Jards Macalé
Foto: Léo Aversa

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Noisey

Jards Macalé expõe a sujeira do Brasil em 'Besta Fera'

Em seu primeiro disco de inéditas em 20 anos, o compositor comenta as trevas em que nosso país caiu ao longo das últimas duas décadas.

"Trevas", o primeiro single do novo álbum de Jards Macalé, brincou com uma justaposição curiosa: pra comentar a situação política do Brasil em 2019, o compositor adaptou um poema do escritor inglês norte-americano Ezra Pound, notório simpatizante do fascismo, traduzido por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Esse comentário crítico, com um tom discreto de ironia e que fala de um lugar muito consciente de si foi a entrada perfeita para o disco completo, Besta Fera, lançado nesta sexta (8) pela Natura Musical.

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Em parceria com os velhos novos nomes da MPB Kiko Dinucci, Rômulo Fróes e Thomas Harres, o álbum é o primeiro disco de inéditas que Jards lança desde O Q Eu Faço é Música, de 1998 . Neste tempo de "pausa" — entre aspas porque o compositor trabalhou em toda a sorte de projetos musicais e cinematográficos durante esses 20 anos —, o tema político inerente ao trabalho de Jards deu um pulo de 180º e agora desemboca no governo Bolsonaro.

Apesar da situação espinhosa, Jards mostra que sua capacidade de composição está tão afiada quanto sempre foi e reflete toda a sujeira que encontrou no Brasil de 2019 na musicalidade torta e poluída do disco — característica de Dinucci e Fróes que, trabalharam também com Elza Soares e nas bandas Passo Torto e Metá Metá ao longo dos últimos anos, além de seus próprios projetos solo. Nos momentos mais ternos de Besta Fera, o compositor é acompanhado de vozes como a de Juçara Marçal ("Peixe") e Tim Bernardes ("Buraco da Consolação"), que também compôs a música da qual participa. O disco também conta com uma composição de Ava Rocha, "Limite".

Por telefone, Jards falou do processo de criação, mutação e podagem de ideias que foi Besta Fera, e divide seus pensamentos sobre a situação do Brasil em 2019. Acompanhe o papo e ouça o disco abaixo:

Noisey: Besta Fera é seu primeiro disco de inéditas em 20 anos. Como foi sua relação com a composição ao longo deste tempo?
Jards Macalé: Fiz várias coisas, principalmente instrumentais. Eram coisas que me interessavam pela leitura de poemas, livros e textos. Gravei alguns discos como Amor, Ordem e Progresso , em homenagem ao Moreira da Silva, o JARDS que é um disco ao vivo, relendo e lendo músicas minhas e de outros autores. E fiz algumas músicas inéditas nesse tempo, como minha música com Glauber Rocha, com Nelson Pereira do Santes, o pessoal do cinema. Também fui lendo várias outras coisas, Tom Jobim, Luiz Melodia, que me chamaram a atenção e me tocaram muito.

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Até que, diante do edital da Natura, propusemos fazer um disco só de inéditas. Foi aí que eu pedi a ajuda do Thomas Harres, baterista, pedi letras pra Ava Rocha, e vieram letras do Clima, do Rômulo Fróes, do Rodrigo Campos, e algumas outras músicas totalmente inéditas que eu já havia composto e estavam aqui.

Quando você começou o disco, então, você já tinha coisas guardadas pra usar?
Pra usar não, eu tinha até esquecido. Quando puxamos a proposta de inéditas e ganhamos o edital, aí é que eu fui buscar essas músicas.

Como foi trabalhar com essa galera toda que você citou — Kiko Dinucci, Rômulo Fróes, Thomas Harres?
Foi muito divertido. Eles não param de ter ideias. Foi um problema terminar esse disco, porque cada hora surgia uma ideia diferente. Às vezes tinha até uma confusão pra decidir quais saíam e quais ficavam ( risos). Mas foi muito divertido, é uma turma engraçada e profissional. Todo mundo com muita vontade, atenção e concentração. Gravamos lá no Red Bull [Studio, em São Paulo], ficávamos das 9 da manhã às 7 da noite lá. Entramos em estúdio no dia 17 de agosto e terminamos no dia 31, então foram praticamente duas semanas assim.

Você trabalhou com essa galera que é meio nova e no disco tem umas participações como Tim Bernardes, Ava Rocha. Você acha que isso vai angariar novos públicos?
Acho que vai somar. Eu recentemente comecei a ganhar um público novo, o pessoal começou a gostar muito do disco de 1972, Jards Macalé, disco que eu fiz com Lanny Gordin e Tutty Moreno. Um público novo, jovem, redescobriu esse disco e começou a inclusive aparecer nos shows e pedir músicas dele. Pediam muito “Mal Secreto”, “Hotel das Estrelas”, “Vapor Barato” que O Rappa tornou um hit. Nesse disco agora, somando o pessoal do Metá Metá, do Passo Torto, o Tim Bernardes, isso vai crescer mais ainda.

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Por que você acha que rolou esse redescobrimento do Jards Macalé?
Eu não sei, acho que foi pela concepção do disco. É o Lenny Gordin tocando violão de corda acústico e baixo, Tutty Moreno no piano e eu no violão e nas canções. Ele tem um tom meio de jam session, era um improviso. A gente ensaiou muito no porão do Teatro Opinião aqui do Rio, e no final gravamos tudo praticamente ao vivo. Eu acho que tem um formato, uma linguagem de descontração e de improviso, que chamou a atenção da rapaziada.

Quais você acha que são as similaridades e diferenças entre esse seu primeiro disco e Besta Fera?
Acho que eles são da mesma família. O Jards Macalé é muito bom, eu gosto, mas tecnicamente ele não está bem gravado. Tem um negócio sujo ali. Naquela época era sujo porque não tinha outro jeito. Agora o Besta Fera também é sujo, entre aspas, mas propositalmente. Foi proposital essa não-limpeza total que existe muito na música agora, tudo asséptico demais. Ele tem uma coisa de improviso, também.

De onde veio essa vontade de dar uma cara mais suja pro álbum?
É porque o Brasil está muito sujo, o mundo está muito sujo. Então [o disco] faz parte dessa história. Eu fiz muito cinema também, e o cinema no Brasil está muito clean. Aquela coisa toda do cinema novo, o cinema da década de 50 e 60, era feito na raça. Toda a minha linguagem absorveu a coisa do cinema, eu nunca quis fazer uma coisa perfeita, clean, toda direitinha. Quis fazer o que eu faço, mesmo.

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Tornar o disco parte da sujeira é também uma forma de se colocar como parte ativa do que está acontecendo no Brasil?
Isso, é ativa mesmo. Minha linguagem é muito limpa, não no sentido do clean, mas no sentido de que a intenção que eu quero dar é muito clara. Quero comentar essa sujeira.

Em “Trevas”, você musicou um poema do Ezra Pound, simpatizante do nazismo. O que isso significa no Brasil 2019?
Você já notou que a coisa está cheia de trevas? Eu fiz uma música há muito tempo, do Ezra Pound também, chamada “Luz”. E de repente encontrei esse poema do “Canto nº 1”, tradução do Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. O poema era longo, eu peguei um trecho que falava de trevas. Como eu tenho ouvido muito todo mundo falando de trevas, fundo do poço, resolvi comentar isso publicamente.

O fio narrativo do disco é um comentário sobre a situação do país?
Totalmente. Eu sempre estive perto disso, produzi O Banquete dos Mendigos em plena ditadura. Todos os meus discos têm uma relação com isso. Às vezes humorada, às vezes dramática, mas eu estou sempre pensando nisso.

Há espaço pra olhar pra isso com humor?
Eu nunca vi tanto material pra humor ( risos). Tão dando a maior colher de chá pra humor. Eu fico pensando se o Henfil tivesse vivo, se o Sérgio Porto estivesse vivo, se o Millôr Fernandes estivesse vivo, esse pessoal, seria uma mão cheia. Eles estão dando de bandeja.

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