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Hitler é tipo uma estrela do rock no Sul da Ásia

Homens de negócio da Índia e do Nepal leem 'Mein Kampf' logo depois de terminar 'Pai Rico, Pai Pobre' e 'Quem Mexeu no Meu Queijo?'

'Mein Kampf'numa livraria em Catmandu, Nepal. Todas as fotos pelo autor.

Em toda livraria ou banquinha de rua de Catmandu ou Nova Deli, você encontra cópias do manifesto de Hitler Mein Kampf. O livro fica na mesma seção dos grandes pensadores e líderes: Albert Einstein, Gandhi, Aung San Su Kyi, Abraham Licoln, Nelson Mandela, Steve Jobs e, às vezes, Harry Potter.

Mein Kampf foi proibido na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, e só foi reimpresso agora no país porque seus direitos autorais expiraram mês passado. Agora que está sendo republicado, a nova edição do livro conta com 3.500 anotações "para denunciar a propaganda e as mentiras de Hitler", segundo a editora.

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Mas na Ásia, Mein Kampf é tratado como um clássico antigo. O livro é uma leitura popular entre os homens de negócio indianos, vendido junto com títulos como Pai Rico, Pai Pobre, Quem Mexeu no Meu Queijo? e vários livros motivacionais do Donald Trump. E esse não é a única obra de conteúdo nefasto reverenciada na região — livros sobre Stalin e a Máfia estão nas mesmas prateleiras títulos de negócios — mas Mein Kampf continua entre os mais populares. O manifesto é um best-seller do site da Amazon da Índia; uma única editora indiana, a Jaico, vendeu mais de 100 mil cópias entre 2000 e 2010.

Mas por quê? Será que as pessoas dessa parte do mundo têm apenas uma curiosidade sobre esse homem que é tão vilipendiado no resto do mundo? Talvez, mas há uma boa dose de admiração real pelo infame ditador, que é considerado um pouco diferente aqui no Sul da Ásia.

"Pessoalmente, eu o admiro", disse Keshav Bhattarai, estudante da Universidade Tribhuvan de Catmandu, onde ele está se especializando em estudos de conflito, paz e desenvolvimento. "O apelo dele era muito grande. Apesar de ser cruel, olhando para a história vemos que ele foi um dos maiores líderes."

Uma pesquisa não-científica que conduzi com pessoas nas ruas de Catmandu mostrou resultados similares: Pessoas de todas as idades e origens se referiram a Hitler como "gênio", uma "personalidade enigmática" e um "grande líder". Um homem no distrito de Basantapur em Catmandu chegou a me dizer que "nós [no Nepal] precisamos de um líder como Hitler".

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Hitler ao lado de Nicholas Sparks.

Uma razão para a reputação de Hitler ser diferente neste canto do mundo é simplesmente devido à distância geográfica e emocional entre o Sul Asiático e as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Esses foram horrores de uma terra distante — a maioria das pessoas do Sul da Ásia não têm uma ligação real com o Holocausto e outros crimes de guerra, o que dá a isso um impacto cultural menor.

A região tinha seus próprios problemas para se preocupar na época. A Segunda Guerra Mundial coincidiu com a separação entre Índia e Paquistão, onde estimativas colocam as mortes relacionadas ao conflito entre 500 mil a um milhão. E há décadas os países da região estão atolados num pântano de desenvolvimento. Quando o Nepal não estava sob o jugo das insurgências armadas, o país ficou nas mãos de líderes políticos corruptos. Os nepaleses parecem buscar um líder que os tire da paralisia de desenvolvimento, não importa a que preço.

Em outras palavras, por aqui não há o instinto de matar Hitler quando ele era bebê. Ele era mau? Sim, mas colocou a Alemanha entre um dos países mais poderosos do mundo em apenas uma década. E é fácil estreitar o foco nas qualidades de liderança de Hitler, quando mesmo os currículos das escolas mostram apenas uma parte do papel dele na Segunda Guerra Mundial.

"Na escola aqui, aprendemos sobre Hitler, mas eles não ensinam sobre o Holocausto", disse Pramod Jaiswal, estudante nepalês da Universidade Jawaharlal Nehru de Nova Deli. "Os professores só ensinam que ele foi um bom líder para o desenvolvimento da Alemanha. Eu tinha uma amiga da Bélgica e quando disse a ela que Hitler tinha sido bom para a Alemanha, ela começou a chorar. Fiquei chocado."

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O tipo de Hitler que existe no Sul Asiático é quase uma caricatura — um homem severo e carrancudo de bigode engraçado.

"Na Índia, usamos [a palavra] Hitler para nos referir a pessoas rigorosas", disse Jaiswal. "Não é uma palavra forte. Nosso diretor é um Hitler, nosso pai e um Hitler, [Narendra] Modi é um Hitler."

Filmes sobre Hitler, um café Hitler, uma loja de roupas Hitler e até casquinhas de sorvete Hitler apareceram na Índia na esteira dessa imagem folclórica do ditador, aparentemente sem a conotação de exterminador de judeus. Filmes, como Hero Hitler in Love, humanizam uma versão doce e engraçada do ditador. Não existe a mesma glorificação dele que vemos nos neonazistas do Ocidente — o que acontece aqui é um reposicionamento de marca total do homem.

"Gostamos de Hitler porque ele era um hindu", me disse um dono de livraria de Nova Deli. "Ele era vegetariano e usava a suástica como símbolo de boa sorte. Ele era um de nós."

Apesar de Hitler não se identificar como hindu (na verdade, ele via a controle britânico sobre a Índia como um modelo de como "raças superiores" deveriam dominar "raças inferiores", e chamava os defensores da liberdade da Índia de "malabaristas asiáticos"), a suástica tem mesmo raízes profundas na região. Viajantes ocidentais em países asiáticos frequentemente se surpreendem quando encontram o símbolo adornando lugares como templos religiosos, táxis, hotéis e calendários de empresas, como marca de boa sorte e ordem cósmica.

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A popularidade de Hitler pode ser um simples caso de pouca educação, mas outros acreditam que existe uma decisão deliberada de recontextualizar o homem por razões políticas. "Durante a ascensão do nazismo na Segunda Guerra Mundial, a Índia estava sob domínio do Império Britânico", explicou Shiv Visvanathan, cientista político e professor da Jindal Global University em Sonepat, Índia. "Para muitos ativistas da independência de 70, 80 anos atrás, o fascismo era um inimigo do imperialismo britânico. No movimento nacionalista, pessoas como Subash Bose e outros acreditavam que o movimento fascista tinha suas possibilidades." (Subash Chandra Bose era um nacionalista indiano que formou alianças com os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, visando ajudar a independência indiana.) Visvanathan também acredita que o ultranacionalismo dos nazistas ecoa uma forma corrente de ultranacionalismo em ascensão na Índia sob o Partido Bharatiya Janata (BJP), do primeiro-ministro Narendra Modi. "De muitas maneiras, sempre houve esse sonho de tornar a Índia uma superpotência", disse Visvanathan, falando da relação entre a popularidade de Mein Kampf e a ascensão do nacionalismo na Índia. O governo do primeiro-ministro Modi tem sido acusado de criar uma identidade nacional exclusivamente hindu, e reescrever a história para marginalizar os muçulmanos e outros grupos religiosos do país. "Mein Kampf se tornou muito útil para esses movimentos", explicou Visvanathan. "Agora, em vez de judeus, temos os muçulmanos." Claro, as opiniões sobre Hitler no Sul da Ásia podem variar de indivíduo para indivíduo, e nem todo mundo é fã do cara. Mas a popularidade da "marca" Hitler na região — política e além — sugere que o cara de bigode engraçado não deve sumir tão cedo. Siga o David Caprara no Twitter. Tradução: Marina Schnoor