Como é ser infectado pela malária mais de 50 vezes
Dr. John Lusingu dedicou sua vida ao desenvolvimento de uma vacina contra malária, doença que contraiu mais de 50 vezes. Crédito: Kaleigh Rogers/Motherboard

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Como é ser infectado pela malária mais de 50 vezes

Conhecemos de perto John Lusingu, o médico tanzaniano que dedica sua carreira à busca pela vacina contra malária – doença que assombra o país e que já contraiu mais de dez vezes ao ano.

O tanzaniano Dr. John Lusingu, de 50 anos, pegou malária pela primeira vez aos 16 anos. Como seu sistema imunológico estava despreparado para combater o parasita, a doença veio com tudo, causando febres, calafrios, dor nas juntas, diarréia e visão embaçada. Teve que ser hospitalizado.

Depois de receber o cuidado necessário, Lusingu se recuperou, mas em pouco tempo, para seu azar, foi infectado novamente. E mais uma vez. E de novo. E de novo. Nos 12 anos seguintes, Lusingu já foi infectado pela malária mais de 50 vezes – segundo ele, chegou a ter dez infecções por ano.

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Lusingu não é uma anomalia ou algo do tipo. Na Tanzânia, onde ele vive, isso é bem comum.

Na verdade, a maior parte dos tanzanianos têm sua primeira crise de malária bem antes dos 16 anos. A doença aflige todo o país, matando até 80.000 pessoas todos os anos, entre elas milhares de crianças abaixo dos cinco anos de idade, o maior grupo de risco. No entanto, Lusingu cresceu em Kilomeni, uma cidadezinha escondida nas Montanhas Pare, a cerca de 1.600 metros acima do mar. Os mosquitos que carregam o parasita que causa a malária não sobrevivem em altas altitudes, onde as temperaturas são mais frias.

"Lá, quando alguém ficava com febre, era por causa da pneumonia, ou talvez de uma gripe, mas nunca malária", disse Lusingu enquanto atravessávamos o interior tanzaniano, alguns quilômetros ao sul da cordilheira onde ele nasceu.

Quando tinha 16 anos, Lusingu se mudou para uma região mais baixa — Moshi, uma cidade localizada no sopé do Monte Kilimanjaro — para começar o ensino médio. Embora ele tivesse um mosquiteiro para protegê-lo dos mosquitos famintos, ele não simpatizava com o objeto; a cor branca lhe remetia aos panos fúnebres usados para cobrir cadáveres em sua cidade natal.

"Por que eu dormiria embaixo disso?", pensava ele na época.

Lusingu fala com uma participante do teste da vacina do lado de fora de sua casa. Crédito: Kaleigh Rogers/Motherboard

Após seu primeiro caso de malária, Lusingu superou rapidamente suas superstições e começou a dormir embaixo do mosquiteiro; essa precaução, porém, não serviu para muita coisa. Aos poucos, os episódios anuais de malária começaram a ficar cada vez mais espaçados e, no seu penúltimo ano da faculdade de medicina, aos 28 anos, Lusingu teve seu último caso de malária. Após dezenas de infecções, seu corpo havia finalmente produzido imunidade o suficiente para ter uma reação assintomática ao parasita. Ele nunca mais teve sintomas da malária desde aquele dia, 23 anos atrás.

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Essa imunidade adquirida — conquistada arduamente mas comum entre adultos saudáveis em países afligidos pela malária — é o que dá aos pesquisadores esperança de uma possível vacina contra a malária.

Se a exposição ao parasita pode tornar alguém imune, deve haver alguma maneira de provocar esse efeito artificialmente. Lusingu está muito familiarizado com essa esperança. Ele não apenas se tornou imune à doença após inúmeras crises de malária (Lusingu não soube dizer quantas vezes ficou doente), mas também é um dos pesquisadores envolvidos na criação de uma possível vacina contra a malária: a RTS,S.

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Lusingu nasceu no início da temporada de chuvas de 1965 em uma família que descreve como de "camponeses pobres". No mesmo ano, as primeiras sementes da vacina que ele viria ajudar a desenvolver estavam começando a germinar. Como não existem vacinas para parasitas, os cientistas tentaram criar uma vacina para malária utilizando o que já sabiam: métodos que funcionaram com bactérias e vírus.

Primeiro, os pesquisadores tentaram matar o parasita em seu primeiro estágio de vida (fase na qual ele é chamado de esporozoíto) e injetá-lo no corpo humano a fim de testar se isso era ao suficiente para provocar uma resposta do sistema imunológico. Essa estratégia, chamada vacina inativada, é eficaz para alguns microorganismos (temos vacinas como estas para a poliomelite e para coqueluche, por exemplo), mas esse não foi o caso da malária. Houve certa resposta imune nos testes feitos em pássaros, mas não em roedores ou macacos.

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"Não existe uma só ferramenta capaz de resolver a epidemia de malária. É preciso unir várias estratégias"

Em seguida, os pesquisadores tentaram inocular uma versão viva — mas fraca — dos esporozoítos, o que gerou resultados mais promissores. Os cientistas descobriram que uma proteína produzida pelos esporozoítos, chamada proteína do circum-esporozoíto (CSP, na sigla em inglês) era um antígeno — uma substância que causa respostas imunes. Depois disso, eles sequenciaram essa proteína e começaram a pensar em uma forma de transformá-la em vacina. Embora outras possíveis vacinas contra a malária tenham surgido desde então, essa abordagem, que foi a primeira delas, culminou no desenvolvimento da RTS,S.

Em 1994, quando Lusingu se formou no curso de medicina e suas crises de malária haviam acabado, as primeiras versões da RTS,S estavam sendo testadas em humanos. O recém-formado médico, porém, não estava interessado em trabalhar na criação de uma vacina contra a malária.

"Eu queria virar cirurgião", conta Lusingu. "Mas descobri que não era uma boa ideia porque nem sempre os equipamentos estariam disponíveis. Então decidi fazer algo que me inspirasse, aí comecei a trabalhar com pacientes com HIV/AIDS."

Após aceitar um emprego no Instituto de Pesquisa Médica Nacional da Tanzânia em 2000, Lusingu foi convidado a trabalhar na área de pesquisa sobre malária. Por dois anos, ele estudou a imunologia e a epidemiologia da doença. Durante essa época, casou e teve dois filhos, uma menina e um menino. Em 2002, Lusingu se mudou para a Dinamarca para fazer um doutorado em Ciência Médica na Universidade de Copenhague, acrescentando o dinamarquês à sua lista de línguas faladas: seu dialeto local, suaíli, francês e inglês. Sua família continuou na Tanzânia, mas, anos depois, conseguiu levá-los para a Dinamarca.

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"Meus filhos estavam sempre com malária, então perguntei se eles poderiam vir morar comigo", conta Lusingu.

Após terminar seu doutorado, Lusingu voltou para o Instituto de Pesquisa e começou a trabalhar nos testes da vacina RTS,S, que seria testada em crianças de todo o continente. Os primeiros resultados dos testes mostraram que a vacina não causou efeitos colaterais em adultos ou crianças, além de dar sinais esperançosos de eficácia. Em 2001, a empresa farmacêutica GlaxoSmithKline se uniu à PATH, uma ONG da área de saúde, para desenvolver uma vacina oficial (mais tarde, a dupla ganhou o apoio da Fundação Bill e Melinda Gates). Em 2007, a segunda fase dos testes da vacina teve resultados promissores: o número de episódios de malária sofridos pelas crianças vacinadas caiu em 66% quando comparado ao grupo de controle (que não recebeu a vacina). O estudo, entretanto, analisou apenas 214 crianças.

Quando Lusingu entrou no projeto, era hora de testar a vacina em um grupo muito maior.

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Lusingu me disse que na língua Kipare, falada em Kilomeni, sua cidade natal, a palavra para mosquito é ngilingili. Em seguida ele sorriu e se inclinou na minha direção, repetindo a palavra rapidamente até ela se tornar um longo zumbido — ngilingilingilingili — que emulava o zumbido familiar e incômodo do mosquito.

Nós estávamos a caminho de uma vila próxima a Korogwe, localizada na região Tanga, ao nordeste do país, para visitar uma família que havia participado da terceira fase de testes do RTS,S.

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Durante a viagem, Lusingu apontou para as grandes plantações de sisal que um dia trouxeram prosperidade para a região, antes que a planta (utilizada na fabricação de tecidos) fosse trocada por materiais sintéticos mais baratos. Falamos sobre os investimentos do governo tanzaniano em infraestrutura, como as estradas asfaltadas em que viajávamos, que ligam os quatro cantos do país. Em certo momento, paramos em uma barraquinha de frutas e Lusingu insistiu que eu provasse uma laranja fresca e pegajosa.

Embora não tão afligida quanto outras áreas da Tanzânia, essa parte do país ainda apresenta centenas de milhares de casos de malária por ano. Quando cheguei lá, era o final da época de chuvas, e o céu ainda derramou algumas pancadas intensas no meio do calor da tarde, enchendo poças e alagando calhas. A mistura de calor e chuva é ideal para os mosquitos, que se reproduzem em até um centímetro e meio de água parada e vivem em temperaturas entre 15 e 32 graus Celsius.

Quando chegamos na vila de Chang'ombe, conheci Bahati Bakari, de 44 anos, e sua filha Jamila, de seis. Jamila foi a única dos quatro filhos de Bakari a participar do teste; ela era a única dentro da faixa de idade ideal (os participantes foram crianças entre seis semanas e 17 meses de idade). Durante os testes, Bakari disse que Jamila ficou doente algumas vezes, mas nunca por causa da malária — o que ela tinha era gripe. Seus outros filhos não tiveram tanta sorte.

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"As irmãs e o irmão dela tiveram febre várias vezes — uma vez por mês na estação chuvosa — e em quase todas as vezes os testes deram positivo para malária", me disse Bakari. "Fico assustada quando eles ficam doentes porque a febre é muito alta".

Bahati Bakari e sua filha, Jamila. Crédito: Kaleigh Rogers/Motherboard

Mesmo entre aqueles imunizados, Jamila foi particularmente sortuda. A terceira fase dos testes começou em 2009, com mais de 15.000 pacientes registrados em sete países da África subsariana. Os testes foram feitos em crianças dentro de duas faixas de idade (6-12 semanas e 5-17 meses) divididas aleatoriamente entre grupo de controle e de tratamento. As crianças foram monitoradas ao longo dos quatro anos seguintes. No início, a vacina reduziu o número médio de surtos de malária anuais das crianças pela metade. Mas sua eficácia diminuiu ao longo do tempo, e ao final desses quatro anos, a vacina teve apenas 39% de eficácia no grupo mais velho e 27% no grupo mais jovem.

Isso pode não parecer muito encorajador, mas é importante lembrar que cada vez que uma criança pega malária, ela corre o risco de desenvolver um caso grave da doença, o que pode resultar em morte. Se pudéssemos diminuir o número de infecções anuais de cada criança em apenas um terço, centenas de milhares de vidas seriam salvas.

"Um dos maiores desafios de trabalhar em comunidades atacadas pela malária é uma resistência crescente a drogas e inseticidas, o que significa que é preciso desenvolver mais ferramentas para ajudar no combate à doença", disse Dr. Chris Odero, um especialista em malária que trabalha no projeto da vacina RTS,S. "Essa é a primeira geração dessa vacina. Não há uma cura mágica para a malária. Não existe uma só ferramenta capaz de resolver essa epidemia. É preciso unir várias estratégias".

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Os resultados da RTS,S chamaram a atenção da Organização Mundial da Saúde. Em outubro, a organização internacional recomendou que a vacina fosse testada em larga escala, num grupo entre 100.000 e 200.000 pessoas. No momento, a OMS está avaliando os pedidos de países que se candidataram a participar desses testes. A Tanzânia está entre os candidatos.

***

Ao contrário de muitas doenças, a malária não afeta apenas as comunidades mais pobres. Até mesmo Jakaya Kikwete, ex-presidente da Tanzânia que focou muito de seu mandato na luta contra a doença, pegou malária há alguns meses, numa viagem ao interior no qual ele não tinha um mosquiteiro. Além disso, ele já viu as consequências da malária de perto.

"Eu perdi meu irmão mais novo, nascido logo depois de mim, por causa da malária. Ele tinha três anos de idade. Eu tinha cinco", disse Kikwete durante um jantar oficial em maio. "Para mim, essa é uma questão muito pessoal. Já vi muitas pessoas morrerem de malária."

Nas partes do mundo onde ainda existe, a malária deixa cicatrizes em todos, o que explica porque aqueles que lutam contra a doença dedicaram décadas a essa luta. Hoje, os filhos de Lusingu são adolescentes que sonham em estudar nos EUA, no Canadá ou na Europa. O médico disse que já sonhou em continuar sua pesquisa fora da África, mas que acabou voltando para sua terra natal. Hoje ele monitora as crianças que participaram da terceira fase dos testes da vacina e espera o começo do projeto piloto, uma das últimas etapas antes que a RTS,S possa ser distribuída em toda a África.

Antes de nos desperdimos, Lusingu me contou uma última história pessoal. Numa certa noite, quando estava no ensino fundamental, seu irmão mais velho, Joseph, desmaiou em uma estrada próxima à sua casa. Joseph, oito anos mais velho, já cursava o ensino médio em uma outra cidade, e estava voltando para casa quando desmaiou subitamente. Quando Joseph acordou, ele estava delirando.

"Ele começou a gritar e gritar", lembra Lusingu, balançado a cabeça. "Trouxeram ele para casa. Minha mãe estava chorando. Meu pai correu para encontrar um médico rural. O médico chegou e disse 'isso é malária'".

Era a primeira vez que Lusingu via a doença de perto. Joseph foi medicado e acabou se recuperando. Hoje ele também é médico. Mas a quinina — o remédio utilizado para tratar a malária naquela época — resultou em um zumbido intermitente em seu ouvido.

"Quando ele está em um lugar muito silencioso, ele ainda ouve um zumbido", disse Lusingu.

As despesas dessa viagem foram custeadas por uma bolsa fornecida pelo Centro Internacional para Jornalistas e pela ONG Malaria No More.

Tradução: Ananda Pieratti