Como as MCs negras norte-americanas mudaram o hip hop

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Noisey

Como as MCs negras norte-americanas mudaram o hip hop

Lauryn Hill, Missy Elliot, Salt-n-Pepa, Lil' Kim e Nicki Minaj — é hora de reconhecer todas as contribuições delas para o feminismo.

Artigo original da VICE Canadá.

Sentada na mesa de um restaurante não identificado, a revolucionária cantora Nina Simone uma vez disse ao seu entrevistador que "o dever de um artista é refletir o seu tempo."

E ela estava certa.

Até agora, não houve uma época em que o feminismo, o hip hop e as mulheres negras nele fossem tão desesperadamente necessárias.

Sem surpresa, MCs negras não foram amplamente reconhecidas por suas contribuições ao feminismo durante todo esse tempo. E é ainda menos surpresa que o sexismo e a misoginia que as MCs negras até hoje enfrentam sejam assuntos secundários. Nos apressamos em minimizar as dificuldades das mulheres negras no hip hop, principalmente porque nunca tivemos que analisar minuciosamente o que é ser uma MC negra numa indústria dominada por homens.

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Por isso vozes de megaestrelas como Nicki Minaj soam tão altas quando fazem declarações corajosas como "você não precisa de homem nenhum neste planeta, ponto" em suas entrevistas.

O que Minaj diz faz diferença porque ela tem sido uma das importantes vozes entre as MCs (apesar de discordâncias) por algum tempo. E sua entrevista para a Marie Claire certamente não foi a primeira vez que a 10 vezes indicada ao Grammy expressou as hipocrisias que enfrentou até agora.

Como fã de hip hop e feminista negra, sua posição no mundo do rap é particularmente interessante para mim, por causa do controle (ou falta dele) que ela tem no rap. Ela está numa posição onde ela tem que ser tudo para todo mundo, simplesmente porque, por muito tempo, não havia outras como ela.

E apesar de algumas pessoas terem dificuldade para considerar seu feminismo inovador, sua própria presença já coloca uma pergunta muito interessante: o que é preciso para ser um feminista negra no rap?

Antes de observarmos as contribuições de Minaj, primeiro temos que levar em conta a magnitude da contribuição e influência das MCs que vieram antes dela. Precisamos examinar as feministas hardcore que estavam nos primórdios do feminismo interseccional quando se trata de raça, gênero, classe social (e até sexualidade) antes do hip hop dominar o mundo.

O ano de 1979 viu a ascensão de Sylvia Robinson ("Rapper's Delight") no Harlem, Lady B ("To the Beat Y'all") na Filadélfia, e The Sequence ("Funk You Up") como algumas das primeiras MCs do hip hop.

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Durante essa época, o feminismo estava em sua segunda onda, e começou a resistir às noções convencionais de beleza e feminilidade em vez de focar em igualdade social (por exemplo, o protesto de "queima de sutiãs" contra o Concurso Miss America em Atlantic City). Nessa época em Nova York, a taxa de crimes aumentava e o crack começava a aparecer no South Bronx. Houve um grande blackout e muitos conjuntos habitacionais literalmente pegaram fogo. O final dos anos 70 também testemunhou a ascensão e queda da disco, com clubes noturnos lotando ao som de Donna Summer e Soul Train. Para os negros, também foi uma época interessante de revolução, com movimentos de justiça social como os Panteras Negras. Mas o hip hop ainda prevaleceria apesar de sua infância difícil, e, de certa maneira, acabou refletindo o som da disco.

Os anos 80 contaram com a ascensão do Salt-n-Pepa, as duas sendo mestres de cerimônia quintessenciais. Levantando o público com sua energia e flow, a presença delas com o microfone na mão era maior que elas mesmas. Frequentemente descritas como "Primeiras-damas do Hip Hop", essas mulheres superaram "misoginia, adversidades, dificuldades econômicas, encarceramento, abuso sexual/objetificação e violência" na indústria, segundo a Source Magazine. Se descrevendo como feministas, elas mostraram o que o rap poderia significar para as mulheres em um época em que não havia tantas MCs na cena. Em 1995, a dupla ganhou o Grammy de Melhor Performance de Rap para Dupla ou Grupo, as tornando o primeiro grupo feminino a ganhar o prêmio.

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Durante essa época no final dos anos 80, o feminismo estava começando a se centrar na liberação sexual e controle sobre o corpo feminino. Com lutas pelos direitos reprodutivos, reforma das leis de aborto e controle de natalidade, as feministas estavam começando a criticar o papel das mulheres dentro e fora de casa, e diferenciar sexo de gênero.

Ao mesmo tempo, MC Lyte estava fazendo barulho no Brooklyn, entrando na cena aos 16 anos de idade. Diferente de outras MCs da época (Roxanne Shante, por exemplo), que tinham sido introduzidas no rap como "primeiras-damas" de grupos de rap masculinos (mais tarde fazendo carreira solo), MC Lyte ascendeu na cena do hip hop sozinha, e continuou assim. Ela não tinha medo de abordar tópicos como sexualidade, consentimento ou dizer como ela era incrível.

Mas foi só com a terceira onda do feminismo, durante o meio dos anos 90, que realmente vimos uma reforma da sexualidade no hip hop. Naquele ponto, o movimento feminista tinha desmistificado e quebrado noções tabus de sexualidade feminina na esfera acadêmica. Agora, com a ajuda de mulheres da música, a liberação sexual feminina estava se tornando mais do que apenas uma conversa de universidade.

O assunto estava no topo das paradas da Billboard, se esgotando nas lojas de disco e tocando nas principais baladas. As MCs estavam usando o hip hop como meio e sua música como plataforma para mandar uma mensagem forte sobre feminilidade, sexualidade, representação de gênero e autoestima, de modo mais alto e claro que muitas ativistas poderiam.

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Os anos 90 foram o ápice para as MCs no hip hop, com gente como Lil' Kim, Foxy Brown, Lauryn Hill, Queen Latifah e Missy Elliott, só para citar algumas.

Diferente das MCs antes delas, Kim, Foxy, Hill, Latifah e Missy tinham sua própria ideia do que significava ser um artista. Havia menos ênfase em quem era a melhor letrista ou quem tinha o melhor flow, com as gravadoras focando em aparência, individualidade e sex appeal.

Kim e Foxy era duas das rapper de maior importância a levar a representação do corpo feminino a um novo nível. Kim não apenas era dona da própria sexualidade através de histórias cruas e agressivas, poses sugestivas e penteados ousados; ela também deu às mulheres negras permissão para fazer o mesmo (apesar de que alguns argumentarem que ela ainda estava "na mesma linha" da fantasia e olhar masculino negro).

No entanto, Lil' Kim chegaria ao topo das paradas da Billboard com seu disco de estreia, Hard Core.

Onde Kim atendeu ao modelo "sexo vende", a rival Foxy Brown era "sem conversa fiada e sem medo", como disse o ex-editor da revista VIBE Smokey D. Fountaine, numa entrevista. A autointitulada "garota propaganda morena da Christian Dior" também fez muito sucesso, vendendo em uma semana mais de 109 mil cópias do seu disco de estreia Ill Na Na.

E quem poderia esquecer a anomalia pioneira de Lauryn Hill? Críticos ainda falam de The Miseducation of Lauryn Hill como um dos maiores álbuns de todos os tempos.

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Sua música tinha uma espiritualidade única, atemporal e impossível de recriar. Ela se expressava livremente numa época em que as rappers eram vendidas como símbolos sexuais e não davam a mínima para discussões sobre conformismo.

L Boogie reinventou como uma MC deveria parecer. Seu flow poderoso, letras profundas e seu tom vocal não eram apenas inigualáveis — eram algo que nunca tinha sido feito antes. Ela foi a primeira MC a ganhar reconhecimento por unir ser mulher, espiritualidade e contextualização das lutas que as MCs enfrentavam no rap.

No documentário My Mic Sounds Nice: The Truth About Women in Hip Hop, Fontaine aponta que "o hip hop se baseia na verdade. [Mas] quando se trata da história de uma mulher, ser quem ela é geralmente vai envolver contos sobre um homem que a decepcionou. E no final das contas, [os fãs] não querem ouvir isso."

Mas, e quando quem está falando é a Lauryn? Aí, sim. Ela não tinha medo de apontar inconsistências na cultura e a hipocrisia na indústria.

Queen Latifah ("Who You Callin' a Bitch?"), 'Da Brat, Left Eye e Missy Elliott também foram artistas que ignoraram a ideia de parecer sexy ou durona, e foram MCs que diversificaram e revitalizaram a imagem das mulheres negras através de clipes criativos, estética guetto e sons inovadores.

Tanto o hip hop como o feminismo não davam a mínima para como as mulheres negras eram representadas, até que reclamamos uma identidade para nós mesmas. Lil' Kim e Foxy estavam entre as primeiras a embarcar na jornada para reclamar a identidade de "bitch" em suas músicas.

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O think-tank digital Hampton Institute liga o termo "bad bitch", hoje popular no universo do rap, com "uma mulher que emascula seu homem comandando a casa e sendo financeiramente independente, ou uma mulher que simplesmente não conhece seu lugar." É pouco provável que Kim e Foxy fossem se aliar a esse último significado.

Mas o feminismo mainstream ainda era amplamente dominado por mulheres heterossexuais, brancas e de classe média, que não criaram espaços abertos e inclusivos para mulheres não brancas, de classe baixa, queer, trabalhadoras sexuais e trabalhadoras domésticas. O feminismo ainda estava deslumbrado com os efeitos das primeiras ondas, que lutaram por direitos iguais para as mulheres, como o direito ao voto (que não incluía mulheres pobres não brancas) e só agora estava se aquecendo para a ideia de feminismo multidimensional (ou, segundo o termo que a autora e poeta Alice Walker cunhou no final dos anos 60, o "womanism"). Ativistas e escritoras feministas como Bell Hooks resolveram a questão por conta própria com ensaios sobre tudo, de racialização das mulheres negras dentro da esfera feminista, dissonância dentro da questão, falta de união entre raça e classe social até finalmente a radicalização do autoamor negro tanto dentro como fora de nossas comunidades.

A própria presença das MCs significou reconhecê-las não apenas como iguais no rap, mas como rappers negras na cena, e mulheres negras em geral. Significou humanizar uma demografia que era desumanizada desde a escravidão. E também significou identificar a misoginia (ou misoginoir) óbvia do hip hop, uma área ainda altamente patriarcal que dessensibilizou, normalizou e até comercializou o uso das palavras "hoe" e "bitch" com relação ao corpo feminino negro. Mas a música de MCs negras ameaçava cada pilar do patriarcado no hip hop, tudo isso enquanto elas tentavam descobrir quem eram. Uma mulher negra num espaço dominado por homens vai inerentemente se tornar algo político, ela querendo ou não.

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Como no ativismo contemporâneo, os corpos femininos negros frequentemente estão no front das lutas. Nós erguemos os punhos por nossas comunidades enquanto somos simultaneamente ignoradas e esquecidas. Desencadear mudança social significativa no hip hop é não ter medo de falar sobre sexualidade e políticas de identidade fora da subcultura underground. Isso também significa reconhecer os padrões diferentes para Nitty Scott MC e Kendrick Lamar, que, como um amigo sempre diz, "pode fazer músicas politicamente carregadas e ainda existir no mainstream."

É justo criticar as MCs por quererem avançar numa carreira mainstream cheia de sentimentos sexistas? As MCs deveria se esforçar mais para "impor" respeito numa indústria que lucra com a difamação das mulheres negras? Ou as rappers deveriam se unir para formar um coletivo de irmandade e abordar a questão juntas? E isso realmente depende só das MCs? E no final das contas, o hip hop pode existir hoje sem misoginia? A resposta ainda não está clara.

Ser uma MC negra hoje significa lançar um olhar introspectivo sobre o que realmente significa ser uma artista e mulher negra no clima sociopolítico atual. É ser crua e sincera consigo mesma — uma responsabilidade que nossos colegas homens nem sempre têm.

Feminismo no hip hop e contribuições de antigas MCs deram luz a artistas destemidas como JUNGLEPUSSY e Princess Nokia, que fazem música com mensagens fortes de positividade feminina, liberdade de sexual e celebração do espírito feminino. Numa entrevista na Galore TV, Nokia, cujas raízes afropunks falam por si, até comentou em sua voz suave que "antes do hip hop se tornar realmente corporativo e ter essa agressividade masculina quase como um pré-requisito para vender discos, a orientação do hip hop era muito feminina."

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Agora estamos vendo uma renascença de artistas independentes cujo trabalho desmantela a narrativa de que você não pode ter sucesso como rapper trans, queer tomboy ou bruxa afro-latina sem atender ao olhar masculino.

E já se foram os dias quando uma mulher precisava preencher noções problemáticas de objetificação feminina para se destacar. As artistas agora estão se afastando de narrativas como essas, e lentamente tocando em suas verdades pessoais e políticas. Estamos voltando para um tempo quando a arte era uma exploração de quem éramos como indivíduos, e menos sobre como podíamos ser vendidas, embaladas e distribuídas para as massas. Agora, há menos necessidade dos artistas assinarem com gravadoras para ter sucesso, permitindo que MCs tenham liberdade artística e a chance de construir sua marca, identidade e estética organicamente. Em outras palavras, a indústria da música está lentamente se metamorfoseando no que as MCs negras tiveram que ser historicamente: autossuficientes e de base.

Faz sentido que rappers como Young M.A., Quay Dash, Kari Faux, Jean Grae e Nezi Momodu sejam parte significativa dessa guinada para mensagens carregadas de vibes positivas para garotas negras.

As ondas e secas das MCs nos fazem questionar por que, então, alguém como Nicki Minaj pode realmente ser considerada monumental para o feminismo no hip hop. Para alguém que continuamente reclama o título de "Rainha do Rap", mas não conseguiu defender adequadamente sua posição, isso nos leva a imaginar: com tanto poder e visibilidade, Nicki é realmente uma celebração do feminino no hip hop através de sua música, mensagem e ações?

Mesmo a rival Remy M, depois de sua segunda faixa criticando Minaj, admitiu que "não se arrependia [de 'shETHER'], [mas] não estava particularmente orgulhosa do som", e que acreditava que mulheres "…funcionam muito melhor quando trabalham juntas."

O feminismo de Nicki, apesar de positivo, é enraizado em monopólio; feminismo se torna um diálogo com bem menos nuances quando você é a única mulher na sala. Com poder vem responsabilidade, e Minaj existe num espaço único, onde é a única voz de alto escalão num momento em que precisamos ouvir mais de comunidades e origens interseccionais. Considerar as contribuições dela socialmente significativas é descontar o trabalho que foi feito antes dela, ou trabalho que existe fora de sua música e público.

E para pioneiras negras canadenses como Michie Mee e novatas como The Sorority, também é uma batalha contra a corrente numa indústria que historicamente sofre para se manter de pé (sim, apesar do Drake).

Enquanto o futuro do feminismo e das rappers continua um pouco enevoado, uma coisa é certeza: a maré está mudando, e é hora de reconhecermos o trabalho que abriu caminho para nós.

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