O que pais e professores acham do fenômeno 'Fortnite'
'Fortnite' conseguiu ser um fenômeno maior até que 'PUBG' foi no ano passado. Imagem: Epic Games/Divulgação.

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O que pais e professores acham do fenômeno 'Fortnite'

Você não tem noção do quanto a criançada (e todo mundo, na real) está obcecada por 'Fortnite'.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Rachel é uma professora do ensino médio em Chicago. No começo do mês, seus estudantes estavam inquietos, e ela estava tentando achar um jeito de focar a atenção deles. Aí ela teve uma ideia: ela sabia que a classe inteira estava jogando Fortnite, o jogo de tiro sandbox — especialmente o seu famoso modo Battle Royal — da Epic Games que tem varrido a paisagem cultural nos últimos meses, e decidiu usar o jogo a seu favor. Tendo jogado Fortnite também, ela podia falar a língua deles, e fez uma proposta: se todo mundo terminasse as tarefas sem mais interrupções, eles teriam uma grande discussão sobre Fortnite.

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“Dava pra ouvir uma agulha caindo na sala”, ela me contou recentemente.

O professor da 6ª série Sean Irwin não teve tanta sorte. Quando os estudantes saíram do controle, ele ouviu murmúrios sobre Fortnite. Como parte de um projeto, as crianças tinham que pensar em carreiras, e muitos listaram “jogador profissional de videogame” e “streamer do Twitch” como possibilidades legítimas. Ele acabou tendo que proibir conversas sobre Fortnite.

(Várias pessoas com quem falei para esta matéria pediram pra usar apenas o primeiro nome, por uma questão de privacidade ou porque não são porta-vozes autorizados da escola.)

É difícil dizer quando alguma coisa se torna um fenômeno cultural, mas parece aquela citação do Ernest Hemingway sobre falir: “gradualmente, aí de repente”. Eu soube que Fortnite tinha estourado oficialmente quando a irmã da minha mulher, que não joga videogame, me pediu para explicar essa coisa de “Fortnite” e porque todos os amigos homens dela estavam jogando. Quanto tempo Fortnite vai continuar sendo o assunto mais quente do parquinho é impossível saber, mas estudantes, professores e pais com quem falei na última semana disseram que não viam as crianças tão obcecadas por alguma coisa desde Minecraft (e, numa extensão menor, Five Nights at Freddy's).

No segundo ano do ensino médio, Bob Pentuic era como muitas pessoas, incluindo este que vos escreve: ele jogou Fortnite no lançamento, quando o jogo se vendia como um game de defesa de torre cooperativo, e não achou muita graça. Mas no começo de 2018, todos os seus amigos estavam jogando. (Foi bem na época que Fortnite recebeu uma atualização importante para console, dobrando sua performance.) Garotos que nunca tinham pegado num controle na escola de Bob agora estão jogando Fortnite porque, bom — é o que todo mundo está fazendo. Você precisa jogar Fortnite para continuar relevante na escola.

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Fortnite passar para o celular permitiu que o jogo se tornasse quase invasivo”, ele disse. “Enquanto escrevo isto, tem uma mesa com quatro colegas de classe jogando no celular.”

O jogo também se tornou parte do tecido social, uma métrica pela qual você julga seus colegas.

“As vitórias de alguém se ligam a seu status social um pouco”, disse o professor australiano do ensino médio Steve Lowe. “Os garotos legais não são necessariamente os melhores jogadores de Fortnite, mas todo mundo sabe quem são os melhores. Não importa a idade, eles falam sobre garotos com quem não teriam nada em comum sobre as vitórias deles.”

Vários professores ecoaram isso, observando como alguns dos maiores introvertidos são os melhores jogadores de Fortnite de suas classes, e que seu conhecimento os transformou em extrovertidos bonafide, porque todo mundo vai até eles pedindo conselhos de como jogar.

“Um dos garotos mais tímidos da minha classe se tornou uma guia de estratégia ambulante para os outros garotos”, disse o professor da 5ª série de Maryland Nathaniel Dubya. “Ele adora a atenção.”

Nathaniel soube que tinha alguma coisa acontecendo quando notou mais e mais crianças andando com um estudante que geralmente ele descrevia como “inteligente, mas com baixa autoestima e muito quieto”. Do nada, o pessoal estava ouvindo cada palavra que ele dizia no recreio e ele começou a ganhar amigos.

“Acontece que ele é muito bom em Fortnite e está organizando jogos depois da escola”, ele disse. “É muito legal ver como ele gradualmente vai preenchendo esse papel de liderança, e como ele carrega isso para a classe. Ele está muito mais envolvido em discussões de livros e levanta muito mais a mão para responder perguntas.”

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Mas talvez já tenhamos a melhor métrica para saber se Fortnite é um fenômeno, e isso não tem nada a ver com concorrentes no Twitch ou revisões no YouTube. São convites bizarros para os bailes de escola.

Tem que ser criativo (e meio corajoso) pra bolar um convite de formatura desses. Foto: Josh Hart/Reprodução.

E os convidados e convidadas estão dizendo sim, segundo me contaram.

Jovens mulheres não estão sendo atraídas para Fortnite só por convites de bailes sobre os quais vão fazer piada daqui dez anos. A principal demografia dos jogos de tiro tende a ser de homens jovens e meninos, mas fenômenos operam diferente, e Fortnite está cruzando fronteiras de gênero. Ouvi de muitos pais e professores que as meninas também estão jogando, e em alguns casos, Fortnite foi a primeira vez que elas se envolveram através de um interesse compartilhado em videogames.

Taylor Kaar, por exemplo, dá aulas numa escola só de meninas em Ohio, onde Fortnite é o tópico das conversas, seja em termos de suas próprias experiências no jogo ou, sem surpresa, reclamações sobre como o jogo tomou a vida de todos os garotos que elas conhecem. Das 50 estudantes com que Kaar interage regularmente, 10 dizem que experimentaram jogar Fortnite pelo menos uma vez, enquanto umas seis jogam regularmente. Mas todas as 50 garotas conhecem o jogo.

“Todas têm histórias sobre serem ignoradas em festas ou encontros porque as pessoas estavam jogando”, diz Kaar. “Não é uma modinha com a qual elas lidam tangencialmente, isso invadiu o centro das vidas delas."

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Uma estudante disse que o jogo tornou os caras com que ela interage regularmente “menos sociais”. Outra disse que o namorado dela foi pressionado por amigos para fugir do jantar de Dia dos Namorados para poder jogar. Muitas admitem terem se familiarizado com o jogo – regras básicas, estratégias, memes – para poderem participar das conversas diárias com amigos homens.

“Um dos garotos mais tímidos da minha classe se tornou uma guia de estratégia ambulante para os outros garotos. [Agora] ele está muito mais envolvido em discussões de livros e levanta muito mais a mão para responder perguntas.”

Mas essa obsessão coletiva com Fortnite é uma faca de dois gumes, dependendo de para quem você perguntar. Uma professora de ensino médio disse que tem um estudante realmente viciado — jogando, assistindo outras pessoas jogarem – e que suas notas caíram. Baseado no que o estudante disse, parece que ele entra no jogo no momento em que chega em casa e joga até desmaiar no meio da noite. A professora acha que uma falta de estrutura em casa exacerba o problema.

Outra professora falei tinha uma situação similar, mas nesse caso, escolheu invocar Fortnite como uma recompensa por bom trabalho. Audrey ensina Álgebra para estudantes do primeiro ano do ensino médio no Oregon, alunos que foram indicados no primário como podendo ter problemas para se formar. Eles não se saem bem em matemática, e Audrey está lá para ajudar. Esses estudantes acabam colocados na mesma classe, então o grupo tende a passar muito tempo junto. Eles se tornam uma família.

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“Um dos estudantes da minha classe está lidando com mudanças na sua vida em casa”, disse Audrey. “Estou falando sobre não conseguir dormir cedo, não por escolha mas por necessidade.”

A falta de sono em casa do aluno era tão severa que quando os estudantes tinham cinco minutos entre as aulas, ele dormia. Audrey não estava tendo sucesso em mantê-lo acordado. Depois de alguns meses de frustração, o garoto se empolgou durante uma lição onde os alunos estavam propondo soluções para os problemas que estavam tendo. A proposta dele era simples: se ele prometesse passar em matemática naquele semestre, a professora concordavam em jogar Fortnite com ele depois das aulas.

Audrey decidiu aumentar a oferta. Se o estudante conseguisse ficar acordado nas aulas todo dia, não só ela jogaria Fortnite com ele, mas a classe inteira jogaria, depois que eles fizessem a prova final.

“Transformamos o acordo num grande espetáculo, alguns alunos até gravaram no Snapchat como prova, e apertamos as mãos na frente da classe toda”, ela disse. “Honestamente, eu não achava que ele iria conseguir, mas achei que isso renderia alguns dias dele acordado na aula, o que já seria bom pra ele.”

E funcionou — mais ou menos. Apesar de o aluno não conseguir ficar acordado o semestre todo, ele estava mais atento, e suas notas na prova decolaram. Durante essa época, outros alunos começaram a tentar ajudá-lo, fazendo o que podiam para mantê-lo acordado.

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“Apesar de não ter sido o resultado que estávamos esperando com nosso acordo”, ela disse, “ainda são duas semanas de aprendizado que ele não teria sem isso, então ainda acho que foi uma vitória”.

O jogo também está levando os professores a terem uma oportunidade de fazer laços com os estudantes através de uma linguagem comum. Falando sobre Fortnite, os professores não são mais uma figura de autoridade desinformada.

“Desenvolvemos toda uma variedade de analogias na classe”, disse a professora do primário Kelly Jart. “Med kit/chug jug: você precisa de ajuda com a lição de casa ou não está fazendo seu melhor. Solo: eles têm que trabalhar sozinhos. Pick axe: lápis. É insano quanto dos meus alunos entendem. Mesmo as meninas que não jogam conhecem tudo isso, tipo 'Cara, você precisa ir solo agora'.”

"Hoje na 7ª série:
Criança: Peguei segundo lugar num solo.
Eu: Que bacana! O Sr. [professor de música] deve estar orgulhoso de você!
Criança, balbuciando: Não, não… é um lance de Fortnite. Esquece.
Eu: #LeiaUmLivro #NaMoral #EntrandoNaConversa7aserie"

“Esses garotos estavam acostumados a professores incrédulos que não saberiam responder, ou responderiam sem dar atenção, de um jeito fora alcance”, disse o professor substituto do ensino médio Joshua Erhardt. “Quando digo que joguei, demonstro conhecimento do jogo e falo um pouco disso como eles fazem, eles ficam surpresos e imediatamente me pressionam para saber número de vitórias, que tipo, onde eu jogo, etc. Tem sido muito útil para estabelecer um relacionamento com os estudantes, que por sua vez torna mais fácil para eles me respeitarem quando peço coisas.”

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“Dá licença”, disse o professor do ensino médio Matthew Prather, que me escreveu enquanto quatro alunos dele jogavam Fortnite enquanto deveriam estar fazendo a lição, “acho que o esquadrão da minha classe acabou de conseguir uma Victory Royale e preciso pedir dicas de construção”.

Fortnite explodiu numa época em que a discussão em torno de crianças em idade escolar está manchada de tragédia e raiva. No dia 14 de fevereiro, 17 estudantes foram mortos num atentado com arma de fogo na Escola Stoneman Doulgas em Parkland, Flórida. O encontro mais recente dos EUA com violência em massa deixou pais e professores no limite sobre o que significa um jogo com armas ser tão predominante na mente das crianças.

Fortnite tem um estilo de desenho animado exagerado, especialmente considerando jogos mais brutais, realistas e violentos como PlayerUnknon's Battlegrounds, que serviu como principal influência do modo Battle Royale de Fortnite. Mas Fortnite ainda é um videogame com jogadores correndo por aí com armas – fuzis, espingardas, armas sniper – e esse ponto não passou despercebido para pais como Keith Krepcho, cujo filho de nove anos acabou de começar a jogar Fortnite.

O filho de Keith é “muito sensível a violência”, e quando Keith jogava Battlegrounds, o menino pedia de fora da sala que ele parasse de jogar o jogo antes de entrar. Keith achou que Fortnite cairia na mesma categoria, mas quando o primo de 11 anos e a irmã de sete começaram a jogar, seu filho decidiu experimentar o jogo.

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“Ele veio correndo pra mim”, disse Keith, “e declarou que tinha jogado uma pedra em alguém que derrubou um fuzil, e que ele pegou o fuzil depois e 'matou todo mundo'”.

Isso o deixou perturbado.

“Eu sei que meus filhos gostam do visual cartunesco e do bom humor desse mundo”, ele continuou, “mas não consigo deixar de pensar que Fortnite é uma febre entre crianças e adultos. Splatoon era totalmente comprometido com a ideia de ser um jogo de tiro para todas as idades. A violência não tem sangue e é cartunesca, e eles evitam usar terminologia da cultura de armas. Fortnite tem um visual de jogo de tiro para todas as idades, mas usa armas da vida real”.

É impossível saber se a Epic Games mudaria sua abordagem para as armas de Fortnite se soubesse que tantas crianças iriam se interessar, mas se havia um momento para mudar isso, provavelmente foi quando o jogo ganhou uma versão para celular, e isso não aconteceu.

“Eu sei que meus filhos gostam do visual cartunesco e do bom humor desse mundo, mas não consigo deixar de pensar que Fortnite é uma febre entre crianças e adultos. Fortnite tem um visual de jogo de tiro para todas as idades, mas usa armas da vida real.”

Sem surpresa, quando as crianças não estão jogando Fortnite, elas estão pensando em Fortnite. Steven, professor de uma escolha primária do Arizona, assistiu seus alunos da 4ª série transformarem o playground numa partida de Fortnite. Alguns alunos caíam em batalha, outros comentavam em tempo real (à la Twitch). Mas no meio da batalha, alguns garotos começaram a usar suas “armas” inapropriadamente, incluindo disparar contra o “público”. Steven teve que parar a brincadeira aí.

Tudo isso aconteceu apenas alguns dias depois dos eventos em Parkland.

“Pensando agora, não sei se esses estudantes estavam conscientes disso”, disse Steven. “Não que eu espere que alunos da 4ª série sejam conscientizados sobre isso. Não achei que eu deveria explicar tiroteios em escolas para crianças que podem não ter um contexto para isso, mas agora estabelecemos regras para brincadeiras improvisadas. Uma das regras é nada de violência excessiva.”

Mas considerando a natureza de um fenômeno, estar por toda parte, faz sentido que algumas consequências sejam inesperadas e caóticas. E isso significa que você acaba com histórias como a que vou contar agora, talvez o subproduto mais inesperado da febre Fortnite.

O professor do ensino médio Josh Hart me disse que Fortnite deu a ele um jeito de envolver os alunos em literatura. Fortnite Gatsby, O Grande Gatsby reimaginado por um dos alunos, se tornou o conto de Tom e Daisy morando em Snobby Shores, um local conhecido do mapa do Battle Royale de Fortnite, enquanto Gatsby assiste 100 novos “sonhadores” sendo trazidos para a ilha de ônibus. E nessa versão, a luz verde que hipnotiza Gatsby se torna a tempestade sempre no horizonte de Fortnite.

“O fracasso do sonho americano é representado pelo fato que só 1 desses 100 realmente consegue chegar ao final”, ele disse.

E sabe de uma coisa, essa é uma ótima analogia.

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