Jotaerre revela o passado e toca o futuro do pagodão baiano em 'Choraviolla II'
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Noisey

Jotaerre revela o passado e toca o futuro do pagodão baiano em 'Choraviolla II'

Misturando ritmos afro, rock e música eletrônica, o guitarrista do Psirico joga luz sobre as raízes do gênero, berço da estética de ÀTTØØXXÁ e BaianaSystem.

Há mais ou menos dois anos, o ÀTTØØXXÁ e o BaianaSystem conquistaram os lineups dos principais festivais alternativos do Brasil e vem sendo propalados pela crítica musical como expoentes de uma nova cena de renovação da música baiana. O que é pouco comentado, no entanto, é que as tendências experimentais do pagode não surgiram do nada e não são tão novas assim. Em 2006, o Psirico combinava explicitamente o pagode baiano com techno e drum & bass no álbum Macumba Popular Brasileira, incluindo ainda uma série de pads eletrônicos entre os instrumentos de percussão nos seus shows entre 2009 e 2011. E não eram um caso isolado. No DVD Confraria dos Fantasmas (2008), o Fantasmão conta com um DJ fazendo scratches e também aparece flertando com beats sintetizados ao tocar o hit “Kuduro”, que por sua vez aciona referências da música angolana.

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Essas e outras pérolas escondidas (ou perdidas, porque às vezes retiradas do YouTube e 4shared) me foram apresentadas por um veterano inquieto do pagode baiano: Jotaerre, guitarrista do Psirico que solta hoje nas plataformas de streaming o álbum solo Choraviolla II — uma maturação do Choraviolla EP, de 2017.

Nascido no município de Paulo Afonso na Bahia, Jotaerre, 39 anos, sempre atuou em várias frentes musicais. Seu tio era diretor de um bloco afro em Paulo Afonso e ele cresceu tocando percussão no meio do ijexá. Passou por banda de grunge, gospel e forró até entrar no pagodão, que no fim dos anos 1990 tomava a Bahia diante do desgaste da axé music. Em 2003, entrou na banda Marreta You Planeta, um dos nomes mais populares da cena baiana da época. Apesar da estabilidade, continuou à procura da sua marca musical única. Inspirado pelo Psirico, abriu mão do preconceito com a música eletrônica e passou a produzir no Fruity Loops, mesclando beats eletrônicos, polirritmia percussiva e o suingue da guitarra do pagode — receita que veio aperfeiçoando desde então em vídeos no YouTube e aparece consolidada no Choraviolla II.

Jotaerre não apenas domina a sua música. É uma testemunha ocular (e agente) da história do pagodão — um movimento que, apesar de ter mais de uma década de vida, ainda é pouco conhecido e negligenciado pela imprensa musical tradicional, tão míope para os fenômenos culturais das periferias nordestinas. Em 2009, Ronaldo Lemos levantou na Revista Trip uma contradição fortuita que sintetiza bem essa miopia: a imprensa apresentava Mallu Magalhães sob o prisma do “fenômeno do ‘artista de internet’”, o sucesso do “pagode elétrico” do Fantasmão nas redes era ignorado. Os dados mostravam que o vídeo mais popular de Mallu no YouTube (uma entrevista no Altas Horas) tinha 532 mil visualizações, frente a 790 mil do vídeo mais popular do Fantasmão (uma montagem de fotos feita por fã por cima da música "Kuduro"). Ainda assim, Mallu era destaque em 77 artigos na mídia tradicional contra cinco do Fantasmão.

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Nesse papo, Jotaerre indica as pistas para uma breve história do desenvolvimento do pagodão. As peças do quebra cabeça que liga as violas do samba de roda do recôncavo baiano às distorções de guitarra e aos beats do Choraviolla II.

Noisey: E aí, Jota? Bem, eu sei que você tocou por muito tempo na Uskarafobia, banda de rock. Como foi que você foi pro pagodão?
Jotaerre: Eu comecei tocando bateria, fiz uma banda com o cantor do Uskarafobia. Depois aprendi a tocar guitarra e fiz uma banda de grunge, porém ainda saía nos blocos afro de Paulo Afonso. Tocava percussão, acompanhava sempre. Meu tio era diretor de bloco afro chamado Afrobahia lá em Paulo Afonso, então me serviu como referência esse lado da cultura.

Mas aí eu comecei a tocar guitarra e entrei numa banda gospel, pra aprender. Ia pra igreja, estudava. Depois tive que ir pra uma banda de forró. Meu filho nasceu e precisava ganhar grana. Saí do hobby pra ir pro profissional. Na verdade era uma banda de baile dos anos 90 que virou forró. Aí meu irmão entrou numa banda de pagodão, no final dos anos 90, quando o movimento chegou lá. E eu comecei a prestar atenção. Um ano depois eu falei: “Isso aqui já era, acabou a tradição de banda de baile”. Aí eu topei entrar numa banda de pagodão pra tocar cavaco. Em uma semana aprendi a tocar, fiz um estudo intenso. Nessa época não existia referência de guitarra, você não imaginava que ia tocar guitarra nas bandas de pagode. Então fiquei tocando cavaco, metendo um monte de efeito, tipo um Tom Morello do cavaco. Eu já tinha essa ideia que vinha do lado do rock & roll alternativo de querer fazer seu som, deixar sua marca. Essa banda já me permitia fazer isso. E eu fui elaborando meu projeto.

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Afinal, qual é a diferença entre o pagodão e o axé?
Na época, era o som do É O Tchan indo para o Harmonia do Samba. Eu acredito que o axé tem outras referências. E acho que o axé é diferente do pagode no sentido social também. O pagode é a música da favela, é a música do povão. O axé sempre foi uma parada mais comercial. Tem as influências negras do samba reggae? Tem. Mas ele usou muito o lance da imagem. Acho que o axé não é tão negro quanto o pagodão. Acho que ele abre mão de muitas coisas em nome do lado comercial. O axé eu não acredito mais que é um estilo verdadeiro e nessa época [final dos anos 1990] já tava morrendo. O pagode tem muito mais verdade que o axé, que já vem no formato mais comercial. A diferença é essa. E musicalmente eu acho que o axé não é tão suingado quanto o pagode. Pagode é suingue, pulsação. Uma coisa mais de punch mesmo.

Tanto é que nas bandas de axé tipo É o Tchan não tem tanta percussão, né? Você ouve as batidas de samba-reggae, mas não tem aquelas viradas malucas do Fantasmão, do Robyssão Black Style, do Psirico.
Que é uma herança da Timbalada, né? A Timbalada era tipo o Deus da percussão em Salvador. E o Psirico conseguiu se transformar numa banda que representa isso hoje.

E também não se ouvia a guitarra nessas músicas de axé. No pagodão eu escuto a guitarra e o baixo fazendo sempre muito riff, tipo “Tome Tome Tome”, do Saiddy Bamba. Mas você disse que no começo mesmo do movimento não tinha isso. Como as referências de guitarra foram surgindo? Como que o pagode foi formando esse som mais elétrico?
A guitarra no pagode não tinha um vocabulário extenso. Não existia uma linguagem própria. Existia muito o cavaco, e o baixo representava muito a viola, no caso a viola machete, que é a nossa viola do samba de roda da Bahia, o samba chula. E aí a guitarra tinha uma lacuna. Você não sabia se colava com o cavaco ou o se dobrava o baixo. O que acredito que aconteceu foi que vários guitarristas começaram a suprir esse vazio harmônico, a criar as violas junto com o baixo. Isso começou a se desenvolver acho que a partir de um cara chamado Serginho [Sérgio Rocha], que tocou no Cia do Pagode [de “Boquinha na Garrafa”] e no Babado Novo. Foi o primeiro cara que eu vi que se destacou. A banda dele não tinha cavaco, então você já sentia que tinha uma evolução.

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A guitarra foi pro primeiro plano, deixa de fazer só a base.
Isso. Ele passou a preencher tudo harmonicamente, uma coisa bem jazzística. E era de foder. Era uma coisa peculiar, difícil de fazer porque tinha que ter muito swing. E depois outra coisa importante foi o Psirico. Ele veio com duas guitarras na banda, foi um choque, em 2000 ou 2001, e uma com distorção. Não é mais a onda de fazer turucutu. Eu queria ter feito aquilo desde quando eu tinha entrado no pagode, mas não me permitia, eu ainda não tinha força pra pegar uma guitarra e fazer. Foi aquilo que me deu uma luz.

Que música mostra essa mudança?
“Sambadinha”. Isso é um clássico! E é uma parada muito bem sacada porque é um pedal de wah-wah fazendo três notas. Uma parada genial. E meteu um efeito, é uma coisa totalmente oposta à proposta da guitarra no pagode até então. E também tem uma outra música do Psirico chamada “Pianinho” num CD histórico de pagode que é o Bahia Mania do Pagode, que o guitarrista Alexandre Vargas “Espirro” (um guitarrista lendário, acho que atualmente tá tocando com Daniella Mercury) botou uma guitarra fuderosa nessa faixa, que destoa de tudo. Com distorção ligada, bem rock n roll. No meio daquele monte de banda tradicionais no CD, tem essa faixa toda torta. É quando a guitarra começa a mudar.

Nessa época você também tava tocava rock com Uskarafobia. Como era a relação do pessoal mais do rock com o pagode e tua adaptação?
A adaptação foi difícil, muito difícil. Mas sempre gostei de tocar pagode. Só que não era uma coisa bem vista entre a galera do rock, então recebi muitas críticas. Mas eu enxergava assim: eu queria deixar uma marca, eu não queria tocar guitarra igual aos caras. Eu queria era fazer a minha onda.

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Nem igual aos caras do rock, nem igual ao pagodão.
Eu tentei fazer das duas formas. Só que a pegada mais rock & roll fica muito, muito duro pro pagode. Tirava o suingue. Então tive que achar um jeito de colocar essa distorção no pagode e deixar ela suingada pro povo dançar. Esse é o grande desafio, fazer uma parada muito experimental e que balance o povo. Foi uma dificuldade que eu tive. Mas também não parei só no suingue, comecei a ver alguma forma de trazer alguma influência do new metal que naquela hora, pelo menos na cidade, tava muito em evidência Linkin Park, Korn, System of a Down, Rage Against The Machine.

Isso foi quando você foi já estava no Marreta You Planeta, né?
Isso.

Tem uma faixa que mostra esse teu processo de ficar experimentando e de tentar encaixar as duas coisas?
“Bagaceira”, do Marreta You Planeta, é muito importante no sentido de ser um dos primeiros experimentos que fiz. O início é um samba de roda, segue uma linha de samba de viola mesmo, só que com a distorção ligada. Quando eu botei aquilo ali já senti que cabia. O arranjo começava com uma referência a “Welcome To The Jungle”, do Guns n Roses, e depois entrava o samba de roda com distorção de fato mais o cavaco dobrando. A partir daí comecei a fazer esse laboratório, com muita influência do Psirico.

Por essas histórias, o Psirico parece muito aberto a receber essas experimentações. Há quanto tempo tu toca na banda e como é tua relação de músico com o Psirico? Até que ponto Márcio [Vitor, vocalista e líder do grupo] se coloca criativamente e até que ponto ele dá espaço pra vocês?
Eu entrei no verão de 2013, época de “Lepo Lepo”… Mas então, Márcio é um cara que sabe muito bem o que quer. Ele tem uma personalidade musical muito forte, é um gênio. Então por mais que você seja um músico super criativo, você tem que esperar o feedback. Ele dá o espaço pra você, mas ele anda com o som dele debaixo do braço. Ele protege muito. Tem algumas brechas pra colocar, mas ele escolhe o músico pro perfil dele. Quando ele me chamou, várias coisas que eu tocava era o que ele queria aplicar. O perfil dele é bem experimental, gosta de inovar, não é aquele cara retrô. Ele gosta de olhar pra frente, Márcio é muito dinâmico. Ele sempre pediu o diferente, o moderno. E eu vim preparado com todo esse material pra ele. Então o espaço que eu tenho é livre, porém determinado. Naquele espaço posso fazer o que quiser, mas a direção é dele. Ele é um maestro.

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Você já comentou comigo sobre um show do Psirico que eles usavam instrumentos eletrônicos. Explica essa história.
Isso foi outro choque que tive com a banda. A primeira foi aquele lança das duas guitarras e o segundo foi esse set. Eu subi no palco do Olinda Beer, olhei, e não vi instrumentos. Vi um monte de pads decorados na forma de tambor, uma coisa bem futurista. Eu olhei e pirei: “Caralho, como esses caras fazem isso?!” Desde a bacurinha até o surdo. O surdo é uma coisa que a gente toca sempre abafando, mas eles tocavam com as duas mãos, já explorando o subgrave do eletrônico. Márcio brincou com isso durante uma turnê toda, uma tour inteira levando esse material eletrônico.

Isso foi em 2009, no palco. Mas se a gente for mais a fundo tem coisa anterior, ainda antes do “Samba Eletrônico” [em 2011]. Paulada, o tecladista e maestro do Psi, disse que o primeiro disco que ele trabalhou com os kits eletrônicos de maneira consciente foi o Macumba Popular Brasileira, gravado entre 2005 e 2006 no Groove Studio, de Durval Lelys. Márcio já experimentava isso. Ele tinha ligação com Ramiro Mussoto [produtor e compositor argentino radicado no Brasil desde os anos 80], que era um cara a frente de tudo e dava esses toques, então Márcio ousava, começou a meter o louco e inserir um monte de ritmos, de estilos e elementos diferentes no pagode.

Ninha, ex-vocalista do Timbalada, é tio de Márcio. E eles fizeram um CD juntos com Paulada de samba de roda eletrônico [Sambatrônico, de 2011] só que eles não lançaram. A gente escuta muito no ônibus. É uma parada que ainda é bem atual, uma relíquia.

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Ou seja, isso do subgrave e dos beats eletrônicos que tá em alta com o BaianaSystem e com o ÀTTØØXXÁ o Psirico já trabalhava.
É o seguinte: música é uma coisa, show business é outra. A música eletrônica no sentido do pagodão sempre existiu. Porém o show business é diferente, é você pegar essa parada e transformar em produto, em comércio, mercado. Isso aí foi o que o ÀTTØØXXÁ fez. Eles reuniram essas informações e transformaram em uma estética, em grana, em uma imagem. Tornou viável isso. Pegou, vestiu a camisa e decidiu: vamo ser isso.

Levantaram a bandeira do pagodão eletrônico.
Isso. E são pioneiros nesse sentido. Porém a música em si existia e com várias referências. É como tinha o Lou Reed antes, só que o Ramones fica como a grande banda punk. Acho que vai por aí. E, pra gente chegar no Choraviolla, rolaram vários laboratórios também da minha parte. Tenho um canal no YouTube desde 2009 já testando na base eletrônica, não tem elementos percussivos. Quando fui tocar no Marreta, na época fazendo muitos experimentos, eu baixei o Fruity Loops. Eu tinha um preconceito enorme com música eletrônica até ali. Depois de muitas tentativas, eu aprendi a fazer um groove e daí fiz a minha primeira faixa com o Fruity Loops, chamada "Tecnoquebra". Foi foda! Fiquei todo orgulhoso! Hoje eu faço isso em cinco segundos, mas naquela época era outro jogo. Botei no Orkut e a galera execrou aquilo. Mesmo assim não liguei e comecei a fazer vídeos regularmente, sempre com linguagem eletrônica. No decorrer dos anos a linguagem foi mudando, fui aprendendo mais a fazer os beats, a encaixar melhor a guitarra e encaixando outros elementos.

Era uma coisa que eu fazia como hobby, não tinha interesse nenhum em fazer show pra ganhar grana. Era uma coisa de quarto que eu fazia e aí Rafa [Dias, do ÀTTØØXXÁ] mostrou pra Mahal [Pita]… Aí começou já a se formar o olho do furacão. Aí cada um foi fazendo um projeto, eles viram isso em 2009 ou 2010, assim aquela ideia começou a virar uma coisa maior e compartilhada com as outras pessoas. Os caras realmente transformaram numa parada grande. E gravei todos os discos com ele, desde os Nelsons até o ÀTTØØXXÁ tem minha guitarra ali, sempre participei.

E como surgiu a ideia do Choraviolla?
Eu vendo os caras se organizando também tive a ideia de tirar aquilo da internet e fazer um disco. Veio como um fruto disso aí, a vontade organizar aquelas ideias. Antes eu fazia o beat, improvisava em cima e fazia uma história em cima de um conceito das matrizes africanas por cima disso. Por isso que no Choraviolla você vai ver um pouco de kompa, um pouco de blues, ijexá, um pouco de psicodelia.

O disco é inspirado em um ataque surpresa que a Holanda arquitetou e executou pra conquistar Salvador, no século XVIII. Cada faixa se refere a uma situação. Eu imagino o filme dessa batalha e uma trilha sonora pra esse evento.

Como você vê o pagodão hoje e como você imagina o desenvolvimento dele no futuro?
Eu vejo o pagodão como um gênero subestimado musicalmente. Sempre vai ter a existência mercadológica por ser um estilo que vem da galera da favela, mais pobre, uma questão mais social. Mas se fosse uma música europeia o pagode ia ser foda… Eu acredito que o pagode é um estilo em desenvolvimento. Os músicos fazem os arranjos percussivos mais elaborados. Só que tá em desenvolvimento, acho que ainda vai ter o ápice. Tem uma baixa mercadológica por causa de outros estilos que vão crescendo como o funk, é natural, mas a música não tá em crise, ela tá em expansão criativa. Os músicos de pagode estão mudando.

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