Drogas

O caso bizarro de uma morte supostamente causada por óleo de CBD

Um relatório de caso sugere que óleo de CBD contribuiu para a morte de uma pessoa. Alguns cientistas – e a indústria da maconha – não têm tanta certeza.
A person putting oil on their tongue with a dropper.
Foto de estoque via Getty.

Dois dias depois de experimentar um novo extrato de CBD para tratar sua dor crônica, uma mulher de 56 anos desenvolveu uma erupção cutânea péssima.

O médico dela receitou anti-histamínicos e prednisona, um esteroide comum usado para tratar inflamação. Ela foi pra casa. A erupção piorou. De uma emergência local, ela foi mandada para a unidade de queimados de um hospital. Lá, a erupção saiu do controle.

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Lesões vermelhas raivosas cobriram 30% do corpo dela, incluindo olhos e virilha. A pele começou a descascar nos braços e costas. Médicos administraram mais antibióticos, mais esteroides anti-inflamatórios. Não funcionou. Depois de um mês sofrendo, ela morreu de choque séptico, o resultado final de uma reação alérgica rara e extremamente séria chamada Síndrome Stevens-Johnson (SSJ), segundo um relatório publicado em fevereiro no Case Reports in Ophthalmological Medicine.

Descrita pela Mayo Clinic como “rara e imprevisível”, a Síndrome de Stevens-Johnson geralmente é desencadeada por “medicação, infecção ou ambos”. Segundo o NHS britânico, entre os “medicamentos que costumam causar” o problema está a família “oxicam” de drogas anti-inflamatórias. A mulher tomava meloxicam para artrite, mas não foi isso que a matou, segundo o relatório de caso, escrito por um grupo de oftalmologistas da SUNY Upstate Medical University em Syracusa, Nova York. Ela já tomava meloxicam sem nenhum relato de complicações antes.

O que desencadeou a reação alérgica fatal, eles alegam, foi o produto que ela experimentou. Era uma nova marca de óleo de canabidiol (CBD) que ela estava tomando para dor nas costas; ela já tinha tomado outras marcas de CBD sem problemas. Apesar do novo óleo de CBD que ela usou não ter sido testado para impurezas, algum ingrediente desconhecido no óleo ou alguma reação desencadeada pelo CBD provavelmente causou a reação alérgica e a morte subsequente, escreveram os médicos, num artigo intitulado “Síndrome de Stevens-Johnson induzida por óleo de cannabis comercial”.

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Se for verdade, as notícias de que produtos de cannabis mataram alguém acabaria derrubando a antiga alegação dos defensores da legalização da maconha de que a droga é tão segura que ninguém nunca morreu por causa dela. E esse não foi um caso de cannabis de alto THC supostamente causando psicose – foi uma possível reação a óleo de CBD, um produto de bem-estar cada vez mais popular e amplamente disponível nos EUA.

Médicos e profissionais de saúde especialistas em cannabis consultados pela VICE ficaram divididos sobre o mérito do artigo do jornal médico. Mas mesmo argumentando sobre o valor do estudo de caso e o que (se é que) ele significa, um tema comum emergiu: ainda estamos nos dias do Velho Oeste do CBD, uma droga que ainda não foi estudada o suficiente – com produtos com potência e pureza variáveis disponíveis online em todos os 50 estados americanos, em postos de gasolina e lojas de esquina – quase sem nenhuma regulamentação.

Notícias sobre “a primeira morte causada por CBD” causaram alvoroço no mundo da maconha e nas redes sociais. O Project CBD, uma organização de defesa do canabidiol, publicou uma refutação que criticava “céticos do CBD e confabuladores de click-bait” se apressando para culpar produtos de cannabis, enquanto levantava a possibilidade do óleo ter reagido com a medicação da mulher para produzir o efeito fatal.

Peter Grinspoon é um médico da equipe do Massachusetts General Hospital em Boston e professor da Escola de Medicina de Harvard que escreve sobre cannabis e outras drogas no site da Harvard (o pai dele é Lester Grinspoon, o psiquiatra de Harvard que escreveu Marijuana Reconsidered, uma das bíblias da reforma de políticas de cannabis, nos anos 1960). Grinspoon estava cético que a morte teve muito a ver com CBD.

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“É muito improvável que esse seja o primeiro caso em 5 mil anos de canabinoides causando Síndrome de Stevens-Johnson (SSJ), mas é possível”, ele disse.

Grinspoon concedeu que CBD poderia ter inibido enzimas do fígado metabolizando o meloxicam, aumentando sua potência e diminuindo as defesas do corpo, assim desencadeando a reação alérgica. É possível que CBD, meloxicam e outros fármacos que a mulher tomava possam ter criado a tempestade perfeita.

Mas como os oftalmologistas da SUNY não analisaram o óleo de CBD – só ofereceram adulterantes hipotéticos como uma causa, aparentemente sem saber se eles estavam no produto de CBD ou não – “eles realmente não sabem o que essa paciente consumiu, então me parece uma imprudência intelectual colocar a culpa da morte no CBD”, disse Grinspoon.

“Pesquisadores estão sempre ansioso para serem os primeiros a ligar uma morte a canabinoides, já que isso te coloca nas notícias”, ele acrescentou.

Alguns especialistas desconsideraram ainda mais o estudo. “Acho que esse artigo é uma merda”, escreveu Jeffrey Hergenrather, médico e ex-presidente da Society of Cannabis Clinicians, por e-mail. “Em relação a CBD e a associação com SSJ, nunca ouvi nada assim.”

O relatório de caso não aborda qual o possível contaminante no óleo de CBD poderia ser e o que ele poderia ter feito. O artigo também não menciona a quantidade e frequência da dose de CBD usada ou qualquer outro fator genético da paciente que poderia colocá-la num grupo de risco para SSJ, ele disse. Em vez disso, os autores apontaram direto para o CBD – e isso, ele disse, é um sinal clássico de preconceito com cannabis. “Como de costume, é fácil publicar um relatório de caso implicando danos a um produto de cannabis”, ele disse. “Cannabis é um alvo fácil.”

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Outros pesquisadores também apontaram vácuos no conhecimento.

“Não lembro de ver nenhum outro relatório de caso associado com canabidiol, mas dito isso, não sabemos o que mais tinha no produto de canabidiol que pode ser associado com esse tipo de transtorno”, disse Ziva Cooper, farmacologista e diretora da Iniciativa de Pesquisa de Cannabis da Universidade da Califórnia, Los Angeles.

Efeitos colaterais de drogas como o meloxicam são conhecidos porque “milhares de pessoas” que usam a droga “foram rastreadas. E esse não é o caso com o canabidiol”, ela disse.

O relatório de caso aponta que “o novo extrato de CBD em spray lipossômico” veio da Natural Native, uma empresa de CBD de Oklahoma. Novembro passado, a empresa recebeu uma carta de aviso do FDA. No Facebook e em seu site, a Natural Native desobedeceu várias regras do FDA por marketing com água de CBD, indicar CBD para crianças e fazer alegações científicas que sugeriam que CBD é uma droga que pode ajudar em condições indo de acne, dor crônica até câncer. (CBD é uma “droga” no sentido taxonômico, mas no sentido legal, uma droga precisa da aprovação do FDA para ser vendida como remédio.)

Nisso, a empresa dificilmente é a única. Vender alegações sem fundamento sobre os benefícios médicos do CBD, vender produtos de CBD como remédio ou produtos alimentares é uma violação das regras do FDA, mas também acontece com tanta frequência que quase já se tornou um padrão da indústria de cannabis.

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Em entrevistas com a VICE, Danny Bannister, um dos proprietários da Natural Native, não negou cruzar os limites com o FDA. Mesmo assim, ele disse, o relatório de caso poderia prejudicar muito o negócio dele. Ele vem tentando, sem sucesso, que o nome do artigo seja mudado.

Bannister ouviu falar do relatório de caso no final de fevereiro, quando um de seus concorrentes mandou a matéria para um cliente dele. O título, apontou Bannister, é “Síndrome de Stevens-Johnson induzido por óleo de cannabis comercial”, o que parece conclusivo. Só no final, na seção de discussão do artigo, os autores admitem que ainda “não está claro se produtos derivados de maconha/CBD podem induzir” SSJ, e que o assunto precisa de mais estudos além de conscientização geral da área médica.

“Eles deveriam ter tirado a suposição assertiva do título”, disse Bannister. “Talvez até transformá-la numa pergunta. Seria simples assim.”

Bannister disse que não conseguiu uma resposta dos médicos do SUNY que escreveram os estudos de caso ou dos editores do Case Reports in Ophthalmological Medicine. (Os autores também não responderam nossos vários pedidos de comentário.)

Subjacentes a tudo isso há muita incerteza, e a verdade de que CBD é amplamente disponível, pouco entendido e pouco regulado. Sob o ex-comissário do FDA Scott Gottlieb, a administração Trump parecia interessada em abordar melhor a regulamentação de CBD. Mas Gottlieb renunciou ano passado, e com o COVID-19 prendendo a atenção da agência e do público, parece que a natureza da indústria não vai mudar tão cedo.

É verdade que uma mulher morreu depois de tomar óleo de CBD, mas isso não significa que foi o CBD que a matou. CBD é seguro para a maioria das pessoas, o que não significa que é seguro pra todo mundo. Simplesmente não sabemos o suficiente sobre como CBD interage com outras drogas.

“Drogas matam o tempo todo. O perfil de segurança do CBD é muito bom, mas essa ainda é uma droga”, disse Michael Backes, consultor de cannabis no sul da Califórnia e autor de Cannabis Pharmacy, um dos principais compêndios sobre os efeitos médicos e científicos da planta. “Pode ter uma pessoa por aí que pode tomar uma preparação em particular de CBD e acabar morrendo. Isso poderia acontecer.”

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