os espectadores mais apegados aos livros podem se frustrar.

Em novembro de 2015, passeando por uma livraria, me deparei com o livro A Amiga Genial, primeiro volume de uma tetralogia. Sentei em uma poltrona da loja e, quando me dei conta, tinha passado mais de uma hora lendo os primeiros capítulos, totalmente hipnotizada. O efeito de Elena Ferrante, pseudônimo da autora que assina a série napolitana, sob seus leitores é impressionante. Julgando o livro pela capa, parece mais um romance água com açúcar, mas a série de quatro livros conquistou 30 milhões de leitores pelo mundo. E agora ganhou as telas em uma série da HBO que estreia no Brasil no próximo domingo (25), às 22h.

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Em quatro volumes (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida), Ferrante narra a trajetória da amizade entre Lila e Lenu, duas meninas que vivem em um bairro periférico de Nápoles, na Itália. Da infância à vida adulta, acompanhamos as mudanças, a aproximação e o afastamento das personagens.

Serão quatro temporadas, uma por fase das vidas de Lenu e Lila, com oito episódios cada. A série foi gravada na Itália e a direção da primeira temporada é de Saverio Costanzo, escolhido pela própria autora para a missão de transformar as páginas em produto audiovisual.

Apesar de seu anonimato, Elena Ferrante participou ativamente da produção da série. Reclusa, a escritora não dá entrevistas. Um jornalista italiano tentou descobrir a verdadeira identidade de Ferrante, mas até mesmo os fãs foram contra a revelação. “Os livros estão assinados. Eu escolhi a ausência”, afirmou a autora em uma das raras entrevistas que deu, por intermédio de seus editores, ao New York Times.

Para entender o fenômeno e as expectativas em torno da produção seriada da tetralogia, conversamos com Fabiane Secches, 38, psicanalista e professora que vive o sonho de muitos fãs: fez da autora seu objeto de pesquisa e parte da sua profissão.

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A psicanalista Fabiane Secches. Foto: arquivo pessoal

Mestranda em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Grupo de Pesquisa de Crítica Literária e Psicanálise da mesma universidade, Secches se debruça sobre a relação entre a literatura de Ferrante e a psicanálise em sua tese, que será defendida em fevereiro. De sua pesquisa nasceram alguns cursos sobre as obras da escritora italiana. As aulas acontecem no centro cultural Tapera Taperá, no Sesc, na USP e no Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), todos em São Paulo, e abordam todas as obras da autora, que tem outros cinco livros publicados inclusive no Brasil.

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VICE: Qual a importância da Ferrante hoje? De onde vem a popularidade dela?
Fabiane Secches: A obra de Elena Ferrante parece dialogar tanto com a literatura popular quanto com o que o mundo acadêmico costuma classificar como alta literatura, o que é um fenômeno raro. A lista de admiradores é extensa e eclética, vai de Michelle Obama a James Wood, professor de Harvard e um dos principais críticos literários da atualidade. Wood escreveu um texto muito elogioso para a revista New Yorker, publicado em 2013, em que afirmava que Ferrante é autora de “romances memoráveis, lúcidos, ferozmente honestos”. Desde então o interesse por essa autora italiana ganhou novo fôlego em todo o mundo.

A tetralogia napolitana, sua obra mais célebre, foi traduzida para mais de 40 países e se tornou parte do imaginário popular, dando origem a um movimento apelidado de “Febre Ferrante”. O último volume da obra foi indicado a alguns prêmios literários importantes, como o Man Booker Prize International. O enigma em torno de sua “verdadeira identidade” também parece ter seduzido a imprensa e parte dos leitores, mas o que merece destaque é a qualidade da escrita.

Essa questão do anonimato também foi importante para a popularidade dela?
Em uma das entrevistas concedida por intermédio de seus editores, Ferrante defende que não escolheu o anonimato: “Os livros estão assinados. Eu escolhi a ausência”. E complementa: "Hoje, o que mais me interessa nessa escolha é preservar um espaço que parece repleto de possibilidades, incluindo experimentações técnicas. A ausência estrutural do autor afeta a escrita de uma maneira que gostaria de continuar a explorar".

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Em outra entrevista, Ferrante cita o texto “Totem e Tabu” (1913), de Freud, e relembra a história de uma mulher que parou de assinar o próprio nome temendo que alguém o usasse para se apoderar de sua personalidade. Essa mulher teria, pouco a pouco, parado de escrever por completo. Ferrante comenta que não chegou a esse ponto, que escreve e tem intenção de continuar a escrever, mas pondera: "(…) quando li essa história de doença, ela logo me pareceu sadiamente significativa".

Sendo uma pesquisadora sobre a autora, qual a sua expectativa para a série?
A adaptação da tetralogia teve um processo particular, porque Ferrante participou ativamente como consultora: seu nome está nos créditos entre os roteiristas, então podemos considerar que ela é parcialmente autora da série também. Embora a série dirigida pelo italiano Saverio Costanzo, um diretor jovem, de pouco mais de 40 anos, muito competente, seja uma nova obra, com características próprias, o diálogo entre ambas pode iluminar interpretações, intensificando a experiência.

Soube que a adaptação foi muito rigorosa quanto ao uso do dialeto napolitano, por exemplo, reconstruindo o dialeto falado na década de 1950, e também quanto à reconstrução de algumas áreas de Nápoles, como é o caso do Rione Luzzatti, bairro que teria inspirado o cenário principal da tetralogia.

Naturalmente, quando existe uma relação tão afetiva com uma obra literária, os espectadores têm apego às suas próprias experiências de leitura e invariavelmente terão frustrações: enquanto a literatura permite que cada um se relacione com o texto à sua maneira, a série nos mostrará os rostos e os corpos das personagens, os olhares e os gestos, os contornos delimitados dos ambientes. Do ponto de vista de uma análise crítica, o importante é entender que o livro é o ponto de partida, mas estaremos diante de uma outra obra, que pressupõe condensações, deslocamentos e transfigurações do texto que lemos.

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Você acha que a série será fiel aos livros? Isso é importante para o desenvolvimento da história ou existe certo limite para liberdade de criação em cima da narrativa da tetralogia?
Existem muitos caminhos para adaptar uma obra literária, mas, nesse caso específico, Ferrante parece ter se empenhado em manter o projeto muito ligado à obra de origem e a adaptação tentou ser bastante próxima do livro. Ainda assim, é preciso tomar decisões para transpor e recriar os efeitos do texto a partir de recursos próprios do meio audiovisual, então certamente teremos diferenças importantes.

Outras obras da Ferrante já foram adaptadas para filmes. Uma série é um formato mais ideal para uma história como a “A Amiga Genial”?
Talvez seja um formato interessante pela própria estrutura da obra, que foi publicada em quatro volumes ao longo de quatro anos. Durante a leitura, passamos cerca de mil e setecentas páginas com essas personagens: conhecemos seus afetos e desafetos, suas contradições e fragilidades de perto. É uma relação de intimidade que precisa de certo tempo para ser tecida. E também existe uma profusão de pequenas histórias que vão se arranjando em torno do eixo central, que é a história da amizade conflituosa de Elena e Lila ao longo de seis décadas: dos anos 1950 até os dias atuais.

Pode ser que a série funcione bem porque também exigirá mais tempo e mais comprometimento do espectador. De outro lado, existem obras volumosas e complexas, como Anna Kariênina e Guerra e Paz, de Tolstói, que foram mais de uma vez adaptadas para o cinema. Não seria impossível, mas exigiria outras decisões de direção e de roteiro.

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A tetralogia fala bastante sobre a competição entre Lenu e Lila e o clima de violência em que as meninas vivem em Nápoles. O leitor consegue sentir a tensão dessas relações lendo os livros. Acha que a série vai conseguir transmitir essa sensação para o público?
Acho que sim. Assisti ao primeiro episódio e a violência também está muito presente na série, de maneira bastante gráfica.

Você é psicanalista. Qual a ponte entre a literatura e a psicanálise? Como a Ferrante se encaixa nessa ligação?
A relação entre psicanálise e literatura é antiga: entre os autores mais citados por Freud em toda a sua obra estão Shakespeare e Goethe. Existem muitas vias de aproximação, mas no ensaio O poeta e o fantasiar (1908), Freud observa que os mecanismos de deslocamentos e de condensação, que são comuns aos processos inconscientes, como os sonhos e a brincadeira infantil, também estão presentes na escrita literária. Gosto bastante dessa hipótese.

Quanto à relação de Ferrante com a psicanálise, em “Frantumaglia” (antologia de entrevistas, cartas e outros textos de Ferrante), ela conta que o primeiro contato que teve com os escritos de Freud foi cedo, aos 16 anos, e que ficou muito impressionada. Menciona também a psicanalista inglesa Melanie Klein, passa brevemente pelo psicanalista francês Jacques Lacan e destaca o trabalho de Luce Irigaray, pensadora belga que transita entre a filosofia, a linguística e a psicanálise. Nessa mesma entrevista, Ferrante conta que o título original de seu primeiro romance, L’amore molesto, é referência a um texto de Freud, Sexualidade Feminina, de 1931.

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Como surgiu a sua pesquisa sobre a obra da Ferrante?
Começou durante a minha formação em psicanálise. A ambivalência da estrutura narrativa da Série Napolitana me encantou desde a primeira leitura, em 2015. Trabalhei em alguns artigos seguindo a linha de pesquisa de Crítica Literária e Psicanálise: o primeiro sobre a tetralogia, o segundo sobre Dias de abandono (2002) e o último sobre A filha perdida (2006), dois romances anteriores de Ferrante de que gosto muito.

O trabalho sobre a tetralogia inspirou meu projeto de mestrado e, há dois anos, iniciei formalmente a pesquisa no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob orientação da professora Aurora Bernardini, que acolheu minhas ideias iniciais e tem me ajudado a considerar também os aspectos formais, elementos mais literários da obra.

Para os fãs da autora, ver sua pesquisa e o curso que você ministra sobre ela é como viver o sonho. Como você fez da obra da autora parte da sua profissão?
A literatura sempre fez parte da minha vida, é uma companheira antiga. Mas o interesse de Ferrante por psicanálise permitiu que eu pudesse fazer essa aproximação de maneira respeitosa. Já os cursos (quer seja na USP, na Tapera Taperá, no SESC e outros) têm sido um desdobramento da vida como pesquisadora. Descobri que gosto muito dessas aulas: as trocas com as turmas têm sido muito valiosas durante esses anos. Pude compartilhar minhas hipóteses, ouvir outras, ter ótimos debates.

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A leitura de Ferrante acende uma faísca que parece recuperar algo da literatura oral, quando as pessoas se reuniam em lugares públicos para ouvir histórias, um hábito que se perdeu na modernidade. A profusão dos livros impressos tornou o hábito de leitura individual, solitário. Mas Ferrante convoca a pensar e discutir a obra: as alunas e os alunos muitas vezes falam das personagens e de suas histórias como se falassem de pessoas íntimas.

A leitura dos livros de Ferrante costuma ter um efeito inquietante e, talvez por isso, esses encontros possibilitam conversas tão interessantes, que sempre me permitem retornar ao texto e a minha pesquisa enriquecida pela experiência coletiva.

Os romances inspiraram alguns roteiros de viagem por Nápoles. Você já fez algum?
Fui visitar alguns lugares que aparecem (direta ou indiretamente) na tetralogia. Soube que tem ido muita gente com diferentes perfis: professores, pesquisadores, leitores entusiasmados, como um grupo de professores de literatura de Israel, um clube de leitura da Inglaterra, fãs de Nova York. Impressiona a comoção que ela gera no público. Em uma biblioteca de Roma, fui pegar os livros dela e tinham saído quase todos os exemplares. A bibliotecária comentou: agora ela é muito procurada na Itália também, é difícil parar um livro aqui.

Antes ela não era popular por lá?
Ela foi premiada logo que lançou o primeiro livro (Um Amor Incômodo), os dois primeiros foram adaptados para o cinema italiano. Então não foi uma recepção inexpressiva, ao contrário, mas o boom só veio com a tetralogia e o interesse maior veio de fora pra dentro. Claro, hoje é diferente, ela foi indicada ao Strega, que é a principal premiação literária na Itália, pelo último volume da tetralogia, e está sendo estudada nas universidades italianas. Agora podemos considerar que já é um fenômeno global que também os atingiu.

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