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David Simon

David Simon é o responsável por um dos maiores feitos narrativos do século passado, que é a sequência das cinco temporadas completas da série de televisão The Wire.

Fotos por Philip Andrews

David Simon é o responsável por um dos maiores feitos narrativos do século passado, que é a sequência das cinco temporadas completas da série de televisão The Wire. Se isso parece uma hipérbole para você, é porque você ainda não assistiu ao seriado. É a rede mais intrincada de personagens, motivações, insight, ação, repercussão e emoção que já passou na televisão, e rivaliza os grandes romances do final do século XIX, quando os romances tinham, realmente, e constantemente, alcance. Mais hipérbole, mas é isso aí. Eu e a maioria dos fãs estamos para o The Wire assim como um cristão está para Cristo ou um viciado para a droga. É basicamente A PORRA DE UM DEUS. Hipérbole demais ali, talvez. Mas deu pra sacar a ideia, né? Antes do The Wire, David Simon era um repórter no Baltimore Sun. Durante sua estada lá, ele escreveu dois livros meti-culosamente pesquisados e ricos em detalhes humanos sobre a sua cidade. Homicide: A Year on the Killing Streets (1991) foi o resultado de um ano acompanhando a polícia de homicídios de uma cidade onde assassinato parece ser a principal atividade profissional. The Corner: A Year in the Life of an Inner-City Neighborhood (1997, escrito em conjunto com Ed Burns) foi o resultado de um ano entre as famílias, viciados e traficantes de um dos mais famosos pontos de vendas de drogas de Baltimore. De Homicide saiu o programa Homicide: Life on the Street, que era legal e tal, melhor que a maioria dos seriados policiais, mas também era só um seriado policial. The Corner resultou em uma minissérie da HBO que é praticamente o antecedente direto do The Wire. Depois de The Wire, Simon e Ed Burns, que é professor primário e ex-policial de Baltimore, adaptaram o livro Generation Kill de Evan Wright para uma minissérie da HBO. É o documento mais efetivo, ainda que produzido, da realidade diária dos fuzileiros navais na atual guerra com o Iraque. E agora, enquanto digito isso, Simon está filmando sua nova série da HBO em Nova Orleans. Chama-se Tremé, e dizem que tem seu centro na vida de músicos locais. Mas tenho a impressão de que isso é a mesma coisa que dizer que The Wire tinha como centro o comércio de drogas de Baltimore. Claro, esse é o ponto de partida. Mas dada a obsessão de Simon com a cidade norte-americana e a diminuição do valor institucional da vida, acho que podemos afirmar que Tremé terá o mesmo alcance e impacto que The Wire. Em outras palavras, estou tão ansioso, que eu podia ser congelado criogenicamente até o dia da estreia da série. Recentemente Simon conversou com a Vice do escritório de produção de Tremé em Nova Orleans. Sem dúvida, essa é de longe a maior entrevista que já publicamos, mas vamos combinar, é o cara que fez The Wire. A edição inteira poderia ter sido a respeito dele. Vice: Eu não sei se as pessoas que marcaram essa entrevista te contaram, mas tivemos um encontro interessante ano passado. Eu estava entrando num show do The Pogues em Nova York…
David Simon: Um babaca furou a fila. É. Exatamente. 
O cara com o Ministro da Doença.  Ele mesmo. Eu estava do seu lado, bem na sua frente. Eu me dei conta que era você depois que percebi que um monte de desco-nhecidos estava indo até o cara atrás de mim e dizendo coisas do tipo “Obrigado” e “Eu adoro o seu trabalho”. Aí eu olhei pra trás e vi uma jaqueta da quinta temporada de Homicide: Life on the Street e foi tipo “Caralho. É o David Simon”. Daí um cara começa a furar a fila na frente da gente e você apavora o cara. Você perguntou se ele achava que era a Rainha da Inglaterra.
Bom, só não fura a fila, sabe? Eu encontrei com o cara depois.  Sério? 
É, depois que eu peguei os ingressos passei por ele. Tanto eu quanto ele em tempo de assistir ao show. Aí é que está. Eu disse pra ele: “Valeu a pena?”. Ele só me fuzilou com o olhar.  Parece que ele não estava entendendo. 
Daí mais tarde estávamos os dois no back-stage. É mesmo? Quem era ele, um cara da gravadora ou algo assim? 
Não sei, mas o backstage estava lotado, e eu estava ali para falar um oi para as pessoas que eu conheço da banda. A última coisa que eu queria era brigar com ele. Então fiquei na minha. Tomei muito cuidado para não continuar com aquela discussão ali, mas, quando o encontrei antes do show, eu estava numas de “Eu entrei. Você entrou. As pessoas que estavam atrás de mim na fila entraram”. Odeio esse tipo de coisa. Fico meio constrangido com a merda que aconteceu ali, mas enfim. Acontece. Eu adorei. Foi tipo, cara, ele realmente faz o que fala. Fiquei feliz. 
Não saí na porrada com o cara nem nada disso. Eu não ia dar o primeiro soco. Não seria correto.  Bom, eu te defenderia. 
E iam acabar me expulsando de um show que eu tinha…  Seria por um bom motivo. Certo. Sempre tive curiosidade em saber como uma temporada de The Wire era estruturada antes do início das gravações. Você pode esboçar, mesmo que de uma maneira bem simplificada, o processo de escrita do roteiro?
Tínhamos uma série de reuniões de planejamento. Primeiro, no começo de cada temporada, fazíamos um tipo de retiro com os principais escritores, os caras que fariam parte da equipe o ano inteiro. Discutíamos o que estávamos tentando contar, mas na verdade debatíamos sobre atualidades, ideologia e política. Nem todos os escritores pensavam da mesma maneira. Não estávamos afinados nas questões atuais como a guerra contra as drogas, educação pública ou a mídia. Então tínhamos que discutir as questões enquanto questões, primeiro. Sem pensar nos personagens, nem na trama.  Muitas pessoas que escreveram para The Wire não vinham tradicionalmente da televisão.
Se tem uma coisa que diferencia The Wire de muitos dos seriados que você vê por aí, é que os escritores não vinham da televisão. Nenhum de nós cresceu querendo ir para Hollywood, ou pensando em escrever um programa de TV ou um filme. Ed [Burns] era tira, e depois professor primário. Tinham jornalistas na equipe de escritores, romancistas e dramaturgos, também. Todo mundo começou em lugares diferentes. Provavelmente isso fez toda a diferença. 
Bom, não éramos céticos a respeito de terem nos dado 10, 12, 13 horas—seja o que for que dure uma temporada da HBO. Tudo aquilo era um presente maravilhoso. A narrativa de O Poderoso Chefão, incluindo o terceiro filme, tem… O quê? Nove horas? É, umas nove horas. 
E olha o tanto de histórias que eles conseguiram contar. Nos davam mais do que isso para cada temporada. Então é melhor você ter algo para contar. Isso parece muito simples, mas na verdade é um tipo de conversa que não acho que aconteça na maioria dos seriados. Sem dúvida não acontece na TV norte-americana. Acho que muita gente acredita que nosso trabalho, enquanto roteiristas de TV, é transformar o programa em uma franquia e conseguir o máximo de audiência, e conservar isso. Então, se eles gostam de x, você dá x para eles. Se eles não gostam de y, não faça tanto y.

Certo. Entre as temporadas de muitos seriados de sucesso, são feitos ajustes claramente baseados em observações da rede de TV sobre o que foi percebido ser mais popular entre os telespectadores. 
Nunca pensamos nessa dinâmica. O que nos perguntávamos era “O que devemos falar em 12 horas de televisão?”. E isso é um impulso jornalístico. Isso vinha dos escritores de The Wire que eram jornalistas e, até certo ponto, dos romancistas que escreviam para o programa que escrevem em estruturas realistas, como ficção pesquisada. Gente como Pelecanos, Price e Lehane. Esses três caras parecem ter a bagagem perfeita para trazer várias coisas valiosas para The Wire.
Não era como se tivéssemos colocando o Isaac Bashevis Singer na equipe. Eu adoro as coisas que ele faz, mas estávamos atrás de romancistas que estivessem fazendo ficção baseada em pesquisa, particularmente no meio ambiente urbano. Eu não confundo The Wire com jornalismo. Tenho muito respeito pelo jornalismo para fazer uma declaração dessas. Mas o estímulo, o estímulo inicial para fazer o programa? Era o mesmo de alguém que senta para escrever um editorial ou um op-ed. Para fazer uma declaração ou soar um alarme. 
É: “Tá dando merda. É aqui que eu acho que tá dando errado. Isso é o que acho que pode funcionar”. Aquele estímulo na sala dos escritores de The Wire era o mesmo que existia no conselho editorial de um bom jornal. “Bom” sendo a palavra em vigor aqui. Eu não quero reduzir The Wire a um grande tema, mas você diria que uma das maiores fundações do programa era a ideia de instituições versus pessoas? 
Sim, isso permeava tudo. Uma das coisas que estávamos dizendo era que a reforma estava se tornando mais e mais problemática, já que os interesses dos endinheirados—capitalismo, que é um uma espécie de último deus do Olimpo—ficaram mais entrincheirados no mundo pós-moderno. A reforma se torna mais e mais problemática porque o status quo é organizado de uma maneira a maximizar e exaltar o lucro—particularmente o lucro a curto prazo—em detrimento de benefícios sociais ou humanos de longo prazo.  Que é meio que o problema clássico que aparece com o capitalismo e a industrialização. 
Mas eu não sou marxista. Sempre acham que sou marxista.  Ah, não, eu não acharia. Penso em você como um ser, além de escritor, mais um crítico e um observador. 
Uma coisa é reconhecer o capitalismo pela ferramenta econômica poderosa que é, e admitir que, para o bem ou para o mal, estamos atados a ele e, graças a Deus, o temos. Não existem muitas outras coisas que podem produzir riqueza em massa com a destreza que o capitalismo consegue. Mas confundi-lo com uma estrutura social é uma corrupção intelectual enorme e é algo que o Ocidente tem aceitado como fato desde 1980—desde Reagan. Seres humanos—na América em particular—valem mais, ou menos. Quando o capitalismo triunfa inequivocamente, o trabalho é diminuído. É um jogo onde todo mundo perde. O povo pagava impostos muito mais altos quando Eisenhower era presidente, uma taxa de impostos muito mais alta para o benefício da sociedade, e todos nós tínhamos uma sensação maior de sermos incluídos. Mas não é sobre isso que você quer falar, eu sei.  Bom, não, eu não quero falar sobre isso. Isso, tecnicamente, não é a respeito de escrever, mas é muito relevante para a sua escrita. 
Acho que o que quero dizer é que o tema geral era: “Nos doamos para esse deus olímpico que é o capitalismo e agora estamos colhendo tempestade. Essa é a América que o capitalismo sem limites construiu. É a América que merecemos porque nós deixamos isso acontecer. Não merecemos nada melhor. The Wire tentava tirar as vendas dos olhos das pessoas e dizer “Isso é o que você construiu. Dá uma olhada”. É um retrato preciso dos problemas inerentes às cidades norte-americanas. Sem dúvida. 
E existem outras partes dessas cidades que são economicamente viáveis? Claro. Você pode subir a pirâmide que é o capitalismo e encontrar os bairros de classe média alta e as escolas particulares. Você consegue saber para onde o dinheiro foi. Mas The Wire divergia por sua escolha de se centralizar na outra América, a que ficou para trás. Esse era o tema principal e isso funcionou por cinco temporadas. Então é a instituição versus o indivíduo. Parece que dissimular esses comentários sobre a sociedade norte-americana dentro de ficções pode ser a única maneira de conseguir com que várias pessoas se comprometam com problemas como pobreza, drogas e o desaparecimento da indústria. Você viu as mensagens de The Wire repercutirem para os espectadores além do nível do entretenimento?
Não. Eu acho que algumas pessoas entenderam e talvez ajam de outra forma da próxima vez que um político de merda apareça dizendo que com um pouco mais de base empresarial, mais tiras e mais advogados, consigamos vencer a guerra contra as drogas. Talvez haja mais divergências em relação aos pontos onde batemos mais forte. Mas não acredito que um programa de televisão, ou mesmo os esforços sistêmicos do jornalismo, consiga mudar essa dinâmica. Nem mesmo um jornalismo muito bom, o que existe cada vez menos.  Por que a reforma parece tão impossível? 
Vivemos em uma oligarquia. O dinheiro é o motor da política norte-americana, e a razão pela qual eles não podem reformar o financiamento, a razão pela qual nós não podemos ter financiamento público das eleições ao invés de doações privadas, a razão da K Street ser a K Street em Washington é para garantir que nenhum sentimento popular sobreviva. Você está presenciando isso agora com a saúde pública, com a marginalização de qualquer esforço para incorporar racionalmente todos os norte-americanos em uma bandeira nacional que diga, “Estamos juntos nessa”.  Mas daí os críticos de um sistema como esse imediatamente gritam “socialismo”. 
E claro que é socialismo. Esses ignorantes fi-lhos duma puta. O que eles acham que é seguro em grupo, a não ser socialismo? Só a ideia de comprar seguro em grupo! Se socialismo é uma mancha na qual não se pode persistir, então, porra, você não deveria estar em uma apólice de seguro em grupo. Você deveria pagar as porras dos médicos porque quando você tem 100 mil pessoas juntas como parte de alguma coisa, de um sindicato a uma ONG, e você diz, “Já que temos esse grupo atuarialmente, mais de nós seremos saudáveis, portanto seremos capazes de levar a diante a ideia de seguro em grupo, e todo mundo terá um plano acessível…” Isso é socialismo. Nada além de socialismo.  É sim, literalmente. 
Então toda a ideia de seguro em grupo, em que obviamente todo mundo acredita, como aquele cara no YouTube “Não deixe o governo tirar meu seguro saúde…”. Você olha para aquilo e pensa que só tem uma coisa que pode tornar as pessoas idiotas, e é o dinheiro. Quando você paga as pessoas para mudarem seus votos, as merdas acabam sendo votadas. Essa é a democracia norte-americana hoje. Você pega o Senado e está olhando para 100 votos, que não representam nada em termos de representação popular. Quando 40% da população controla 60% dos votos na casa mais importante de um Legislativo bicameral, você tem uma oligarquia.  Estou ficando deprimido. 
E tem sido assim por anos, e é por isso que somos capazes de marginalizar porcentagens cada vez maiores da nossa população. Fodam-se suas posições. 5%, 10%, 15%. Quantas pessoas você vai deixar de fora dos condomínios fechados? Quantos guardas você vai contratar?  Os guardas vão ser as únicas pessoas da classe trabalhadora nos condomínios fechados. 
Isso. Você vai contratar pessoas para vigiarem as suas coisas, mas não vai dar plano de saúde a elas.