bonecarussa
Foto: Divulgação/ Netflix

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'Boneca Russa' é aquela piscadinha de algoritmos da Netflix só para você

Série de streaming como modelo ideal do que todos queremos ver: o que já conhecemos.

Você já conhece a história. Ontem na festa abusou um pouco e acordou no mesmo dia, na mesma festa, tentando evitar os mesmos erros e aprender, num jogo de obscura solução, a desvencilhar-se das mesmas armadilhas, da mesma escada onde irá tropeçar, da mesma substância que te levou a coma, do mesmo crush que saiu sem se despedir.

A sensação de estar carregando uma enorme pedra de mármore morro acima só para, lá no topo, vê-la rolar abaixo e então retomar todo o processo, até o último suspiro da sua vida. Não é novidade, ninguém está aqui inventando a roda.

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Os gregos criaram essa imagem, representada em Sísifo. O escritor Albert Camus, uma das figuras mais interessantes da literatura franco-argelina, ponderou sobre o mito em um ensaio no qual divaga sobre o que chama de “suicídio filosófico”: só é possível viver pela revolta contra essa espiral repleta de dor e de absurdo – essa pedra que estamos carregando ad infinitum.

Boneca Russa, série lançada recentemente pela Netflix, trata do mesmo drama humano, mas não se deixe enganar: é muito pior que isso. Entenda “pior” como quiser.

Com um enredo bastante amarrado em uma única narrativa que insiste em repetir-se dia após dia na vida de Nadia, interpretada por Natasha Lyonne: sua festa de aniversário. Ela está presa em sua festa, da qual não consegue sair, em uma sequência de “mortes” – que leio como suicídios – que não a levam a lugar algum, a não ser para reaparecer no banheiro de sua amiga. Rolemos a pedra acima novamente.

Você já conhece a história. Já viu aquele rostinho bonito em algum lugar: Lyonne vem de Orange is the New Black, que você já viu na mesma Netflix. O canal de streaming mais popular do mundo sabe exatamente o que você já viu e o que você quer, mesmo que você nunca tenha ouvido falar em Sísifo, Camus ou em Bill Murray – referência mais direta a Boneca Russa, com seu Groundhog Day, ou Feitiço do Tempo, no Brasil, do começo da década de 1990.

A matemática, hoje controlada por mentes humanas e corações androides, entrou por alguma via de seu corpo e atingiu seu cérebro em cheio, e, como scag, inebriou seu ânimo, seu humor, seus estímulos, em uma paralisia dormente. Todo dia a Netflix (e o mundo ao seu redor, a Netflix só é parte integrante do circo) joga seus filminhos e séries com os quais você tem algum tipo de afeição – pelo ator, pela atriz. Eles mudam as “capas” no seu catálogo de acordo com sua preferência. Se você gosta da Natalie Portman, é bem provável que algum dos três episódios da trilogia do meio de Star Wars jogue o rostinho da atriz bem grande na capa, Padmé Amidala.

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Você não pediu por isso, não configurou nada. Você quer assim. E eles sabem. A ideia é prender você nesse grande morro do absurdo.

Você já conhece a história.

Alguns críticos mais contemporâneos falam muito de uma “gamificação” da ficção hoje. A mecânica dos games aplicada à literatura e ao cinema, e, com mais destaque, na TV da sua casa. Nada a ver com Bandersnatch, episódio de Black Mirror que merece uma análise própria em separado. Você morre e volta do mesmo local, aliás em um sequenciamento cada vez mais fácil ou digerível, para não te fazer desistir do jogo.

Nadia, afinal, trabalha com isso, em uma referência clara à empresa mais foda do mundo do entretenimento: a Rockstar, de Dan e Sam Houser (sim, GTA, Red Dead). Não é por acaso que já faz um tempo que a indústria dos games tem uma conta bancária superior à da indústria de Hollywood. Dan, em entrevista à Vulture, tirou uma onda apontando os números de Red Dead Redemption 2: mais de 1200 atores, todos sindicalizados. “We’re the biggest employers of actors in terms of numbers of anyone in NYC”, disse.

Há de se dizer que a Netflix produz seus shows também pensando em novas gerações (nossos filhos, nossos netos, mesmo os que não temos ou teremos), que naturalmente estão desprovidos desse arsenal de referências do mundo da arte, do mito e do entretenimento. Talvez já tenham ouvido falar em Bill Murray, por meio de Ghostbusters. Ainda assim, eles sabem o que eles querem: conhecer o mundo de seus pais, como toda criança e todo adolescente busca conhecer o mundo de seus pais, na maioria das vezes para fugir dos mesmos – como roedores em um labirinto para a inevitabilidade mais dura da vida: é isso mesmo, e é isso.

O mundo dos nossos pais é bem sacal, mas é o que a Netflix nos traz. E no fundo é o que você quer, mesmo que, tal qual Nadia, como num game, seja para evitá-lo a todo momento, a cada episódio. Só que nossos passos são menos independentes do que pensamos.

Não há livre-arbítrio nessa grande metáfora banal que é o jogo da vida. Nem todos podemos ser um Camus da vida, um Dan Fuckin’ Houser. Ou um Bill Murray. Não pretendemos nos revoltar, é tão confortável aqui o quentinho, a TV ligada, a pipoca e o casalzinho sem sexo. Somos menos, bem menos: somos a Nadia de Boneca Russa. Por isso gostamos dela. “Epa, eu não.”

Você já conhece a história.

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