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Sem o desfecho real da Lava-Jato, 'O Mecanismo' é uma sátira acidental

Nova série da Netflix orquestrada por José Padilha tropeça no som e no sonho molhado do seu diretor.
Selton Mello como o delegado doidão Marco Ruffo em 'O Mecanismo'. Todas as imagens: Netflix/Reprodução.

Aviso: contém altos spoilers.

No começo deste ano, José Padilha soltou um enorme spoiler d’O Mecanismo bem no começo da sua coluna semanal n’O Globo. [Modificado para maior compreensão] "O futuro da Lava-Jato, a possibilidade de que a operação termine modificando as práticas odiosas de nossa política de forma substancial, depende do destino de Lula”, disse o cineasta, revelando não só o final da sua série produzida pelo Netflix e lançada neste mês, mas também deixando bem claro qual é a sua visão sonhática da confusa realidade política do Brasil.

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Como ele mesmo diz no resto da coluna, Padilha tem um grande plano para ajeitar a política brasileira. Ele acredita que a prisão de Lula mudaria a opinião pública dos brasileiros, que passariam a apoiar cegamente tudo o que a galera da Lava-Jato mandasse, o que acabaria com os partidos tradicionais e “o mecanismo” da corrupção, como ele mesmo diz, seria finalmente derrotado de uma vez por todas. Esquerda e direita se unem, as brigas no almoço de família acabam e o Brasil está salvo. Fim.

É quase tão bonitinho e reducionista quanto o personagem do Selton Mello fazendo uma analogia entre a corrupção de empreiteiras e a de um encanador que havia lhe passado a perna lá pro fim da primeira temporada d'O Mecanismo.

A delegada Veronica Cardoni (Caroline Abras). Netflix/Reprodução.

A visão política de Padilha não é segredo pra ninguém, então também não deveria surpreender assinante algum do Netflix que O Mecanismo, uma série em que ele trabalha há anos, seja um espelho da sua visão de mundo. E a menos que você não esteja prestando atenção direito, a opinião pública brasileira não está longe da visão de Padilha, o que diz muito sobre quem é exatamente o público alvo d’O Mecanismo.

Independentemente se você gosta dessa perspectiva ou não, Padilha tem uma capacidade impressionante de acertar em cheio nos desejos existenciais da classe média brasileira.

Em Tropa de Elite 1 e 2, ele colocou nas telas a catarse do brasileiro mediano que fica de pau duraço quando vê polícia e exército batendo e matando. No primeiro filme, eram os bandidos favelados; no segundo, os bandidos engravatados. A narrativa protagonizada por Capitão Nascimento segue a visão limitada de mundo onde só existe o bem e o mal, preto no branco, onde quem separa (e julga e executa) os bons dos ruins são seres de moral inquestionável.

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É nesse mesmo universo onde O Mecanismo acontece, o que significa que os seus personagens e acontecimentos seguem a mesma lógica oito-ou-oitenta de bem e do mal.

O doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz) e o delegado Marco Ruffo (Selton Mello). Netflix/Reprodução.

A diferença entre Tropa de Elite (e Narcos, também produzida pelo cineasta), e O Mecanismo (que esteticamente se parece mais com o primeiro do que o segundo, por conta da proximidade dos temas) é um certo distanciamento histórico. Dessa vez, Padilha apostou em uma história cujos eventos são muito recentes e o desfecho ninguém sabe.

Por mais que Padilha insista que a sua série seja um trabalho de ficção (e é óbvio que ela é, ninguém disputa isso), a base da narrativa d'O Mecanismo fundamentalmente depende de acontecimentos e personagens reais. Se em Tropa de Elite o capitão Nascimento ficasse doidão e metesse um tiro na cabeça do Papa, a história perderia o sentido. Se em Narcos o Pablo Escobar virasse presidente da Colômbia e entrasse em guerra com os EUA, a história perderia o sentido. Ele pode até tentar correr das comparações feitas por críticos, mas sem uma conclusão esclarecedora pra história da vida real, os acontecimentos fictícios d'O Mecanismo fazem da série uma sátira acidental.

Presidenta Janete Ruscov, baseada obviamente em Dilma Rousseff.

Não é a toa que os personagens baseados em figuras ilustres sejam tão destoantes dos outros personagens da série. O Lula de Padilha reclamando que o cenário da campanha política era “muito coxinha” e a sua Dilma pedindo a opinião sobre o seu cabelo pros seus assessores parece uma enorme sátira, um quadro num programa do Marcelo Adnet.

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Enquanto isso, Selton Mello, Caroline Abras, Enrique Diaz e outros atores que fazem personagens menos famosos da vida real arrepiam muito nas suas cenas — mas infelizmente só quando dá pra ouvir. Por conta de uma mixagem de som sofrível, eu passei mais da metade do tempo dessa série berrando pra TV, “Fala mais alto, Selton, não entendi nada, homem!”.

É uma pena que todos sejam obrigados a ligar as legendas do Netflix para assistir a’O Mecanismo, porque elas estragam a ótima fotografia da série, um dos pontos altos não só dessa obra de Padilha, mas de praticamente tudo que ele já fez até agora.

O Mecanismo é definitivamente uma série catártica para quem divide essa visão de Brasil exposta na capa da Veja e nos grupões reaças de Whatsapp, o que pode ser hediondo para quem tem aversão à opinião política de boa parte dos brasileiros. Pessoalmente, me fascina a forma como Padilha consegue resumir essa visão absolutamente medíocre e ingênua do Brasil através de bons atores e boa fotografia, o que até me faz querer assistir a inevitável segunda temporada da sua série e ver como ele vai dar um desfecho para essa fantasia toda.

Contanto que ele não me obrigue nunca mais a imaginar o juiz Sérgio Moro transando, é claro.

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