O debate sobre o aborto é um dos maiores desafios ideológicos do Brasil
Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

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Feminisme

O debate sobre o aborto é um dos maiores desafios ideológicos do Brasil

A audiência pública no STF que discutiu o tema colocou frente a frente brasileiros com visões totalmente diferentes sobre a autonomia da mulher.

Durante os dias 3 e 6 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiência pública para debater a possibilidade de descriminalização do aborto no Brasil até a 12a semana de gestação. A Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) n. 442 foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em conjunto com a Anis — Instituto de Bioética, para discutir os artigos 124 e 126 do Código Penal que criminalizam a interrupção voluntária da gravidez. Atualmente, existem três situações em que, ao menos na teoria, o permitem o procedimento no país: casos de estupro, fetos anencéfalos ou risco de morte para a mulher. O partido e a organização não-governamental buscam, por meio da eliminação dos artigos, que seja garantido às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação de acordo com a autonomia feminina — sem necessidade de permissão do Estado e em um cenário em que profissionais de saúde estejam capacitados e autorizados a realizar o procedimento.

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Com algumas poucas ausências, a programação contou com dezenas de representantes de diversos setores da sociedade que foram selecionados pela ministra Rosa Weber, relatora da ADPF 442, a partir de chamada pública. Contudo, como foi observado durante os dois dias de audiência, a discordância entre as partes que defendem e criticam a descriminalização do procedimento mostram um entendimento fundamentalmente discrepante no que diz respeito, principalmente, à autonomia da mulher. Essa diferença de ponto de vista é o que torna particularmente desafiador um debate sobre aborto que evidencie o viés de escolha. Quando o enfoque da conversa não prioriza uma justificativa ao mesmo tempo trágica e alheia ao controle feminino, o panorama atual de mortes causadas por procedimentos inseguros não se mostra suficientemente devastador para quem se encontra sob a égide da moralidade cristã.

Estigmas

Nas filas formadas para adentrar a audiência, opiniões se dividiam silenciosamente entre pessoas que seguravam terços ou camisetas com dizeres como "nem presa, nem morta" (que foram proibidas e fizeram com que muitas mulheres precisassem trocar de roupa). O primeiro dia contou, em grande parte, com a participação de especialistas, instituições e organizações nacionais e internacionais voltadas para a pesquisa em saúde, como Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (CEMICAMP), Women on Waves e outras. Foram apresentados dados e informações sobre aborto no Brasil e no mundo a partir de estudos e experiências de campo, ressaltando a importância da descriminalização do aborto para a garantia da saúde e do bem-estar da mulher. Os números também contribuíram para tornar o debate mais complexo, mostrando especificidades como a falha de métodos contraceptivos, que ultrapassam o argumento de que "basta prevenir".

A doutora em Psicologia Social pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e representante do Conselho Federal de Psicologia, Sandra Elena Sposito, foi além do aborto seguro como relevante para a saúde feminina e citou a imposição social da maternidade como uma definidora do papel e destino da mulher. Ela acrescentou, ainda, que muito do sofrimento psicológico enfrentado por quem aborta parte de um contexto moralizante que produz sujeitos estigmatizados pelo rótulo da vilania — e lembrou da existência transexual ao abordar o procedimento como um garantidor de autonomia para mulheres e para homens trans. A presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Lia Zanotta, também enfatizou a questão do estigma do aborto, que acaba por marginalizar mulheres e dificultar o procedimento mesmo nos casos permitidos por lei.

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Outra questão que costuma ser pouco lembrada foi a dos direitos sexuais e reprodutivos a partir de um olhar que realmente coloque a mulher com deficiência no centro da discussão. A antropóloga Adriana Abreu, representante do Instituto Baresi, afirmou que, enquanto uma mulher com deficiência e nascida com várias doenças raras, entre elas uma popularmente conhecida como “ossos de vidro”, considera ofensivo relacionar aborto com eugenia como alguns expositores fizeram. “Para os que ignoram a história e a recortam sem respeito ao passado, políticas eugênicas nazistas, por exemplo, jamais convidaram especialistas, religiões e sociedade civil a se pronunciar”, disse. Estudiosa do nazismo e da eugenia, a antropóloga argumentou que criminalizar a interrupção da gravidez é prejudicar também as mulheres com deficiência, que nem sempre se informam corretamente sobre sexualidade por serem vistas, por médicos e pela sociedade, como pessoas que não fazem sexo. “Nós, mulheres com deficiência, queremos decidir quando, como e se teremos filhos”, declarou.

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

A Estética do feto Comic Sans

Em contraste com toda essa ampla discussão recheada de sub-ramificações, organizações consolidadas porque possuem um site na internet e mandam spam nas redes sociais — como a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família — puderam apresentar ao público performances dignas de empreendedores de palco, PowerPoints em Comic Sans com trechos descontextualizados de notícias e muitas fotos de fetos (isso dá quase o nome de uma banda punk). Essa curiosa estética, aliás, é abraçada por grande parte dos opositores à descriminalização do aborto.

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

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Em uma espécie de pingue-pongue com a parede, toda a delicada discussão moral e biomédica que envolve o tema era soterrada em simplificações rasas que insistiam em seguir criminalizando a mulher que aborta ou que é sexualmente ativa, além de tratar o feto como um bebê. Segundo Lenise Garcia, por exemplo, doutora em Microbiologia e presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, “nenhum ser começa com 12 semanas, como nenhum mês começa no dia 12” e, desde Louis Pasteur, é possível constatar que um ser vivo vem de outro e não existe geração espontânea. O tom geral de falas semelhantes era manter a concepção de fecundação e desenvolvimento embrionário como sinônimo de um ser humano completo ao mesmo tempo em que, em alguns casos, tentavam negar que essa era uma argumentação de viés religioso.

Após um fim de semana de descanso, o segundo dia de audiência prosseguiu com a mesma agitação e colocou em destaque representantes religiosos de diversos segmentos. O bispo dom Ricardo Hoepers, da CNBB, criticou a ênfase dada por manifestantes pró-aborto a questão da autonomia da mulher — e homenageou os “bebês que morreram com suas mães”. Outros líderes religiosos (Convenção Batista Brasileira, Assembleia de Deus e Federação Espírita Brasileira, por exemplo) seguiram pelo mesmo caminho, bem como as associações de juristas evangélicos e católicos e a advogada Janaína Paschoal — que falou sobre o aborto como algo que naturaliza a vida sexual de crianças entre crianças (sabe se lá o porquê) para, no fim, considerar que “poderia, no máximo, se pensar em descriminalizar, e não legalizar” (a descriminalização do aborto era justamente o tema da audiência, vejam só).

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Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

Entre a ala contra o procedimento, argumentos uníssonos ecoaram na sala de audiência, como a comparação entre mulheres e tartarugas marinhas (que possuem ovos protegidos por leis ambientais, logo, o “ovo humano” também deveria ser protegido), a tentativa de sensibilização de feministas alegando que mulheres não estavam apenas abortando, mas sendo abortadas e a acusação de que tratar a questão da descriminalização no STF configuraria uma espécie de “ativismo judicial” que usurpa as competências do Poder Legislativo. Contudo, a ministra Rosa Weber interferiu no debate quando, pela milésima vez, um expositor contrário ao aborto falava sobre essa questão – o senador Magno Malta (PR-ES), no caso. Em um discreto esculacho, a relatora afirmou que o julgamento era, sim, uma atribuição do STF e leu o artigo 102 da Constituição Federal, que sinaliza que o tribunal está apto para apreciar uma ADPF.

Religiosos pró-aborto

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

O rabino Michel Schlesinger, da Confederação Israelita do Brasil, priorizou a integridade física da mãe e afirmou que, para o judaísmo, não existe vida completa e autônoma durante a gravidez, mas um potencial de vida que é sagrada e precisa ser resguardada, mas permanece em debate com diversos outros valores que a cercam. Já a pastora evangélica Lusmarina Garcia, do Instituto de Estudos da Religião, ressaltou que “há séculos, um cristianismo patriarcalizado é responsável por legitimar a morte de mulheres” e apontou que tradições religiosas são construções históricas — e não verdades absolutas. Indo ainda mais fundo no debate, ela alegou que a laicidade do Estado é fundamental para a garantia de direitos humanos e da igualdade de gênero. “Gênero não é ideologia, é um instrumental de análise das relações humanas e sociais”, explicou. As Católicas pelo Direito de Decidir também marcaram presença, clamando por um avanço da igreja, que já avançou em tantas outras áreas, nessa questão.

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Aborto como direito humano

O aborto foi comparado a um direito humano por muitos dos expositores presentes. O argumento é que, considerando que são as mulheres que engravidam, elas não podem ser as únicas penalizadas por relações sexuais que resultaram em uma gestação indesejada. Além disso, a insegurança do procedimento resulta em mortes evitáveis, principalmente quando se fala em mulheres em situação de vulnerabilidade. “A liberdade da mulher de decidir sobre a interrupção de uma gravidez não viola o direito à vida, ao contrário, consagra o seu direito à vida”, explicitou a defensora pública Fabiana Severo, do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Além da religião, o segundo dia contou também com uma abordagem mais jurídica do tema, onde a questão da abordagem penal constitucional foi apontada como mantenedora de desigualdades. “Esse debate é decisivo para revelar que a escolha dessa política penal representará uma escolha de vida e morte para mulheres negras”, enfatizou Lívia Miranda Müeller, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Débora Diniz: “O ódio não nos silencia”

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

Um momento esperado foi a fala de uma das maiores autoridades no que diz respeito à pesquisa sobre aborto no Brasil e na América Latina, a antropóloga, fundadora da Anis e professora da UnB, Débora Diniz. Ela chegou na discussão com o intuito de colocar o próprio debate em perspectiva. “Nem tudo vale, os dados não estão aí e eles não falam por si mesmos, ao contrário do que foi dito antes de mim”, ressaltou. “Não basta se apresentar aqui como cientista, ou mesmo ter um título de doutorado, para ser confiável a um debate da tamanha importância que é a criminalização do aborto no Brasil”. Para a concretização de um direito amparado em evidências, a pesquisadora alegou que é preciso avaliar quem produziu essas evidências, aonde elas foram disseminadas e como foram coletadas.

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Ela apresentou, ainda, dados da Pesquisa Nacional do Aborto a respeito do perfil das mulheres que abortam no país. De acordo com a antropóloga, uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez ao menos um aborto na vida — e a maioria realizou o procedimento na juventude, entre 20 e 24 anos, e hoje em dia possui filhos. A pesquisa mostra também que 56% das pessoas estudadas são de religião católica e 25%, evangélica. Contudo, para a estudiosa, “há uma distribuição do risco” que coloca mulheres mais jovens, mais pobres, negras ou indígenas em maior situação de vulnerabilidade no Brasil.

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

E agora? O que esperar disso tudo? Para a VICE, Débora Diniz disse que tudo muda após a audiência. “Nós ouvimos o que há de melhor em um júri de evidências. E também é uma qualificação para o debate eleitoral. Estamos a dois meses das eleições, isso tem que sair daqui e ir para o mundo”, ressaltou. De acordo com a pesquisadora, a corte está preparada para refletir sobre aborto, mas as emoções não vão — e nem devem — ficar de fora. “Mas não são elas que vão acompanhar a decisão do Supremo, isso eu tenho certeza”, acrescentou. Sobre os comentários de ódio e ameaças que tem recebido por estudar e divulgar o tema (e cujos autores foram descobertos esta semana), ela enfatizou que o assédio é a falta de argumento e a impossibilidade de diálogo. “E é uma forma de intimidação”. Contudo, a pesquisadora segue confiante: "O ódio não nos silencia. Nunca vai nos silenciar e nem vai intimidar."

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Ainda não há prazo para que a ação seja julgada e, de acordo com a ministra Rosa Weber, o próximo momento é de reflexão para os argumentos apresentados. Para Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis e uma das responsáveis por ajuizar a ação, o saldo da discussão foi positivo. "O alto nível dos argumentos qualificou muito o debate, não só dentro da ADPF, mas também com reflexos no debate político mais amplo sobre aborto", disse.

Dissonância cognitiva

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

Desde 2013 que Jaqueline Coelho Suassuna pesquisa e analisa o discurso sobre aborto em audiências públicas brasileiras. Professora do Instituto Federal de Brasília (IFB) e mestre em Linguística, Linguagem e Sociedade pela UnB, ela estava na audiência do STF como parte do público e constatou que muitos dos rostos ali presentes entre expositores e expositoras eram figuras repetidas de discussões anteriores. “Estou do lado que é favorável à descriminalização, e a gente bate muito na tecla de que a criminalização do aborto é um ato cruel principalmente contra as mulheres negras e periféricas”, explicou. “Mas falta, para a gente, conseguir fazer um contato com o outro lado".

De acordo com a pesquisadora, a religião acaba por ser um lugar de base ou refúgio que acolhe muitas mulheres, mesmo que a partir da negação de quem elas são. “E aí a gente sabe muito bem como isso opera quando a gente é mulher, né? Às vezes a gente cria a nossa identidade negando a outra, dizendo ‘sou diferente, sou uma mulher que vale a pena, não sou uma prostituta, sou bela, recatada e do lar’, e isso é uma coisa da nossa sobrevivência”, ressaltou. Para aquelas que não se identificam com “as defensoras de aborto”, slogans que ressaltam a vida das mulheres não as incluem. “Elas não são a gente, se consideram 'as outras'”. Portanto, para a professora, detectar a própria posição subalterna de quem precisa de direitos é também assumir um lugar político e lutar por mudanças. “As mulheres católicas não querem a liberação do aborto, mas também são as mulheres que praticam o aborto, porque não se identificam, não conseguem reconhecer que isso é uma dor delas”, exemplificou.

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Edna Zilli, da Associação dos Juristas Evangélicos (ANAJURE), encerrou sua fala como expositora dizendo: "Não sou bela, mas sou recatada e do lar". Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

Festival pela Vida das Mulheres

Entre os dias 3 e 6 de agosto, aconteceu o Festival Pela Vida das Mulheres na área externa do Museu da República, organizado de modo coletivo por grupos feministas, entidades científicas, organizações não-governamentais e sociedade civil. A programação do evento contou com feiras, rodas de conversa, exibição da audiência do STF em um telão, shows, atos – como o grupo de mulheres inspiradas em O Conto de Aia performando na porta do tribunal durante todo esse período – e uma marcha a favor da descriminalização do aborto.

Foto: Janine Moraes/VICE Brasil

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Opinião do público

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Rita de Cássia Nunes Machado (Goiânia)
Membro do Juristas Católicos da Arquidiocese de Goiânia e da comissão nacional do Brasil sem Aborto

“Nós somos frontalmente desfavoráveis à descriminalização do aborto, até porque essa ADPF é uma situação, desculpe a expressão, esdrúxula. Na verdade, é ativismo judicial e vai em conflito com todo o posicionamento do povo brasileiro. Estou assistindo aqui, estarrecida, mentiras. Vamos evitar o aborto. Se tenho uma vida desregrada, o filho tem culpa da vida desregrada? E se a vida gerada é uma mulher? Não se está discutindo aqui a vida da mulher?"

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Vera Regina Ramos (Rio de Janeiro)
Coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal Fluminense (SINTUFF)

“Viemos para a audiência coletar mais conhecimento e levar, para a base, mais informações. Muita gente não sabe o porquê de estarmos a favor do aborto. Não estamos a favor do aborto, estamos a favor da saúde da mulher"

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Rita Cardia (Rio de Janeiro)
Professora e integrante do grupo Pão e Rosas (grupo internacional que surgiu na Argentina e é impulsionado, no Brasil, por movimentos de trabalhadores)

“A gente veio acompanhar a ADPF defendendo a perspectiva de que o aborto não deixe apenas de ser um crime, mas se torne um direito. Tem que ser uma luta pela legalização do aborto, seguindo o exemplo das Argentinas”

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Érica Oliveira (Brasília)
Professora de física na rede pública

“Estou aqui porque o aborto é questão de saúde pública. A gente está vendo uma movimentação religiosa muito grande e é válido que as mulheres, por suas motivações religiosas não queiram abortar. Mas isso não pode ser uma coisa imposta à todas as mulheres. Cabe a cada mulher ter autonomia sobre seu corpo para decidir se quer prosseguir com uma gestação ou não”

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