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Interviews

Filmes cult, brigas de rua e anos perdidos: uma entrevista com Harmony Korine

Conversamos o diretor sobre a sua carreira no cinema, os anos que ele passou “aparando gramados atirando”, e sobre o seu amor pela série ‘Cops’.
Harmony Korine e uma de suas pinturas da série “Fazors”. (Foto pelo autor)

Harmony Korine passou as últimas duas décadas atraindo igualmente elogios e repulsa. Aos 19 anos ele escreveu Kids, o filme dirigido por Larry Clark sobre um grupo de skatistas de Nova York, um deles portador de HIV e "viciado" em transar com virgens.

O filme causou muita polêmica na época — era 1995, as mortes por AIDS estavam no ápice; o filme mostrava garotos fumando maconha e espancando pessoas aleatórias — mas Korine também foi elogiado pelo roteiro. Como Gummo, sua estreia como diretor de 1997, o filme se tornou um clássico cult.

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Me encontrei recentemente com Korine na Gagosian Gallery, em Londres, onde ele está exibindo sua nova série de pinturas entitulada "Fazors". Falamos sobre seus filmes, seus anos perdidos e da influência da série de TV Cops.

VICE: Vamos começar por sua estreia como diretor, Gummo. Imagino que depois de Kids, os estúdios esperavam algo parecido, não um filme de arte não-linear.
Harmony Korine: Sim, acho que não havia um entendimento antes, ou mesmo depois, da parte dos estúdios ou das pessoas que financiaram o filme. Lembro de mandar o roteiro para a Miramax, que tinha produzido Kids, e acho que eles nem passaram da página oito. Eu sabia que a única chance de fazer Gummo era por causa do sucesso de Kids, então quando a New Line Cinema o financiou, foi mais tipo "Aqui, toma essa grana e esperamos que você tenha algum sucesso residual do último filme". Mas eu estava realmente focado em tentar criar algo específico, algo que tinha a ver com uma imagem dentro da minha cabeça.

Li que a série Cops foi uma grande inspiração para você.
Sim. Tinha um seguimento do programa sobre garotos que cheiravam cola, que reeditei para ser só um moleque sentado num toco com tinta dourada saindo da boca. Era só uma repetição dele dizendo a mesma coisa de novo e de novo, e ouvindo os policiais falarem com ele — uma imagem bem bonita com as gotas de tinta dourada saindo da boca dele. Achei que poderia contextualizar isso e colocar [em Gummo], mas quando encontramos a família dele, ele tinha morrido e eles não quiseram ceder os direitos.

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Cops era meio vanguardista nessa época — antes da internet, você não tinha muito desse tipo de coisa na mídia.
Sim, além disso, foi a primeira representação do que vi crescendo no Sul em qualquer tipo de mídia. Não havia uma representação da cultura sulista ou da cultura trash. A coisa mais legal do programa é que eles derrubavam uma porta e você via pôsteres de heavy metal nas paredes, ou algum garoto com uma camiseta do Bone Thugs-n-Harmony ouvindo música country. Foi a primeira vez que vi esse tipo de esquisitice se misturando com cultura pop. Era um programa muito influente porque foi a primeira vez que as pessoas viram isso.

Você escreveu Kids aos 19 anos e estava dirigindo aos 24. Foi assustador fazer filmes quando era tão jovem?
Foi divertido. Foi uma surpresa, talvez, para os meus pais ou as pessoas com quem cresci, porque eu era basicamente um delinquente, mas não fiquei surpreso porque sabia que precisava fazer as coisas naquele ponto. Era excitante porque eu finalmente podia fazer o que eu queria, mas foi uma loucura — comecei a usar narcóticos e era tudo muito selvagem.

No final dos anos 90, você começou a fazer o filme Fight Harm, em que provocava estranhos até que eles te batessem. Por que você queria fazer isso e por que o filme nunca foi completado?
Eu só queria fazer o que achei que seria a maior comédia de todos os tempos. Sempre achei que havia uma essência de violência nas formas mais puras de comédia, como WC Fields escorregando numa casca de banana, e achei que a repetição de ficar entrando em brigas seria engraçado. Eu via Fight Harm como uma das coisas mais populares que eu podia criar, mas logo — depois de oito ou nove brigas — comecei a sentir os efeitos disso e acabei com o projeto.

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Você parou de fazer filme de arte de 1999 até 2007, depois de Julien Donkey-Boy. Onde você esteve durante esses anos?
Desapareci. Eu não queria ter algo a ver com qualquer coisa, de verdade. Eu só queria viver uma vida separada. Obviamente eu era um grande entusiasta de narcóticos, e provavelmente eu estava tentando me livrar disso. Morei em Londres por um tempo… França e América do Sul. Acho que, de certa forma, foram anos perdidos.

Você surtou?
Nem sei se surtei. Sempre quis me entreter, então quando as coisas ficaram muito sérias, saí e fui fazer outra coisa. Eu não ligava para o quê — desde que eu esteja fazendo algo, fico bem.

Como você estava se entretendo durante essa época?
Cortando grama e disparando armas.

Você estava fazendo filmes?
Não. Nesse ponto da minha vida eu estava mais atraído por uma mentalidade criminosa.

Seus amigos estavam preocupados com você ou te incentivando a voltar a fazer coisas?
Acho que não. No final desse período eu estava perdido e cansado. Eu tinha me desligado de praticamente todo mundo que eu conhecia.

(Foto pelo autor)

Você voltou com Mister Lonely em 2007, que é um filme muito triste. Esses anos têm ligação com essa tristeza?
Sim, provavelmente. Eu estava saindo de algo e havia uma tristeza aí.

Aquela música de Iris Dement que você usou na sequência final é de partir o coração.
[Risos] Lembro de assistir a edição final do filme e pensar "Caralho". Eu não estava acreditando que passei tantos anos fazendo algo tão triste.

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Você disse que dificilmente assiste filmes hoje.
Acho que assisto uns dez filmes por ano. Antes eu via dez filmes por semana. É estranho, porque ainda acredito neles, mas minha percepção dos filmes ou do poder das imagens mudou. Não sei nem por que os filmes têm duas horas ainda hoje. Filmes são sobre emoções, poesia e transcendência — algo enigmático. Por que isso tem que ser um longa? Poderia até ser um flash. Minhas experiências com filmes novos não vão tão fundo quanto costumavam, mas quando assisto filmes que significaram muito para mim quando garoto, ainda fico emocionado. Achei Mad Max [Estrada da Fúria] incrível. Na superfície era tão simples — era quase como um videogame. Acho que foi o melhor filme do ano passado.

Estamos numa era onde muito do conteúdo está online. Você ainda se preocupa em lançar seus filmes nos cinemas?
Sempre! Quando faço filmes, estou sempre pensando na experiência do cinema. É por isso que nunca fiz televisão: televisão é um meio do roteirista. Não estou dizendo que não há coisas boas na TV, mas — não importa quão bom seja — é sempre algo que desaponta. O tamanho, estar sentado na sua sala… é algo muito banal, enquanto o cinema é mágico; é enorme, isso te envolve e há algo completamente sensorial quando isso funciona. Televisão é algo mais relaxado; você pode pausar a qualquer momento e comer um hambúrguer.

Trash Humpers, de 2009, você filmou em VHS, usando várias câmeras de vídeo que comprou em lojas de segunda mão.
Perto da minha casa em Nashville [quando criança] tinha uma casa de velhos; eles viviam no porão e só tocavam aquela banda Herman's Hermits. Eu passava por lá à noite e alguns deles estavam cheios de tesão; eles ficavam se esfregando uns nos outros o tempo todo. Era uma coisa altamente sexualizada, e quando era garoto, eu realmente pirava com isso. É uma dessas coisas que ficam na sua cabeça, então Trash Humpers era uma continuação dessa ideia — de tentar fazer alguma coisa que fosse visualmente corroída e horrível, mas que, ao mesmo tempo, tinha um vernáculo muito americano. Eu estava tentando alcançar a maneira como as coisas pareciam quando eu era garoto.

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Você também editou tudo em videocassetes, certo?
Era o meio do verão e meu editor era 90% cego. Ele estava sempre sem camisa e ficava sentado lá riscando as fitas com um lápis, fazendo glitches muito bonitos. Estávamos tentando imaginar: "Como você faz um filme que parece ter sido encontrado nas tripas de um cavalo ou enterrado?" Agora você pode comprar aplicativos de VHS para o seu celular, e imitar o que demorou muito tempo pra gente fazer.

Ashley Benson, James Franco e Vanessa Hudgens em 'Spring Breakers'.

Vemos muitos diretores indie, como Guns Van Sant, irem de pequenos filmes alternativos para grandes longas de estúdio, mas de Trash Humpers para Spring Breakers, de 2013, foi um salto muito radical. Foi difícil tirar o projeto do chão?
A parte fácil foi o elenco — essa parte foi muito fácil. Mas todo filme que fiz foi difícil de fazer. Nunca tive uma experiência fácil.

Por causa dos estúdios envolvidos?
Tem sempre essas pessoas — não importa o que você está fazendo. Nunca é comercial o suficiente. Ninguém está feliz o suficiente. Tem sempre alguém tentando te puxar para outra direção. Sei no meu coração o que é certo, então não duvido de mim mesmo. As pessoas podem ter suas opiniões e eu vou ouvir, mas no final vou saber se estou no caminho certo, então isso não me incomoda. Tudo é perfeito, não importa o que aconteça, mesmo se estou criando desastres — tudo acontece do jeito que tem que ser.

Seu próximo filme, The Trap, é sobre uma gangue que rouba barcos em Miami, e você disse antes que isso vai ser ultraviolento e parecido com uma experiência com drogas.
Estou sempre tentando chegar a um ponto em que a produção dos filmes seja mais facilmente explicável — uma energia em vez de algo baseado na narrativa. Eu sempre estava tentando fazer algo que fosse parecido com uma experiência com drogas, uma experiência alucinógena ou algo mais como uma sensação. Há uma linguagem que venho tentando desenvolver faz um tempo, então The Trap será uma continuação disso. Mas não sei se vou fazer esse filme. Eu devia começar a filmar em maio, mas perdi o interesse… não é que não vou fazer, é que quase acabei outro roteiro. Vou fazer um desse dois este ano, ainda não sei qual.

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Vamos falar sobre a sua arte. Há quanto tempo você pinta?
Sempre pintei. Faço essas pinturas desde que comecei a fazer filmes, mas nos últimos anos isso tomou conta da minha vida.

Fale mais sobre a série Fazors.
Essa série era só uma tentativa de fazer arte sem um ponto fixo. Havia um padrão por onde eu começava, e depois eu era tomado por ele — chamo isso de "phasing". São pinturas sensoriais ou baseadas em energia. Eu queria trabalhar com cores que, tipo, fossem cortadas do céu ou algo assim. E isso se relaciona com outras coisas — looping, phasing, trancing — é há um componente físico; tipo, se você olhar para os quadros tempo suficiente, eles te invadem.

E você escolheu trabalhar com essas telas de tamanho grande.
Geralmente faço coisas menores, mas para as exposições isso é quase do tamanho de uma tela de cinema — sinto que há algo de poderoso nesse tamanho.

Você chega no estúdio com a mente vazia e apenas se deixa levar?
Às vezes. Para essa série, trabalhei nos quadros por um longo tempo — levei mais ou menos um ano para fazer esses. Eu ia pro estúdio todo dia e começava a trabalhar. As coisas figurativas são mais intuitivas; há personagens específicos que venho desenhando desde garoto e que ficavam voltando nesses.

Finalmente, é verdade o que David Letterman diz, que você foi expulso do programa dele em 1999 por revirar a bolsa de Meryl Streep na sala verde quando estava muito louco?
Do jeito como Letterman conta essa história, não acredito que seja verdade. A verdade é a seguinte: comi algumas gramas de cogumelos logo antes do programa, então provavelmente estava alucinando naquele ponto, e se você vê uma arma numa bolsa, o que você faz? Sabe o que estou falando? Você pega a arma e brinca de roleta-russa.

"Fazors", de Harmony Korine, fica em exposição na Gagosian Gallery em Londres até 24 de março de 2016.

@luxthanzero

Tradução: Marina Schnoor

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