‘Raça’, novo filme sobre Jesse Owens, mostra por que você ainda deve se preocupar com racismo no esporte

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‘Raça’, novo filme sobre Jesse Owens, mostra por que você ainda deve se preocupar com racismo no esporte

E por que você não pode esquecer que política esportiva, Olimpíadas e nazismo estiveram juntas no passado.

Cena de "Raça", o filme sobre a trajetória heróica de Jesse Owens, o atleta que superou a segregação racial dos EUA e o nazismo alemão. Crédito: Divulgação

Alguns eventos históricos são temas recorrentes de produções culturais. O regime nazista e a segregação racial nos Estados Unidos são dois exemplos explorados à exaustão pelo cinema e pela literatura. Mesmo assim, o diretor americano Stephen Hopkins aceitou o desafio e juntou ambos os temas nas telas no filme Raça, que estreia hoje no Brasil, para retratar uma das figuras mais singulares da história do atletismo: Jesse Owens, o homem que provou estar errada a teoria da supremacia racial, base da ideologia nazista, durante as Olimpíadas de Berlim de 1936.

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Embora seja símbolo para muitos ativistas, a biografia do primeiro atleta negro a conquistar quatro medalhas de ouro no pódio olímpico não é tão conhecida como deveria. Em entrevista ao VICE Sports, Hopkins contou que muita gente não tinha certeza de quem era Owens ou do que ele tinha feito. "Algumas pessoas achavam que ele era um dos atletas das Olimpíadas de 68, da saudação Black Power", diz. "As pessoas ficam meio confusas sobre o que exatamente ele fez, mas seu nome é evidente na memória de todo mundo."

Conformado com a ideia de que seria impossível contar em duas horas os 66 anos de Owens, Hopkins escolheu retratar os primeiros vinte e poucos anos do medalhista com uma bela direção de fotografia e com ajuda das lembranças das três filhas do atleta. O filme começa em 1933, quando Jesse, interpretado pelo canadense Stephen James, parte para a Universidade de Ohio. Lá, ele é um dos únicos estudantes negros e sofre um racismo sem tamanho num país que divide os espaços públicos entre brancos e negros.

Jesse tem talento natural para a corrida. Sua agilidade impressiona o treinador Larry Snyder, vivido nas telas por Jason Sudeikis. Snyder foi o cara que projetou em Owens sua própria vontade de vencer. No filme, a vida do atleta negro gira em torno de seus treinos e sua relação com Snyder. Esse é um ponto em que Hopkins peca: não sabemos nada sobre o jovem estudante Owens. Temos acesso apenas ao atleta. Em uma das cenas do longa em que o treinador confronta Jesse por ter faltado a um treino, Owens usa um broche da fraternidade Alpha Phi Alpha, a primeiro de universitários afroamericanos.

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No filme, não fica clara qual é a relação de Jesse com a fraternidade nem como ele foi parar lá. Apenas sabemos que ele matou o treino porque precisava trabalhar em um posto de gasolina para fazer uma grana extra e mandar para sua namorada em Cleveland, Ruth Solomon (Shanice Banton, no filme), com quem tinha uma filha pequena. Ruth e Jesse se casaram em 1935, tiveram mais duas filhas e ficaram juntos até 1980, ano da morte do atleta.

Como em quase todo filme sobre esportes, vemos Jesse Owens desenvolver suas habilidades cada vez mais, treino após treino, vitória após vitória. O título do filme em inglês, Race, sugere um pouco a transição e evolução de Jesse como atleta e como negro, uma vez que a palavra carrega o duplo sentido: raça e corrida. Em uma de suas primeiras competições, vemos um inseguro atleta negro sendo vaiado e xingado pela plateia enquanto se prepara para correr. No vestiário, após um dos treinos, Snyder aconselha Jesse a bloquear os xingamentos e focar na pista. Na hora da corrida, é exatamente isso que o atleta faz. "É apenas barulho", diz Snyder.

A cena recebeu críticas, já que existe um problema em considerar insultos racistas como "apenas barulho", uma vez que o racismo é muito mais estrutural do que mostra o filme em sua superficialidade. Na realidade, ignorar insultos racistas não faz com que o racismo desapareça. Mesmo assim, Jesse se concentra, calcula seus movimentos com cuidado e vence.

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Sabemos que o trabalho duro recompensará sua vitória em Berlim. Mas até lá, a narrativa do filme dá algumas voltas e parece que tal momento nunca vai chegar. Em paralelo à vida esportiva de Jesse na Universidade de Ohio, Hopkins mostra o debate em torno da participação dos Estados Unidos nas Olimpíadas de Berlim. Na época, existia um grupo que apoiava o boicote à competição a ser realizada no país nazista como forma de protesto contra o regime.

Neste núcleo, vemos o presidente do Comitê Olímpico, Avery Brundage (Jeremy Irons) em uma ferrenha campanha contra o boicote às Olimpíadas. Em uma viagem à Alemanha para checar como andavam os preparativos para o evento, Brundage fecha alguns negócios com Joseph Goebbels, ministro da propaganda durante o governo de Hitler. Ao mesmo tempo, Jeremiah Mahoney (William Hurt), presidente da União Atlética Amadora, tenta convencer o restante do comitê a votar a favor do boicote. No fim, a participação dos Estados Unidos nos Jogos de Berlim é aprovada em uma votação acirrada.

Foto da vitória de Jesse Owens nas Olimpíadas de Berlim. Crédito: Wikipedia Commons

Este movimento de boicote às Olimpíadas de fato aconteceu. Muitos atletas foram aconselhados a não participar dos jogos como uma forma de protesto. Owens recebeu uma visita de um representante NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) que lhe apresenta uma série de argumentos para que ele não corra em Berlim. Em um momento tocante, o pai de Owens, que até então havia aparecido mudo e saído calado de cena, discorda e diz ao filho que sua presença nas Olimpíadas de Berlim são fundamentais para desconstruir as ideias de supremacia racial.

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Depois de muito ponderar e se desentender com Snyder – porque, verdade seja dita, inclusive pelo próprio Owens no filme, o treinador é branco e não entende o racismo pelo qual o atleta passa –, o atleta parte para a Alemanha. Uma vez em Berlim, sua missão era vencer. Apesar de não fazer parte da comissão olímpica, Snyder o acompanha. No navio até a Europa, os atletas negros viajam na classe econômica e são separados dos atletas brancos, que frequentam a primeira classe da embarcação.

Em Berlim, Owens bateu recordes, ganhou quatro medalhas de ouro e se deparou com uma realidade completamente diferente de sua terra natal. Para tentar mascarar o antissemitismo, o racismo e todos os preconceitos, dentro da vila olímpica negros e brancos compartilhavam dormitórios e usavam os mesmos banheiros, vestiários e refeitórios.
A sensação de Jesse Owens ao adentrar o estádio olímpico lotado de alemães possivelmente simpatizantes ao nazismo foi um dos momentos que moveu o diretor Stephen Hopkins a querer gravar o filme. "Minha primeira questão sobre esse filme, quando eu reduzi a este período, foi como é possível que este jovem afroamericano possa entrar em um estádio com 20 mil nazistas, segurar essa barra, e correr 100 metros, uma vez que você não pode errar um milisegundo?", explicou o diretor ao VICE Sports. "Pensei que se pudéssemos entender como ele se sentiu entrando ali e como lidou com isso, então acho que poderíamos trabalhar a partir dessa ideia e tentar descobrir como ele fez isso."

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Crédito: Divulgação

Neste novo mundo, Jesse não é mais o atleta negro que sofre com a segregação em seu país. Owens é um herói da nação americana em Berlim. Essa nova figura é muito bem explorada no filme, quase caindo no velho clichê do herói de Hollywood, tão adorado pelo Oscar, mas que, para um personagem como Jesse Owens, é uma posição mais do que merecida, dada sua trajetória.

Algumas cenas foram gravadas no próprio estádio onde Jesse Owens ganhou suas medalhas de ouro. Os documentários sobre as Olimpíadas de 1936Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, em alemão) e Olympia, dirigidos pela cineasta alemã Leni Riefenstahl (interpretada pela atriz Carice van Houten, a Melissandre de Game of Thrones) também foram de grande inspiração para a filmagem das passagens em Berlim. Os bastidores deles também aparecem no longa.

Riefenstahl teve acesso a todos os cantos do estádio e, em Raça, a diretora é retratada como uma mulher determinada que fica indignada quando é impedida de gravar uma das competições de Owens. Ela enfrenta Goebbels e coloca suas câmeras para rodar a vitória do americano. Riefenstahl é quase um sopro feminista em um filme cheio de homens. Mesmo assim, há quem diga que ela não era tão legal quanto parece no filme, uma vez que seus documentários foram utilizados como material de propaganda da Alemanha nazista.

Outra figura alemã que simpatiza com Owens no filme é o atleta Carl "Luz" Long (David Kross), que perdeu o primeiro lugar para Jesse na competição de salto à distância. Em uma cena tocante, Long desafia o regime e dá uma mãozinha para Jesse conseguir fazer seu salto e vencer a competição. A história também é real.

Depois de quatro vitórias, Owens volta para os Estados Unidos para enfrentar a triste realidade que lá se manteve para a população negra. Ao fim do filme, atleta e treinador vão a um restaurante comemorar os resultados e Jesse, acompanhado de sua esposa, é barrado na porta e obrigado a entrar pelos fundos. Levariam ainda décadas para o país superar seu regime institucional de segregação. Na época, o atleta não foi recebido pelo então presidente Franklin D. Roosevelt na Casa Branca para ser parabenizado por suas vitórias, da mesma forma como Hitler não cumprimentou o atleta na ocasião dos jogos. Por esses e outras Raça é um filme que mostra que o esporte não existe por si só e está diretamente relacionado a questões sociais e políticas.

Este ano é o aniversário de 80 anos do feito de Owens em Berlim. É bastante simbólico. Passado todo esse tempo, atletas negros ainda enfrentam episódios de racismo e a população negra no Brasil ainda é uma das que mais pode sofrer com os preparativos das Olimpíadas que acontecerão no Rio de Janeiro. Não há dúvida de que, oito décadas depois, ainda precisamos discutir racismo no esporte.