Como o PCC garantiu a segurança do meu marido dentro da prisão

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Relato

Como o PCC garantiu a segurança do meu marido dentro da prisão

Uma mulher relata como seu marido, preso por quatro anos, tinha roupa, comida, higiene e segurança nos presídios por onde passou graças à facção.

Fotos por Felipe Larozza/VICE.

Ana* tinha 22 anos quando seu marido foi preso por tráfico de drogas numa ação cinematográfica, com direito a policial à paisana vestido de eletricista e os holofotes da mídia. A jovem de classe média trocou o conforto dos fins de semana em família por uma epopeia a cada visita que fazia ao marido pelas cadeias em que ficou preso durante quatro anos. E foi nesse ambiente, até então desconhecido e amedrontador, que Ana descobriu a importância do PCC (Primeiro Comando da Capital) para a organização dos presídios, a segurança dos presos, a garantia de igualdade entre os detentos e até mesmo para a manutenção da higiene das celas e dos encarcerados. Ela não imaginava que sua maior sensação de segurança seria dada por uma organização criminosa e não pelo Estado.

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A seguir, o relato de Ana sobre o caso:

***

Conheci meu marido em uma escola de samba durante os ensaios de Carnaval em dezembro de 2008. Ficamos amigos por uns dois meses e começamos a ter um relacionamento. Meu marido sempre trabalhou na empresa da família e eu trabalhava como gerente de uma loja no shopping. Namoramos dois anos, nos casamos e tínhamos milhares de planos até que nossa vida virou de cabeça para baixo.

Foto por Felipe Larozza/VICE.

Nunca vou me esquecer quando recebi uma ligação do meu irmão, dizendo que meu marido havia sido preso. Era uma sexta-feira. Meu marido estava na porta de um bar fumando maconha com outras pessoas, quando desceu, de um poste, um homem com roupa de eletricista e enquadrou ele e outras 19. O eletricista, no caso, era um policial à paisana. Havia alunos da faculdade no grupo e todos foram levados para delegacia, mas em carros diferentes — apenas meu marido foi levado sozinho na viatura.
Para piorar, a investigação da polícia foi parar nos jornais e na TV. Meu marido, que foi levado até a sala do delegado, deu de cara com a imprensa que o esperava com câmeras. Foi quando ele viu na mesa seu documento ao lado de 50 trouxinhas de maconha em embalagens diferentes, que não eram dele. Foi então que meu marido assinou um [documento que o acusava de] tráfico. Não deu tempo de o advogado chegar, da família chegar, não deu tempo de nada.

"Fui ver meu marido somente 15 dias depois da prisão. Foi então que comecei a entender como funcionava o esquema do PCC dentro dos presídios."

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Ele ficou detido alguns dias no DP até ser transferido para o CDP de Pinheiros. Fui ver e falar com meu marido somente 15 dias depois da prisão. Ele estava magro, irreconhecível, cabelo raspado. Tinha entrado no inferno. Foi então que comecei a entender como funcionava o esquema do PCC dentro dos centros de detenção provisória e nos presídios.

Nosso primeiro contato ao chegar numa cadeia não é com o Estado, e sim com o comando, por meio da guia, que é a pessoa que te ajuda em tudo que precisar. É uma mulher paga pelo PCC para organizar e tirar dúvidas, principalmente das iniciantes. Ela distribui a senha de chegada das visitas, instrui que roupa você pode ou não usar nas visitas e que tipo de comida que pode levar. As guias costumam ser mulheres que visitam os maridos presos, mas há casos que o marido já foi solto e elas seguem trabalhando [para o Partido].

Ainda assim, você não sabe que a guia é do PCC, você acha que ela é funcionária do Estado. Essa mulher é fundamental para a organização das visitas. E ela não cobra nada por isso.
Eu sentia muito medo nas filas em dia de visita porque existe a possibilidade de implantarem alguma coisa na sua comida para ferrarem com o seu marido, por exemplo. E não só por parte das mulheres dos presos, mas também dos agentes, que cumprem ordens do diretor, caso o preso esteja marcado por ele. Eles usam as mulheres para prejudicar os maridos.

"Me senti segura sob a jurisdição do comando quando entrei pela primeira vez na visita [dentro da prisão] e todos os homens abaixaram a cabeça."

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Por isso me senti segura sob a jurisdição do comando quando entrei pela primeira vez na visita e todos os homens abaixaram a cabeça. Ninguém olhava no meu rosto. Deixavam o corredor livre para eu passar. É muito organizado. Vi apenas uma briga nesses quatro anos que frequentei. E a culpa foi nossa [das mulheres] e tomamos uma bronca dos maridos. Porque se acontece alguma coisa na fila, quem pode pagar por isso são eles lá dentro. Isso é orientação do comando.

Você entra [no presídio] e passa pela revista, que é uma coisa horrível. Não pode ir de blusinha ou roupa apertada. Tem que cobrir o corpo. O sistema só diz que é para ir de camiseta e calça, mas o tipo dessas peças quem dita é o comando, para que o corpo das mulheres não chame a atenção.
O comando é superjusto. Se eu disser que você me chamou de vagabunda, eu vou ter que provar, ter testemunhas, senão não vai ter cobrança. Eu senti isso. Eu vi. Você ali dentro acaba convivendo. Meu marido conviveu com muitos [membros do PCC]. Eu passei a conhecer o esquema. Muitos ganham dinheiro, doam cestas básicas, ajudam quem precisa. Mas eles vivem do mundo do crime, principalmente tráfico e roubo. Homicida não tem muitos.

Outra garantia que dá tranquilidade às famílias é que em áreas dos presídios dominadas pelo PCC não entram estuprador, assassino de criança e pessoas de outras facções, presos que ficam em lugares conhecidos como 'coisa'.

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Essa triagem [dos presos] é feita no próprio IML. Você tem que fazer um exame de corpo delito no IML. Lá, o preso avisa que pode correr risco na cadeia dos 'coisa'. Meu marido ia para esse lugar, mas ele avisou ao guarda que tinha tatuagem de torcida organizada e que, por isso, poderia ser morto. A cadeia dos "coisa" não tem higiene. Não tem organização nenhuma, todo mundo briga com todo mundo.

Foto por Felipe Larozza/VICE.

Na cadeia do comando, a visita íntima, que ocorre dentro da cela, é muito organizada e criativa. Fica todo mundo junto no mesmo ambiente, mas ninguém se vê. Eles pegam cordas de varal ou fio dental, nos quais são presos lençóis brancos lavados com um tubo de amaciante, e costuram como uma cortina. Os presos fazem um labirinto de lençol que, mesmo se a pessoa estiver na cama debaixo você não a vê, no máximo cruza com ela no banheiro. Mas você tem que tomar cuidado. Se você se enrolar no lençol você, está ferrada. Se acontecesse alguma coisa, meu marido que seria cobrado depois.

Apesar de todo mundo estar no mesmo ambiente, você não ouve quase nada. Você pode transar, mas não pode fazer barulho. Uma vez uma mulher estava fazendo muito barulho e meu marido perguntou se eu queria reclamar com o irmão [membro oficial do PCC] do setor. Eu deixei quieto, mas tem mulher que reclama.

"Foi dentro do presídio que descobri que são as famílias ou o próprio comando quem sustenta os presos e não o Estado."

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E foi dentro do presídio que descobri que são as famílias ou o próprio comando quem sustenta os presos e não o Estado. Ninguém passa muita fome nos presídios do comando. Tudo é dividido. Você pode ser um largado, um nóia que não tem visita, mas não é por isso que você vai passar fome. Tudo que os familiares levam é colocado numa cozinha, uma cama dentro da cela. Se há 30 bolachas e 30 presos, elas serão divididas igualmente. Só o que é particular é chocolate e cigarro.

O Estado pode até pagar por uma comida de qualidade, mas [essa comida] não chega para os presos. Há presídios nos quais têm até picanha, que fica na cozinha dos funcionários, não chega para os presos. Meu marido trabalhou numa cozinha dessas.

Um dia fui levar o jumbo no CDP e soube que meu marido seria transferido. Difícil alguém saber com antecedência sobre a transferência. É normal chegar lá e o parente ou amigo não estar mais. O preso que dá um jeito de avisar por fora. O detento também não sabe com antecedência. O agente chega lá e canta [chama] o preso pelo nome, matrícula e cela. Só quando ele sai do convívio que ele é informado para onde vai.

Soube por meio de um amigo que trabalhava no sistema penitenciário que meu marido seria levado para outro presídio, na região metropolitana de São Paulo. Eu fui muito teimosa e acabei conseguindo vê-lo no período que eles chamam de trânsito. Eu menti sobre a saúde do meu esposo para conseguir vê-lo. Não me arrependo. O vi por 15 minutos. Quando ele foi para o convívio ele nem podia falar que me viu, porque ninguém iria acreditar.

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Foto por Felipe Larozza/VICE.

Quando o chamaram no convívio para ir na sala do diretor ele ficou nervoso, porque não sabia que era eu que estava lá e isso também chama a atenção dos outros presos. Na volta, ele teve que dizer que era o advogado dele, porque senão o comando poderia coloca-lo em observação. Ninguém sabe a procedência daquela pessoa que acabou de chegar. Quando o preso chega, o PCC faz uma [nova] entrevista para saber quem é a pessoa, pede referências aqui de fora, de onde é, se conhece alguém do comando. Pergunta se ele deve alguma coisa na rua para alguém, se já esteve em alguma briga que envolveu o comando. Ali é uma família. Se chega uma pessoa nova pode ser qualquer coisa. Eles têm que se precaver.

Eu no começo tinha medo de briga, rebelião, que matassem meu marido. Mas não tem isso. Meu marido me orientava para eu não arrumar confusão. Ninguém pode nem falar palavrão, senão você vai ser cobrado pelo comando. Tem que ter respeito.

"Os membros do comando obrigam os presos a tomar três, quatro banhos por dia. Não é o sistema que obriga. O PCC impõe higiene para melhorar o convívio."

Os membros do comando, por exemplo, obrigam os presos a tomar três, quatro banhos por dia. Eles obrigam a lavar a cela pelo menos três vezes por dia. Não é o sistema que obriga. O PCC impõe higiene para melhorar o convívio. Sempre tem um ou outro que vem da rua, não tem o hábito de tomar banho. Depois de acordar, o preso só pode falar com o outro depois de escovar o dente. A primeira camiseta, calça ou bermuda quem dá é o PCC e não o Estado.

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Eu sabia que nesse ambiente ele estaria bem, mesmo sendo horrível. Não tinha como não me sentir mais segura. A cada transferência praticamente zerava toda minha segurança. Meu marido foi transferido pela segunda vez, dessa vez para um presídio a 700 km da capital. No começo eu ia de carro, mas comecei a ir de ônibus. A guia apareceu mais uma vez nessa situação.

Essa penitenciária era mais precária de irmão [membro oficial do PCC]. Quem é do comando tem a pasta carimbada. O diretor dessa penitenciária dava um jeito de transferir esse tipo de preso. Apesar disso, a organização era a mesma, mas não tinha telefone, por exemplo. Era tudo mais difícil. Se acontecesse alguma briga, tinha que esperar o aval do comando para resolver. Tudo demorava um pouco mais. O irmão resolve na hora.

Passado mais um tempo, quando meu marido foi para o [regime] semiaberto, mais uma vez, tudo mudou. Nesta época, eu já não ia em todas as visitas. Mas um dia recebi uma ligação. Na linha, uma mulher me avisou que meu marido tinha voltado para o regime fechado. Depois de tentar falar com ele dezenas de vezes, o diretor me ligou e contou que meu marido seria o dono de algumas trouxinhas de maconha encontradas enterradas no campo de futebol.

"'E aí? Você vai caguetar o comando ou ficar mais cinco anos preso?' Foi então que meu marido ficou mais dois anos preso."

O diretor da penitenciária anterior não quis aceita-lo de volta. Isso porque o diretor tinha certeza que eu levava droga e telefone [para o meu marido], porque eu estava presente em todas as visitas. Então meu esposo foi transferido para [uma detenção] numa pequena cidade no interior de SP. Lá, ele me contou que o antigo diretor conseguia interceptar alguns sinais de celular e descobriu que meu marido e eu nos falávamos com frequência. O diretor mandou meu marido escolher entre falar de quem era o aparelho ou a droga seria dele. "E aí? Você vai caguetar o comando ou ficar mais cinco anos preso?" Foi então que meu marido ficou mais dois anos preso esperando julgamento, no qual acabou absolvido.
Nesse período final em que meu marido ficou preso eu engravidei. Foi um horror. Eu prometi para mim mesmo que jamais engravidaria ali dentro. Eu via muitas mulheres tendo vários filhos, porque o marido está condenado a 30 anos de cadeia. Achava aquelas mulheres loucas.

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Foto por Felipe Larozza/VICE.

Nos quatro anos em que meu marido ficou preso, muitas pessoas não subiam nem o elevador comigo no meu prédio. Amigos de infância pararam de conversar comigo. Depois de grávida, o preconceito dobrou. Nasceu com o pai preso então, piorou. Não deixavam nem os filhos brincarem com a minha filha [fruto de outra relação], que sempre chamou ele de pai. Aí, quando meu outro filho nasceu, era assim: 'Aí a grávida do presidiário'. 'Olha o menininho sem pai'.

Você acha que o dia em que seu marido sair será o dia mais feliz, mas não é. Foi horrível. Ele já estava no limite. Ele saiu perturbado. Imagina você viver quatro anos como bicho, passando fome. Sem nada. Ele estava transtornado. E você nem sabe quando ele será liberado. Ele me ligou da rodoviária falando que tinha acabado de ganhar a liberdade. O Estado não pagou sequer a volta dele pra casa. Se não tiver dinheiro depositado no pecúlio, tem que devolver depois.

Foram 12 horas até chegar em casa. No ônibus, meu marido veio acompanhado de um policial militar. Todo mundo sabe que você é um preso que acabou de ganhar a liberdade. Quando nos encontramos na rodoviária, ele estava nervoso. Não tinha como ser bom. Você pega um leão que está com fome e abre a jaula.

As pessoas também não te deixam seguir em frente. O síndico do prédio nos odeia. Teve uma onda de assaltos nos apartamentos e, para todo mundo, era o meu marido [o responsável]. Tem festa de família que nem somos convidados.

"A organização do comando foi essencial para que eu [nos quatro anos em que o marido esteve preso] vivesse tudo isso de forma mais tranquila."

Eu não reclamo desses quatro anos que vivi. Se eu tivesse vivido 100 anos eu não teria aprendido tudo que aprendi, como dar valor a um prato de comida, uma casa, uma noite com o marido comendo pizza. E a organização do comando foi essencial para que eu vivesse tudo isso de forma mais tranquila. Se não fosse o PCC, uma coisa que é péssima seria 10 vezes pior. Eles fazem valer o lema do comando: 'Paz, justiça e liberdade'.

Não tenho nenhum receio do que passei. A segurança que tive dentro do presídio também me acompanha do lado de fora, por entender a dinâmica dessa paz nas ruas. Muita gente não sabe, mas o PCC tenta domar esses nóias que roubam as pessoas na rua. É um sistema complexo e essencial para a organização do sistema penitenciário.

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