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Entretenimento

O Rafael Campos Rocha Desenhou pra Você Entender o Golpe de 64

A HQ, da editora Três Estrelas, transforma as aulas de história mais chatas do mundo em uma narrativa minuciosa, bem-humorada e muito explicativa sobre os eventos políticos que ofuscaram a democracia no Brasil.

​Hoje, ouvimos gente de todo tipo falando o que quer, como quer. A internet tá aí pra isso. Sua timeline tá cheia de asneiras que você nem quer saber. É tanto chorume que já tem gente questionando o direito dos outros de se expressar. A atualidade nos dá o luxo de ter fiscal de foda querendo reprimir e censurar, com saudades do que não viveram ou evitaram viver cinquenta anos atrás.

Arrisco dizer que se, como eu, você estudou a vida inteira em escola pública, pouco sabe sobre a Ditadura Militar. Tentaram nos ensinar com tão pouco estímulo que tudo que aprendemos foi que o suicídio de Getúlio Vargas gerou toda a instabilidade que culminou no Golpe de 64. Se você perguntar pro seu pai (e der a sorte de ele não ser um conservador lobotomizado), ele vai te dizer que foram tempos difíceis pra expressar qualquer opinião. Se você ouvir "Velha Roupa Colorida", do Belchior, vai perceber ele dizendo "nunca mais você saiu à rua em grupo, reunido […] nunca mais eu convidei minha menina para correr no meu carro, loucuras, chiclete e som".

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Mas o motivo disso tudo acontecer, nenhum livro didático conseguiu explicar para os jovens desinteressados em papos chatos de velho. Aliás, o bom e velho decoreba fez todo mundo passar de ano, de modo que eu nunca vi alguém responder uma prova sobre Estado de Sítio, por exemplo, com o desenho de um livro intitulado Direitos dos Cidadãos pegando fogo, e gerando uma fumaça tão espessa que não deixa ninguém agir direito.

Então, não bastou o Oscar Pilagallo ter a moral de explicar tintim por tintim o processo que, há meio século, levou o país a um abismo aterrorizante, ele ainda chamou o Rafael Campos Rocha (de Deus, essa gostosa) pra fazer as ilustrações. Na HQ O Golpe de 64, da editora Três Estrelas, os dois transformaram as aulas de história mais chatas do mundo em uma narrativa minuciosa, bem-humorada e muito explicativa sobre os eventos políticos que ofuscaram a democracia no Brasil.

E por falar em eventos, nesta terça (25) acontece o lançamento oficial do livro, na Livraria da Vila, em São Paulo, a partir das 18:30. Aproveitei o momento para mandar um papo retíssimo com o Rafa sobre passar a história adiante e ainda ter que lidar com quem não curte muito essa onda de liberdade de expressão:

VICE: Então, de onde veio a ideia de publicar uma HQ sobre o Golpe de 64? Por que este formato?
Rafael Campos Rocha: Fui convidado pelo editor da Três Estrelas, o Alcino, para fazer. Eles já tinham feito um quadrinho histórico sobre a bomba atômica. O [Oscar] Pilagallo já tinha escrito livros para a Publifolha sobre o Brasil do século XX. Faltava um desenhista que topasse.

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Seu senso de humor combina bem com a narrativa. Como isso foi planejado?
​Rapaz, eu pedi cinco meses para fazer. Um por cada capítulo. Pedi pra dividir o pagamento também por capítulo entregue, pra que eu não bebesse tudo antes de terminar o livro.

O Oscar já tinha o texto todo pronto e foi te mandando?
​Ele tinha quase todo o texto. Quando entreguei todo o livro, ou quase todo, ele fez algumas modificações. Editei também o texto (como ele ficava na imagem, e algumas alterações no comprimento do texto, em detalhes que eram narrativos e substituídos por desenhos etc). Aí mandei com essas modificações e ele fez algumas alterações.

Pode crer. Digo isso porque o texto casa muito bem com as ilustrações, fica bem detalhadinho, e não é cansativo. Melhor que minhas aulas de história do ensino médio.
​Ótimo! Tinha essa coisa de deixar a história viva e imaginativa, não letra morta. Isso sem ser simplista. Fomos gerais, é mais uma panorâmica, mas evitamos deixar simplista.

Totalmente. Pra você, qual é a importância desse panorama pras gerações mais jovens?
​Bom, acho que uma coisa que fica clara é que as últimas manifestações da direita pedindo impeachment NÃO são similares as ocorridas em 64. Como dizia aquele velhinho alemão descontraído: "A história ocorre duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa". O cenário não tem nada a ver com aquele. Em primeiro lugar, as manifestações são muito menores do que eram na época; em segundo: o "bloco soviético" e a polarização política mundial entre socialismo e capitalismo era verdadeira; em terceiro: a imprensa tinha um poder que não tem sequer sombra hoje - chamar a imprensa atual de golpista é um elogio pra quem sequer consegue pagar os salários; em quarto: os militares tinham, sim, interesse em evitar o "comunismo". Enfim, existem vários outros motivos. Mas não acho que um cara que sai de soco inglês na Paulista pedindo impeachment precisa do nosso livro pra se informar melhor.

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E do que ele precisa?
​Ah, sei lá. Sou da seguinte linha de pensamento: se você é, digamos, racista, não suporta negros, tem asco, ódio, enfim, o problema é seu. Você vai ter que disfarçar, engolir em seco, falar mal para as pessoas que pensam como você. Mas você não pode tocar na pessoa que odeia, seja física, ou moralmente. Porque você vai PRESO e aí um monte de gente pode acabar te estuprando na cadeia.

Enfim, não espero ensinar nada para quem não sabe nada. O livro ensina pra quem pensa do mesmo jeito que eu e o Oscar. Racista e nacionalista você não ensina: adestra. O filho deles talvez [possa aprender], mas eu também não estou interessado [em ensinar], pra falar a verdade.

Certo. Desculpa a pergunta, mas cê nasceu em que ano?
​1970.

Você tem memória desse período na sua vida?
​Tenho, tenho. A milicada baiando lá em casa, os meus pais com medo. Milico na universidade que minha mãe dava aula. Lembro como criança, de coisas que só fui entender depois.

Meus pais me contaram histórias nada agradáveis desse período também. O que você acha que mudou de lá pra cá?
​Bom, uma penca de idiotas pode sair na Avenida Paulista pedindo a cabeça do presidente que nada acontece com eles, por exemplo.

Maior exemplo de democracia.
​Pois é. Que eles mesmo acham nociva, enfim. Mas, como eu disse, acho-os inofensivos. A não ser que você esteja no mesmo lado da calçada que eles etc.

Com uma camiseta vermelha
​.Ah, sim. Aí pode estar até do outro lado da rua. Negro, de camiseta vermelha e com namorado.

Isso ofende muito a moral e os bons costumes da família brasileira.
​É. O ódio ao outro é um cimento social importante. Une as pessoas.

Pra finalizar, então você não tem medo disso acontecer de novo?
​Agora não. Os norte-americanos estão contentes com a situação, e a burguesia também. Várias coisas ainda estão de forma aceitável pra eles: os jovens negros continuam sendo exterminados, os índios brasileiros ainda são considerados parte da fauna inevitavelmente em extinção, as mulheres ainda ganham menos que os homens, o produto manufaturado pelo Nordeste ainda é mais caro NO Nordeste, um exército de subempregos, desempregados e escravos modernos continua pressionando os assalariados, ah, e é claro, os recursos naturais ainda são roubados da população para serem vendidos depois, contaminados e de pior qualidade. Enfim, acho que por enquanto ainda está bom pra eles.

Podemos chamar o momento atual de chororô mimadinho, então?
​Não cara, acho que na verdade, o pouco que eles dão eles querem tirar mesmo. Os caras querem manter você em um estado de necessidade absoluta. Pra você não chiar e gerar riqueza. Eles perderam muita coisa: as crianças não podem mais trabalhar nas fábricas deles, a jornada de trabalho caiu de 16 para 12 horas, e depois para 8. As pessoas vivem mais, você não pode mais estuprar e espancar seus servidores sem haver-se com a lei. Na maior parte das vezes, acho que eles estão na deles, na verdade.