​O Estado Americano Onde Todos Ganham Dinheiro de Graça
Crédito: Trans-Alaska em 1997.

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​O Estado Americano Onde Todos Ganham Dinheiro de Graça

Desde 1982, o Alasca distribui a grana da exploração de recursos naturais entre seus habitantes. Para muitos economistas, eis o futuro.

Todos os anos, o estado americano do Alasca dá entre centenas e milhares de dólares para cada um de seus habitantes sem exigir nada em troca. Os únicos requisitos para receber o dinheiro são que a) a pessoa more no Alasca há mais de um ano e b) que esteja viva.

Para os cidadãos alasquenses, a distribuição de dividendos do Fundo Permanente é uma política pública bastante querida. Quem está de fora, claro, acha uma excentricidade. O pagamento anual domina as manchetes dos jornais americanos por alguns dias do ano — "o governo do Alasca está distribuindo dinheiro!", dizem, em tom de espanto — e é esquecido pouquíssimo tempo depois.

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Nos últimos anos, porém, o conceito por trás da medida tem chamado atenção por mais tempo. O interesse pela ideia de uma renda básica se alastra pelo mundo. À medida que estudos pessimistas prevêem ondas de desemprego, aumento de desigualdade e uma loucura na economia mundial por causa da automatização, a ideia de uma renda regular bancada pelo estado — um salário mínimo destinado a cada cidadão, independentemente de idade, situação profissional ou posição social — soa cada vez mais atraente.

"Atualmente, o dividendo do Alaska é a coisa mais próxima de uma renda básica universal que existe em todo o mundo", me disse o psicólogo, escritor e ativista Scott Santens, um dos maiores defensores da renda básica do mundo. Segundo ele, uma renda básica e universal poderia ajudar os cidadãos a, entre outras coisas, manter uma sociedade estável diante da ameaça de um futuro cheio de crises.

"Quem mais ganha com a medida, como é de se esperar, é a população pobre. Em fevereiro de 2015, a renda per capita do Alasca era a maior do país"

O Fundo Permanente do Alasca foi estabelecido em 1976 em meio ao boom do petróleo; o oleoduto Trans-Alasca estava sendo construído e, em poucos anos, o estado havia ganhado US$ 900 milhões com a venda de permissões de perfuração em Prudhoe Bay, a maior área petrolífera da América do Norte. Dentro de alguns anos, todo esse dinheiro desapareceria. Os moradores do estado logo compreenderam que suas enormes reservas de petróleo eram limitadas. Com uma prudência e cuidado raramente vistos na política atual, eles decidiram inserir uma emenda na constituição do estado que garantiria a criação de um fundo que guardaria uma parcela dessa riqueza para as gerações futuras.

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"Todos sabiam que os royalties que o estado estava embolsando não durariam para sempre", diz Valerie Mertz, diretora do Fundo Permanente do Alasca. "A ideia era usar esse recurso não-renovável como uma fonte de renda sustentável para o estado. O fundo era um jeito de guardar esse dinheiro para uma possível emergência, para uma época de vacas magras."

A emenda estipula que "pelo menos 25% de todo arrendamento mineral, royalties, vendas de royalties, pagamentos federais e bônus recebidos pelo estado devem ir para um fundo permanente, sendo que o maior desses fundos deve ser utilizado apenas para investimentos que produzem renda". O Fundo Permanente do Alasca, uma empresa governamental, foi criado para gerir e investir esse dinheiro.

Na época, o governador do estado era Jay Hammond, um ex-veterano novaiorquino corpulento e de modos simples. Reza a lenda que, durante seu mandato como prefeito de Bristol Bay, Hammond percebeu a injustiça que era uma empresa estrangeira invadir um país e lucrar a partir de recursos naturais que pertenciam a todos. Ele estabeleceu então um imposto de 3% sobre toda a pesca feita na área e distribuía entre a população.

Depois de eleito como governador, "Mr. Hammond, um Republicano, convenceu os eleitores a aprovarem a criação de um fundo permanente que guardaria os royalties ligados à exploração do petróleo no estado", segundo o The New York Times. (Seu plano original, que chegou a ser aprovado antes de ser considerado inconstitucional, era conhecido como "Alasca, S.A", e previa a entrega anual de ações do fundo para todos os alasquenses.) Em 1980, Hammond aprovou mais uma emenda e criou o dividendo do Fundo Permanente (PDF, na sigla original), que distribuiria uma porcentagem do fundo para toda a população. O primeiro pagamento, de US$1.000, foi entregue a todos os cidadão do estado em 1982.

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"Desde 1982, o petróleo não é a coisa mais importante que está acontecendo no Alasca", diz Santens. "A coisa mais importante é que, em vez de entregar esses recursos gratuitamente para as grandes empresas, o estado está cobrando uma espécie de aluguel, que está sendo distribuído de modo gratuito entre a população."

O Fundo continuou a crescer, sustentado por um fluxo contínuo de rendimentos petrolíferos e investimentos sólidos. A exploração de recursos minerais ainda é a base da economia do Alasca, mas o Fundo aloca esse dinheiro para outras ações, o que torna o estado menos dependente do petróleo.

"Nosso portfólio atual inclui títulos globais, investimentos em propriedades e ações, títulos privados, infraestrutura, fundos multi-ativos e fundos de cobertura", explica Laura Achee, porta-voz do Fundo. No meio desse bolo estão investimentos em energia eólica dinamarquesa e ações do New York Times e de bancos brasileiros. Em 1998, os ganhos do Fundo ultrapassaram os rendimentos petrolíferos do estado.

Em 2014, o rendimento líquido do fundo foi de US$6,8 bilhões. Apesar da queda no lucro petrolífico ocorrida naquele ano, o estado entregou US$1.884 para cada um dos seu 640.000 habitantes. Depois de calcular os rendimentos do ano fiscal, o Fundo repassa esses rendimentos para o estado, que então determina o valor do dividendo. O cálculo que determina o valor entregue anualmente para a população é consagrado na lei estadual e baseado nos rendimentos médios do Fundo em um período de cinco anos — a fórmula é essa aqui— mas geralmente, quanto maior o rendimento do Fundo e a produção petrolífera, maior o valor distribuído. O processo é um pouco confuso e é comum, mesmo entre os habitantes da região, confundir o Fundo Permanente (a empresa que controla todo o dinheiro do petróleo) e o Dividendo do Fundo Permanente (o pagamento anual efetuado pelo estado).

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Esse ano, espera-se que o pagamento para cada homem, mulher e criança (sim, as crianças também ganham o benefício, que é entregue para seus guardiões legais) ultrapasse a marca dos US$2,000. Em outras palavras, o Fundo é riquíssimo. Mertz afirma que o próprio pagamento é a razão do sucesso da empresa, que hoje emprega 42 funcionários. "O sucesso tem sido grande", ela me diz. "A distribuição de dinheiro mantêm as pessoas interessadas no Fundo e isso nos motiva a trabalhar cada vez melhor." Quando criado, o Fundo valia pouco mais de um bilhão de dólares.

"Ao final do ano fiscal, no dia 30 de junho, o Fundo valia US$51.2 bilhões", diz Achee.

Na época de sua morte, em 2005, Hammond era conhecido como o "Pai da Renda Básica do Alasca". Vários obituários citaram Vernon Smith, o economista ganhador do prêmio Nobel, que definiu o programa fundado por Hammond como "um modelo que todos os governos deveriam copiar".

Tudo indica que Smith estava certo.

Em um estudo de 2012, "O Dividendo do Fundo Permanente do Alasca: Um Estudo de Caso sobre a Implementação da Garantia de Renda Básica", Scott Goldsmith, um professor de economia da Universidade do Alasca, estudou pela primeira vez o impacto social da política de distribuição monetária do estado.

Ele observa que o fundo contribuiu para a notável igualdade de renda do estado. Seu estudo aponta que, em 38 estados, a renda dos 20% mais ricos cresceu mais rápido do que a dos 20% mais pobres entre o início dos anos 80 e o começo dos anos 2000. Em 11 estados, as taxas de crescimento se mantiveram iguais. "O Alasca é o único estado em que a renda dos 20% mais pobres cresceu em um ritmo mais acelerado (25%) do que a renda dos 20% mais ricos (10%)", explica o artigo.

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É importante enfatizar que o Alasca conseguiu essa façanha em uma época marcada pela acumulação de riquezas. É claro que o PFD é apenas um dos fatores envolvidos, e Goldsmith acrescenta que, mesmo desconsiderando essa medida, a distribuição de renda no Alasca continua bem equilibrada. Mas outros economistas e representantes do governo acreditam que o fundo é responsável por manter milhares de cidadão acima da linha da pobreza.

"Esse tem sido um fator crucial para o equilíbrio da distribuição da renda no Alasca desde o início dos anos 80", ele escreve. "O dividendo é especialmente importante para as áreas rurais do estado, onde a economia é composta por uma mistura de benefícios do governo e atividades de subsistência e onde os empregos são escassos". Quem mais ganha com isso, como é de se esperar, é a população pobre. Em fevereiro de 2015, a renda per capita do Alasca era a maior do país, embora os salários variem vastamente de condado para condado: 9.3% dos alasquenses vivem abaixo da linha de pobreza e 4.3% vivem em condições de pobreza extrema.

"O PFD controla a desigualdade, criando um piso no nível mais baixo da distribuição de renda, me disse Goldsmith. Atualmente, a situação do Alasca ainda é muito boa; o estado tem a segunda menor desigualdade de renda do país, atrás apenas apenas de Utah — e é um dos estados com a maior renda per capita.

Enquanto isso, o PFD pode ter gerado um pequeno "efeito de atração", aponta Goldsmith em seu estudo, atraindo e mantendo os moradores no estado. A medida também foi uma injeção de energia na economia local, visto que os habitantes muitas vezes gastam esse dinheiro com bens duráveis como eletrodomésticos e eletrônicos; no entanto, nem todo esse dinheiro está sendo gasto. Muitos alasquenses afirmam economizar pelo menos metade desse valor.

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"É correto dizer que uma boa porcentagem de alasquenses conta com esse dinheiro em seus orçamentos", diz Mertz.

E o Que é Essa Tal de Renda Básica?

O mundo ainda não possui nenhum exemplo de aplicação da política de renda básica a longo prazo — o relativamente curto programa "mincome" de Dauphin, em Manitoba, no Canadá, é o caso mais estudado, e o programa de subvenção pecuniária da Namíbia, no continente africano, é um exemplo famoso, mas que durou pouco — o que obriga os acadêmicos, ativistas e economistas a estudar o programa de "renda básica parcial" do Alasca. Embora o valor oferecido não seja nem de longe suficiente para sustentar alguém (nos EUA, o limiar da pobreza é de US$11.700 anuais; já no Alasca, esse valor é de US$14.700), o dividendo do estado se tornou um exemplo utilizado por ativistas para defender a criação de uma política radical de distribuição de renda em larga escala.

Goldsmith enfatiza que o PFD "se encaixa muito bem na definição de renda básica". O benefício é, segundo ele, "essencialmente universal, individual, não-condicional, uniforme, regular e oferecido em dinheiro vivo". É essa qualidade universal — todos recebem uma determinada quantia todos os anos — que torna o programa tão atraente para os partidários da renda básica. Seu único defeito é que "a quantia distribuída varia de ano para ano e é pequena demais para tirar qualquer um da pobreza"

Mesmo que essa iniciativa não seja exatamente uma renda básica, é o mais próximo disso que temos. E ao levar em consideração a quantidade de países que estão discutindo criar suas próprias versões da renda básica — um plebiscito sobre uma renda incondicional será votado na Suíça em 2016, e a Holanda se mantém dividida quanto a sua própria proposta — qualquer exemplo prático, por menor que seja, deve ser estudado.

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A experiência do Alasca resultou na diminuição da desigualdade e no aumento das taxas de aprovação — o Fundo é uma das políticas mais populares do Alasca, o que não é nada surpreendente — e incontáveis benefícios sociais. Entretanto, Goldsmith também encontrou alguns problemas — em seu trabalho, ele se pergunta se o benefício está encorajando a população mais pobre a permanecer em condições desfavoráveis — e sublinha que mais estudos são necessários para chegar a uma conclusão definitiva. Mesmo assim, o Alasca tem uma das melhores taxas de bem-estar dos Estados Unidos. O consenso é que dinheiro de graça nunca é uma coisa ruim.

Os resultados da medida são tão impressionantes que os economistas começaram a considerar a ideia de exportar o modelo para outros estados. Um artigo de 2012 escrito por Gary Flomenhoft, um professor assistente da Universidade de Vermont, afirma que adaptar o modelo do Alasca para outras indústrias de extração poderia gerar algo próximo de uma verdadeira renda básica. Flomenhoft descobriu que, se o estado taxasse todas as empresas de extração atuantes na área e investisse todo esse dinheiro, os cidadãos poderiam receber um dividendo anual de até US$10.000.

"Na minha opinião, exportar o modelo utilizado no Alasca para outros estados é uma ideia maravilhosa", diz Scott Santes, defensor da renda básica. "Para começar, já sabemos que isso funciona, e a medida é popular tanto entre conservadores quanto entre liberais. É preciso aumentar a renda de todos aqueles que não fazem parte dos 20% mais ricos."

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"Vejo isso como uma estratégia que irá aumentar o apoio à implementação da renda básica federal", ele continua. "Isso é possível, da mesma forma que hoje vários estados estão aceitando o casamento gay e legalizando a maconha. Em cada um desses estados, a população poderia receber uma renda básica parcial baseada no modelo alasquense e, à medida em que a pobreza e a desigualdade caírem, como ocorreu no Alasca, mais pessoas reconhecerão os efeitos positivos dessa medida."

Um dos motivos pelos quais a iniciativa é tão popular entre os conservadores — além do fato de que todo mundo gosta de receber dinheiro — é que os alasquenses não veem esse benefício como uma renda básica propriamente dita.

"Embora o PFD represente a primeira grande instituição de renda básica do país, ela não é vista desse modo pela população e não foi criada com esse propósito", disse Scott Goldsmith. "Na verdade, ele é visto como um sistema de distribuição de parte do lucro advindo de um recurso natural— um bem público que pertence aos cidadãos do estado. E embora seja provável que o dividendo desse ano chegue a US$2.000, esse valor não é suficiente para classificá-lo como uma renda básica."

É provável que o próprio idealizador do Fundo concordasse com Goldsmith. Em 1980, o Governador Hammond insistiu em uma entrevista para o New York Times que "o dividendo entregue a todos os alasquenses desde 1976 tinha uma 'origem claramente conservadora'. Ele também afirmou ter controlado os gastos do governo e encorajou os políticos a economizar para que mais dinheiro fosse destinado ao povo."

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A parte interessante é que existe uma vertente conservadora que é a favor da renda básica — a ideia é que, se todos ganhassem um salário do governo, seria possível eliminar toda a burocracia e deixar que o livro mercado fizesse todo o trabalho: se todos ganharem dinheiro, é possível destruir o Medicaid e deixar que cada um escolha o médico que bem quiser.

É claro que o exemplo do Alasca não oferece nenhum guia para uma reorganização tão radical. O que temos aqui é um estado conservador que dá dinheiro para seus habitantes todos os anos — e que fica cada vez mais rico.

O Fundo Permanente se tornou um orgão versátil e importantíssimo, que ajudou a preservar e distribuir a riqueza gerada pelas reservas de petróleo do Alasca muito depois da época em que o estado poderia se sustentar apenas com os impostos sobre sua exploração. Além disso, o Fundo Permanente transformou o lucro de empresas estrangeiras em uma forma de melhorar a vida da população do estado. Os rendimentos petrolíferos declinaram drasticamente desde os anos 80, mas o fundo está maior do que nunca. O dinheiro é tanto que está começando a gerar algumas controvérsias — pesquisas recentes indicam que os alasquenses são a favor de usar parte do dinheiro do Fundo Permanente para financiar programas governamentais ameaçados por cortes orçamentais enquanto outros são a favor de diminuir a quantia distribuida anualmente.

No fim, a grande maioria quer manter os pagamentos do jeito que estão.

"Creio que isso está incorporado à estrutura social do estado. Os criadores do fundo previram o declínio dos preços do petróleo que estamos vendo", diz Valerie Mertz. "O lucro do petróleo não é mais o mesmo. Tudo está acontecendo conforme previsto."

Mertz afirma que ela nunca havia ouvido falar do conceito de renda básica —sua única preocupação é maximizar o retorno desse investimento para a população. Seja qual for seu nome, é difícil afirmar que o Fundo Permanente não beneficia os cidadão do estado. É só pensar nas milhares de pessoas que ele tirou da pobreza. A iniciativa é uma mini-renda básica e seu futuro é cada vez mais promissor.

"É preciso muita disciplina, é claro", diz Mertz. "Mas a ideia por trás dos Fundo é essencialmente boa."

Tradução: Ananda Pieratti