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Especialistas falam sobre a “PEC do Fim do Mundo”

Economistas explicam como a medida de austeridade sem precedentes no mundo deve alterar a vida do brasileiro nos próximos 20 anos.

Comissão especial analisa o novo regime fiscal do país. Foto: Agência Brasil

Na manhã do dia 24 de outubro, duas apresentadoras dum telejornal das 10 da manhã narravam sôfregas a triste história de uma cidadezinha do interior do Nordeste onde apenas uma escola infantil não dava conta de atender todas as crianças do local — faltava por parte do governo atenção e investimento em educação para garantir o futuro do país, diziam. Passada a matéria, na pauta seguinte do noticiário os humores melhoraram nitidamente: aquela segunda-feira era véspera da votação final da PEC 241 na Câmara e, a despeito de alegações de que a medida poderia arrasar a educação e a saúde do país pelos próximos 20 anos, finalmente o Brasil sairia da lama.

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Na terça, dia 25, a Câmara aprovou a emenda, que agora tramita no Senado sob o número 55. Como você já leu, viu e ouviu em milhares de lugares, a PEC estabelece um limite para os gastos primários totais do Governo Federal — o infame teto — por 20 anos, equivalente ao que foi gasto nesse ano, 2016, acrescido da inflação do ano anterior. Saúde e Educação, casos específicos, também ganhariam um piso — valor mínimo dedicado a cada uma dessas áreas — seguindo a mesma fórmula, mas utilizando como base o ano de 2017. Dessa forma, alega o governo, o resultado da PEC é a garantia de que pelo menos num futuro próximo não faltará dinheiro para nenhuma das duas pastas.

A justificativa por trás do projeto é frear a expansão da dívida pública bruta brasileira, que gira em torno de 70% do PIB brasileiro, percentual considerado alto para países em desenvolvimento, e contornar um cenário de irresponsabilidade fiscal. Esse indicativo aumenta e diminui na medida em que o governo gasta mais ou menos do que arrecada com impostos. Depois de quase 20 anos de resultados positivos, a conta tem ficado no negativo desde 2014.

Em resumo, a PEC 241/55 é uma medida de austeridade sem igual no mundo.

Em resumo, a PEC 241/55 é uma medida de austeridade sem igual no mundo. Por trás dela, há uma narrativa econômica complexa, que costuma ser simplificada numa comparação com a economia doméstica: falta dinheiro na sua casa, então você precisa cortar o supérfluo para ter o que comer e não deixar os juros do cheque especial explodirem. Se fosse simples assim, minha ilustríssima mãe, que com uma salário de caixa de banco criou dois filhos e tem dois imóveis próprios, seria qualificada para sentar na cadeira da presidência do Banco Central.

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Para grande parte das vozes críticas à PEC, o erro da medida começa na justificativa, os tais 70% do PIB que correspondem à dívida pública. "Em nenhum lugar do mundo se olha dívida pública bruta como indicador", diz Felipe Rezende, professor de economia do Hobart e William Smith Colleges, nos EUA. "Desses 70%, cerca de 20% correspondem à política do Banco Central de aquisição de dólares, que não tem a ver com a política fiscal, e outros 9% são transferências de títulos públicos para bancos federais, o BNDES em particular — ou seja, o governo deve para si mesmo —, o que resulta numa dívida líquida ao redor de 40%, exatamente no patamar dos países emergentes", explica.

Leia também: "Por que a PEC 241 pode devastar a ciência brasileira"

Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da ONG Auditoria Cidadã da Dívida, vai além e contesta a autenticidade da dívida como um todo, inclusive pela falta de transparência no que diz respeito a quem são os credores dessa dinheirama. Na terça (1ª), véspera do feriado de Finados, a ONG protocolou uma denúncia da PEC 55 junto à presidência do Senado. Para exemplificar os problemas da dívida, Maria Lucia cita uma prática do Banco Central conhecida como 'enxugar dinheiro'. "Por meio de operações chamadas compromissadas, o BC compra sobra de caixa dos bancos privados a juros altíssimos para garantir que a moeda em circulação não passe de 5% do PIB — um índice que chega a 40% em outros países. É uma despesa brutal, um mecanismo que custou R$ 200 bilhões [ao país] no ano passado, mais do dobro gasto com saúde", diz. A transação financeira, me explica Fattorelli, é como se o Banco Central "comprasse" dinheiro do mercado dando títulos do governo em troca. Caso não repassem esse montante ao BC, os bancos precisariam emprestar o dinheiro à empresas e pessoas para fazê-lo render. Para isso, porém, seria preciso abaixar os juros, alega a coordenadora da Auditoria Cidadã.

Quando se chega a esse ponto, a seara já é a das metas do Banco Central. Para Paulo Rubens Santiago, ex-deputado federal pelo PT e PDT, aí está mais outro problema. "Tudo o que o BC busca é estabilidade monetária. Nos Estados Unidos, por exemplo, o FED (Sistema de Reservas Federais norte-americano, que cumpre um papel semelhante ao nosso Banco Central) busca, além da estabilidade monetária, a geração de empregos e o crescimento econômico", afirma. E o que isso tem a ver com a proposta da PEC? Nenhuma dessas medidas é primária, nenhuma delas será submetida ao teto de gastos. Em bom português: feita para controlar a dívida do governo, a Proposta de Emenda Constitucional não chega perto de reduzir — muito menos esclarecer — a maioria dos fatores que contribuem para sua alta.

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Como resume Paulo: "Se você erra o diagnóstico, você não tem como acertar o remédio".

Desde setembro do ano passado, as três maiores agências de classificação de risco de crédito, a Fitch, Moody's e Standard and Poor's (S&D), vêm abaixando a nota brasileira de maneira sistemática.

O lance da dívida pública fora do esperado para o padrão do desenvolvimento de um país é que se ela for alta demais a credibilidade nas ruas do país em questão vai pro saco. Parte essencial desse processo são as notas de risco ditadas por agências especializadas no metiê. Desde setembro do ano passado, as três maiores agências de classificação de risco de crédito, a Fitch, Moody's e Standard and Poor's (S&D), vêm abaixando a nota brasileira de maneira sistemática, para deleite da mídia especializada em economia.

Em 2008, ao manterem as maiores notas possíveis para ações de hipotecas norte-americanas mais furadas que a minha conta bancária, essas mesmas agências foram responsáveis por uma crise monetária global generalizada. (Essa história é bem contada no documentário Trabalho Interno.) "As agências não têm essa importância como é falado", diz Felipe Rezende. "A Inglaterra foi rebaixada recentemente, os Estados Unidos perderam a nota máxima. O Japão, que nos anos 90 tinha uma trajetória da dívida muito ascendente, chegou a ter uma avaliação de risco inferior à de Botsuana", conta. Segundo Fitch, Moody's e S&P, no final dos anos 90 era mais seguro investir em Botsuana que no Japão. Será mesmo?

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Na realidade, as avaliações feitas por essas agências são requisitos feitos por alguns fundos de investimento, como fundos de pensão norte-americanos, que exigem uma nota mínima em pelo menos duas dessas agências, por exemplo, para poder aplicar em determinado país. "O problema é que esses investimentos não financiam ativos produtivos [investimento em infraestrutura e abrir empresas no Brasil, por exemplo], só financeiros [dinheiro aplicado na bolsa que rende conforme a taxa de juros]", diz Rezende. Eles vêm atrás dos juros altos oferecidos por títulos emitidos pelo Brasil, o que não leva necessariamente ao desenvolvimento econômico, mas tende a acentuar desigualdades do sistema, explica o economista.

Desenvolvimento é a palavra-chave. Apesar de envolver fatores complexos, o cálculo do percentual da dívida é uma divisão simples, de quanto o país deve relativo a quanto toda a economia nacional gera no ano, o que inclui rendimentos do setor privado. O foco do governo é em atacar e diminuir o numerador, a dívida pública, para que o resultado melhore. Uma possível expansão do PIB viria na esteira disso. "Essa visão não é só ultrapassada, mas estava enterrada porque falhou brutalmente", conta Rezende. Ainda que pareça um contrassenso, Felipe diz que um caminho mais adequado seria um investimento por parte do governo em áreas específicas, como a infraestrutura nacional — deficitária para onde quer que se olhe, mal vista por conta de sucessivos escândalos envolvendo a relação promíscua entre empreiteiras e políticos, e demandante de recursos gordos.

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Isso aumentaria sim a dívida pública, mas em tese aumentaria mais ainda o PIB, o que reduziria a relação entre as duas. Para além da matemática, vale reforçar o quanto o investimento em infraestrutura é essencial — e este sim é afetado pelo teto de gastos primários. Assim, num cenário lindo no qual o governo decida dar mais que o piso para saúde e educação, por exemplo, pode ser essa a área que ficará descoberta, na expectativa de que o setor privado puxe para si a responsabilidade de botar grana em projetos como portos, linhas de transmissão elétrica e por aí vai. Duas décadas atrás, quando a privatização era a ordem do dia, a melhora na infraestrutura foi uma das promessas que levou a telefonia para iniciativa privada. Deu no que deu.

A PEC não atenua a crise atual atravessada pelo país, puxada por endividamento do setor privado. — Felipe Rezende

"O setor privado não entra em investimentos de infraestrutura. Tem muitos riscos e demora muito para render. São projetos longos, de dez, quinze, vinte anos, com os primeiros anos de caixa negativo. Então mesmo quando uma empresa decide investir nisso, precisa receber tantas garantias do governo que na prática se torna um gasto público", explica Felipe. "Aí se diz que o investidor estrangeiro virá e ocupará esse espaço. Ele virá, sim, mas para transferência de controle de empresas, parecido com as privatizações."

Além disso, o economista chama atenção, a PEC não atenua a crise atual atravessada pelo país, puxada por endividamento do setor privado. Diz-se que o Brasil está quebrado, mas o Brasil não quebra: por definição, um país que produz sua própria moeda tem soberania monetária e, portanto, nunca vai deixar de ser solvente, capaz de cumprir seus compromissos. Quem está quebrado são os brasileiros e a esses a emenda não estende sequer uma mãozinha.

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Ninguém lê nada. Faz muito tempo os deputados e senadores deixaram de avaliar dados concretos, informações reais. O que eles atendem são interesses. — Paulo Rubens Santiago

Para Floreano Peixoto de Azevedo, professor da Faculdade de Direito da USP especialista em direito constitucional, não há impedimentos legais para a medida. "A constituição diz que existem direitos e existem limites. A medida vai trabalhar melhor uma delimitação para esses limites, já que vínhamos sendo excessivamente tolerantes com gastos", diz Floreano. Na avaliação do professor, a PEC privilegiaria o debate público do orçamento ano a ano. Como estreita o dinheiro disponível para aplicação por parte do governo, investimento em pesquisa, tecnologia e ciência — que ao contrário de saúde e educação, não possuem um piso mínimo de gastos — concorreriam diretamente com políticas de estímulos, como isenções fiscais oferecidas a empresas, assim como reajustes maiores que a inflação no funcionalismo público.

"Duvido que o governo tenha facilidade política para cortar direitos [saúde e educação] e não privilégios [isenção fiscal para empresas, por exemplo], não haverá essa leniência", afirma o professor, que ressalta que "tudo (em relação aos gastos primários limitados pelo teto) é justo, a questão é definir quais são os prioritários". No entanto, frente ao atual cenário político, fica difícil confiar na idoneidade das decisões tomadas pelos dirigentes. Um exemplo: no dia seguinte à aprovação da PEC na Câmara, uma comissão especial da própria Câmara aprovou um reajuste de 37% para cinco carreiras públicas, entre elas, da Polícia Federal.

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Mais um: apesar de variados relatórios do IPEA, órgãos diversos e comissões técnicas do Congresso contrários à PEC, ela foi aprovada. "Ninguém lê nada", diz Paulo Rubens Santiago, que ocupou uma cadeira na Câmara entre 2003 e 2015. "Faz muito tempo os deputados e senadores deixaram de avaliar dados concretos, informações reais. O que eles atendem são interesses. Se um grupo financeiro poderoso que financia determinado político dizer que vermelho é branco, então vermelho é branco", afirma.

Em mais uma conta matemática simples no meio de um mar de complexidade financeira, a dívida aumenta na medida em que a arrecadação do governo é subtraído pelos gastos. O objetivo de PEC é cortar os gastos para transformar esse resultado em positivo. Tão eficiente quanto seria aumentar a arrecadação, mas aí entramos no território do PATO!, uma reforma fiscal. Sim, os impostos já altos do Brasil. "Em uma comparação com os dados dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que inclui basicamente nações ricas, do qual o Brasil não faz parte), a carga tributária do Brasil para consumo equivale a 2ª maior", conta Felipe Rezende. Enquanto isso, a carga tributária sobre lucros, patrimônio, herança, enfim, sobre a riqueza, é menor de que a de todos os membros da OCDE.

Ainda assim, a possibilidade de uma reforma fiscal sequer é discutida.

Enquanto isso, estimativas variadas feitas por consultorias especializadas e bancos privados, avaliam que com a PEC os tais gastos privados do governo seriam equivalentes de 14% a 16% do PIB em 10 anos — hoje, o índice gira em torno de 20%. Do ponto de vista oficial, um sucesso em reduzir o tamanho do Estado. Do ponto de vista global, isso colocaria o país, atual nona economia mais forte do mundo, em patamares semelhantes aos de Bangladesh, Congo e Irã.

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"É um sequestro do orçamento que não atende a relação entre dívida e PIB, mas apenas aos credores dessa dívida", afirma Paulo Rubens Santiago. Uma opinião que encontra eco nas vozes contrárias a PEC: quase sem exceção, todos concordam que a medida transfere a preocupação principal do governo com o bem estar social para o mercado financeiro — não que o cenário fosse diferente antes, mas essa desigualdade de interesses só se acentuaria.

A perspectiva até 2023 é de um conflito distributivo gigantesco e caos político e social como nunca visto antes no Brasil.

Além disso, mesmo segundo a posição oficial do governo, até 2023 a previsão é apenas de recuperar o que foi perdido, quase uma década perdida com estagnação econômica e retrocessos sociais. Segundo Felipe, a perspectiva para esse período é de um conflito distributivo gigantesco e caos político e social como nunca visto antes no Brasil.

Numa rotina incansável de visitas à gabinetes, comissões e audiências públicos, Maria Lucia Fattorelli conta que a resposta mais comum ouvida quando expõe seus argumentos contra a PEC é que ela "ou é do PT ou é contra o Brasil". Outro reducionismo que não ajuda em nada a entender a questão e força o debate para uma gangorra ideológica em prejuízo do conhecimento técnico. Afinal, nos anos do Lulopetismo, a política macroeconômica do país foi ditada por banqueiros. Não à toa, os bancos continuam atingindo lucros recordes a despeito da crise. Henrique Meirelles, ministro da Fazenda de Michel Temer e salvador da pátria, presidiu o Banco Central de 2003 a 2010.

Claro, todos esses argumentos, assim como as maciças ocupações em escolas e universidades ao redor do país, não devem afetar o resultado dessa história. O Senado precisa votar a emenda em duas sessões e a expectativa é que ela seja aprovada antes do fim do ano. Até lá, nossos mais altos representantes se digladiam numa briga para decidir qual comissão é mais adequada para avaliar a proposta (Assuntos Acrônimos, contrária, VS Constituição e Justiça, a favor).

Se for mesmo aprovada, a PEC 241/55, do teto, do fim do mundo, chame como quiser, poderá ser revista em 10 anos. Isto é, claro, a não ser que outra emenda constitucional seja proposta, votada e aprovada antes disso e mude este cenário.

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