Tecnologia

Não precisamos da Uber

A empresa é insegura e não-rentável. Passou da hora de considerarmos alternativas.
Uber office with a super zoom applied.
JOSH EDELSON / Colaborador.

2017 foi o ano mais escandaloso para o Uber até agora. Mas com 2020 chegando, ainda não há um final para a companhia à vista.

Em seu primeiro relatório de segurança, a companhia revelou que foram 3.045 ataques sexuais, nove assassinatos e 58 mortes por acidente envolvendo sua plataforma em 2018. Isso veio depois que uma reportagem do Washington Post revelou a existência de uma equipe interna de investigação no Uber, cujo principal objetivo era limitar a responsabilidade legal da companhia às custas das vítimas de abuso sexual. Além de acusações de uma cultura de misoginia e assédio sexual dentro do Uber, a empresa também está sendo criticada por segregar banheiros para motoristas e “funcionários”. Numa instalação de Los Angeles, funcionários do Uber até xingaram um motorista por tentar usar o banheiro de funcionários (que, diferente do banheiro dos motoristas, tinha água corrente e papel higiênico).

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Em cada caso, o Uber insiste que simplesmente cometeu um erro. O problema é que esses “erros” estão ligados ao modelo de negócio fundamentalmente errado da empresa, que prioriza lucros de monopólio sobre seus passageiros, motoristas e o público no geral. Parece cada vez mais óbvio que a companhia, cuja principal “inovação” é gerenciar por algoritmo uma mão de obra que ganha mal, não deveria nem existir. Mas se o Uber tiver que ser substituído, o que tomaria seu lugar?

Aqui, podemos nos voltar para Barcelona, onde esforços estão sendo feitos para construir uma “cidade inteligente” que não seja só vários aplicativos para substituir hotéis, saúde ou transporte público. Liderando o projeto está Francesca Bria, a chefe do Gabinete de Tecnologia e Inovação Digital da cidade.

“O problema das cidades inteligentes tem sido que quando você começa com tecnologia sem uma ideia forte do porquê você está empregando a tecnologia e para que tipo de necessidade, você só está resolvendo problemas de tecnologia”, Bria disse numa entrevista em 2018.

Em Barcelona, esse problema se manifesta como sensores incorporados no pavimento e iluminação que atualmente não conseguem se comunicar entre si, forçando “serviços urbanos críticos” a serem terceirizados, em vez de permitir que a cidade aborde e resolva seus problemas. Em Toronto, o Sidewalk Labs do Google está lentamente privatizando a infraestrutura municipal em nome da inovação tecnológica, sem nenhuma consideração pelo que acontece quando tudo se torna mediado por um punhado de megacorporações.

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“Pra mim, data é infraestrutura pública e um bem comum, e em cima disso você pode criar um novo Uber que pode inovar segundo as regras locais, criar melhores padrões de vida localmente, e pode envolver companhias locais”, disse Bria. “Mas quando você começa a ter um mercado de poder onde o vencedor leva tudo, aí não sobra nada para nós, para a economia local.”

Para esse fim, Bria se envolveu com a iniciativa DECODE da União Europeia – um grupo de cidades, negócios e acadêmicos europeus – que quer desafiar empresas de tecnologia tentando formar monopólios criando hardware e software abertos, e decentralizar modelos que permitam aos cidadãos controlar seus dados e usá-los como um bem público, em vez de simplesmente mercantilizá-los para ganho privado.

O objetivo é empoderar moradores para criar alternativas reais que satisfaçam as necessidades e demandas da comunidade. Em vez de start-ups tentando encontrar jeitos de penetrar e dominar novos mercados, e se tivéssemos cidades observando os problemas sociais que querem resolver e compartilhando os dados relevantes para criar projetos que abordem questões de transporte público, necessidades de saúde ou preocupações de energia?

Uma alternativa pode parecer com o Arcade City, um serviço de caronas que permite aos motoristas estabelecer seus próprios preços. O modelo do Uber depende de entrar em novos mercados com preços predatórios e incentivos temporários para motoristas, que eventualmente dão lugar a cortes de salário perpétuos e piora das condições de trabalho.

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Mas um serviço nos moldes do Arcade City pode permitir aos motoristas se organizar em coletivos que estabeleçam seus próprios preços, horas e regiões. Serviços de carona poderiam ser ajustados para abordar necessidades específicas de mobilidade para certas regiões (corridas para trabalhadores do turno da noite, para bairros de baixa renda etc.) sem prender os motoristas num ciclo de dívidas perpétuas, competindo com o transporte público e aumentando congestionamentos e a poluição.

As maiores ações do Arcade City até agora foram em mercados onde o Uber saiu para evitar leis básicas de segurança ou foi obrigado a recuar depois de entradas desastrosas, mas a empresa tem seus próprios problemas. O Arcade City já foi investigado em operações policiais e é acusado de operar ilegalmente e usar motoristas sem licença (parece familiar?). Também fica a dúvida do que o Arcade City realmente é – enquanto a empresa existe junto com um aplicativo, há questões sobre por que ele parece operar em grande parte por grupos do Facebook e se sua invocação de “tecnologia blockchain” é uma inovação real ou outra cortina de fumaça (ou golpe).

Mesmo assim, a empresa serve para provar que o Uber não deveria existir e que alternativas são possíveis. Todas essas alternativas exigem experimentação, claro, porque a ascensão e dominância do Uber estão enraizadas em vários outros problemas. Uma alternativa para o Uber significa se perguntar não só se algumas coisas deveriam ser construídas, mas se elas deveriam ser commodities ou serviços privados para começo de conversa.

Quando se trata do Uber e sua dominância no trânsito urbano, o tempo de reformas incrementais já passou. É hora de começarmos a pensar sobre se devemos quebrá-lo e decentralizá-lo ou integrá-lo a um transporte público que realmente funcione.

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