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A sindicalização dos trabalhadores dos videogames nunca foi tão necessária

Com o nascimento de movimentos pró-sindicatos durante a GDC 2018, explicamos o que isso pode significar pra indústria de games brasileira.
Símbolo do movimento Game Workers Unite. Imagem: Reprodução.

A Game Developers Conference realizada anualmente nos EUA é o “maior evento da indústria profissional de videogames”, segundo o próprio site. Embora nada de revolucionário tenha surgido nas edições anteriores do evento, em 2018 rolou algo diferente. Contra as expectativas da própria organização, surgiram sinais de mudanças concretas na indústria. E isso se deve ao movimento Game Workers Unite (GWU), que luta pela sindicalização e, consequentemente, por melhores condições para os trabalhadores da indústria de videogames.

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Ainda que seja um movimento novo, as razões para se sindicalizar não são. Nem no mundo pós-revolução industrial, nem nos novos setores de tecnologia. A indústria de videogames tem se tornado notória por explorar seus trabalhadores: tentativas de fixar salários abaixo do valor competitivo, alta taxa de demissões, e o famigerado crunch (entre outros).

O crunch consiste em períodos, geralmente próximos ao lançamento de um jogo, em que horas-extras se tornam obrigatórias, chegando a mais de 70 horas semanais e quase sempre não pagas. Em algumas empresas como a Telltale, o crunch nunca acaba. Trabalhadores já declararam ter sofrido “perdas de memória” ou se ver “incapacitado de sair do próprio carro” por conta do stress e ansiedade. O caso de crunch mais conhecido talvez seja o da “EA spouse”, em 2004, que eventualmente gerou e venceu uma ação coletiva milionária por horas-extras que não haviam sido compensadas pela Electronic Arts. Apesar da vitória, pouca coisa mudou de lá pra cá.

Em 2008, durante um painel na GDC, o presidente da Epic Games na época, Mike Capps falou abertamente sobre crunch. Ele diz que trabalhar mais de 60 horas na semana era esperado dentro da Epic, que isso não tinha nada a ver com exploração, e sim com a “cultura corporativa” da empresa. Se estamos sendo honestos, esse tipo de pronunciamento pelo presidente de uma grande empresa do ramo não é muito surpreendente. O problema é que na época Capps também era membro do conselho da International Game Developers Association (IGDA), uma associação que “advoga pela qualidade de vida […] dos desenvolvedores”. Jennifer MacLean, a figura no topo da IGDA, comentou dias depois que “qualidade de vida varia significativamente de acordo com o indivíduo”.

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Jennifer MacLean é também uma ex-CEO, e isso demonstra porque muitos dos desenvolvedores com quem conversei acreditam que a IGDA é uma organização que representa mais as empresas do que o trabalhador. É como colocar o lobo de segurança das ovelhas. MacLean se torna uma personagem importante porque ela foi, sem querer, o catalisador que deu origem ao Game Workers Unite.

"Trabalho cria jogos", diz adesivo do movimento Game Workers Unite. Foto: Scott Benson.

A IGDA havia programado uma mesa-redonda pra GDC deste ano, intitulado: “Union Now? Pros, Cons, and Consequences of Unionization for Game Devs” (Sindicato Agora? Prós, Contras, e Consequências da Sindicalização para Desenvolvedores de Jogos), mediada por Jennifer MacLean, que prometia discutir os problemas que sindicatos “poderiam (ou não) resolver”.

A linguagem escolhida, a palavra consequência, o momento histórico em que a mesa-redonda foi anunciada, tudo isso contribuiu para chamar a atenção de vários trabalhadores dentro da indústria.

“Estávamos todos preocupados, porque sabíamos da estrutura da organização. Grande parte da IGDA é administrada por CEOs e pessoas em em posições de gerência dentro da indústria, então tínhamos fortes suspeitas de que [a mesa-redonda] teria uma inclinação anti-sindicalista”, diz Carolyn Jong, 30, uma organizadora de Montreal que participou das primeiras conversas que formaram o Game Workers Unite. Tudo começou em um grupo privado de Facebook, que depois migrou pro Twitter e pro Discord, e eventualmente ganhou forma, nome, e o objetivo inicial de “oferecer outra perspectiva e encorajamento para desenvolvedores que queiram se sindicalizar”, de acordo com Jong.

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Zine distribuído pelo Game Workers Unite. Foto: Scott Benson.

Para contestar o sentimento anti-sindicalista dentro da GDC, integrantes do Game Workers Unite distribuíram zines durante a GDC, criaram um site e meios para que trabalhadores compartilhassem suas histórias, e compareceram à mesa-redonda para incluir suas vozes na discussão. O GWU trouxe para o debate público ideias que antes eram conversadas no particular, longe dos patrões, e pode canalizar o sentimento dos trabalhadores pró-sindicalistas que não queriam se pronunciar por medo de represálias. As filmagens da mesa-redonda foram proibidas para proteger os trabalhadores. “Existe um histórico de listas-negras na indústria”, diz Jong, se referindo à prática, entre empresas, de compartilhar informações de funcionários… desagradáveis. Funcionários com inclinações sindicalistas, por exemplo.

O GWU compareceu à mesa redonda junto com representantes sindicais da STJV, um sindicato francês dos trabalhadores de videogame, e da SAG-AFTRA, que representa, entre outras categorias, artistas de voz e dubladores. Em 2016, membros da SAG-AFTRA que trabalham com videogame entraram em greve, o que durou quase um ano — a maior greve da história do sindicato. As negociações foram difíceis, e essa dificuldade, segundo alguns grevistas, era o medo que as empresas tinham do impacto das reivindicações nos outros trabalhadores da indústria de videogames.

A mesa-redonda da IGDA pode ter sido uma ação proativa para desarmar essas ideias, mas acabou servindo de estopim para que mais pessoas ficassem atentas e se organizassem em torno do sentimento pró-sindicatos. E existem muitas razões para querer se sindicalizar.

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Foto: Scott Benson.

Claro que também existem ótimas razões para discordar de como certos sindicatos são conduzidos, mas inúmeras pesquisas mostram que, de um modo geral, a sindicalização funciona.

Segundo dados analisados pelo Economic Policy Institute, um think tank não partidário estadunidense (país que concentra um bom pedaço da indústria de videogames), sindicatos beneficiam todo mundo. Os sindicatos aumentam os salários dos trabalhadores sindicalizados e não-sindicalizados; diminuem a desigualdade entre o trabalhador mais bem pago e o mais mal pago de uma mesma indústria; aumentam em 26% o tempo de férias; etc. Além disso, a baixa taxa de trabalhadores sindicalizados é o provável motivo pelo qual os salários não crescem, mas a desigualdade sim.

Indústria brasileira

Se nos EUA o pau tá começando a pegar, no Brasil o papo ainda não chegou lá. O país tem uma micro-indústria de videogames, se comparado com o mercado exterior, e suas próprias peculiaridades. Mesmo assim, temos problemas muito parecidos com a indústria de fora.

“Quando eu estava no Brasil, ficava muito claro pra mim, de ouvir a histórias dos meus colegas e as pessoas que trabalhavam com jogos, essa necessidade de uma mobilização para defender seus interesses como categoria", diz Fernando (seu nome foi mudado para proteger sua identidade, já que ele planeja voltar para o Brasil um dia e tem medo de que sua carreira aqui seja prejudicada por ser associado com um movimento sindicalista). "Eu já ouvi histórias de abuso moral, gente que ficou sem pagamento por um tempo, salários atrasados.” O desenvolvedor trabalhou com videogames no Brasil antes de se mudar pra América do Norte, e está diretamente envolvido com as ações da Game Workers Unite.

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No Brasil é peculiar como o trabalho na indústria se organiza. É comum as empresas, ligadas à indústria dos games ou não, pedirem que o trabalhador abra uma Pessoa Jurídica para evitar os requerimentos de um contrato CLT.

“A maioria dos meus colegas são pessoas que estão trabalhando como PJ. Um sindicato [para os trabalhadores de videogame aqui] que se limitasse a trabalhadores com contrato CLT seria muito restrito. Isso não quer dizer que deveria ser um sindicato que incentiva a pejotização, mas justamente que teria que lutar pelos direitos de todos os trabalhadores dentro dos diferentes regimes legais”, diz Fernando.

Eu conversei com Stiven Valério, 27, o atual presidente do capítulo São Paulo da IGDA, não se opõe à sindicalização da indústria de games brasileira. “Eu acredito que pode funcionar, pode solucionar não sei se todos, mas muitos dos problemas que tem no nosso mercado. Por conta dessa troca de informação e essa união, essas coisas tendem a melhorar o ecossistema como um todo, então pra mim tem um potencial positivo”, diz Valério.

Quanto aos problemas da indústria brasileira, Valério cita uma “escassez” de projetos, e portanto uma falta de emprego — principalmente para quem ainda não tem experiência — por conta do tamanho da indústria e do retorno financeiro. “Tem problemas de todas as partes, porém não tem uma solução fácil. Muitos profissionais reclamam que em muitas das vagas da área, eles ganham pouco. Porém, o mercado brasileiro também fatura pouco. Então os empresários não têm dinheiro para pagar o justo, ou o competitivo se comparado com o mercado global”, diz Valério.

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O que é justo pode ser interpretado como aquilo que é direito, conforme à justiça, mas eu sei que ele não está contestando isso, e que ele não acha que o salário dos trabalhadores deveria ser injusto. Mas essa palavrinha me chamou atenção na resposta de Valério, e que parece dizer muito da nossa cultura e relação com o trabalho. Enquadrar a palavra justo dessa maneira é, no fim das contas, algo muito comum, e às vezes me parece que esse ideal de justiça está sempre próximo, mas nunca próximo o bastante para ser alcançado.

Infoproletários

Por outro lado, se os trabalhadores de videogame brasileiros procuram aliados de peso na luta por melhores condições de trabalho, eles podem contar com o apoio do Infoproletários.

“Na minha opinião, qualquer um que trabalhe em uma empresa de games é um infoproletário”, diz Gilberto Ricci, 31, programador, sindicalista, e integrante do movimento. O Infoproletários é um movimento sindical dos trabalhadores de TI que surgiu no início do ano passado no Brasil, e que se organiza nacionalmente através da internet. Eu descobri o movimento pelo Ataque, um podcast de videogame e política, que conversou com o Infoproletários a pauta da sindicalização no Brasil e lá fora. (Transparência: também sou membro do Ataque, embora não tenha participado deste episódio).

Existem similaridades entre a forma de organização do GWU e do Infoproletários, especialmente em como ambos o coletivos se identificam como “movimentos sociais” para abranger as particularidades da indústria. No caso do Infoproletários, o movimento se define “como movimento social/sindical pois não nos restringimos a forma de contratação do trabalhador. PJ, MEI, CLT, freelancer, etc., somos todos trabalhadores de TI”, segundo a página do GitHub, onde você pode obter mais informações sobre a estrutura do movimento.

Apesar do debate sobre a sindicalização ser novidade entre os trabalhadores dos games, a batalha pela opinião pública acerca dos sindicatos é antiga e existe um enorme preconceito com a ideia de sindicatos no Brasil.

Mesmo assim, Raphael Coelho, 27, cientista de dados e outro integrante do Infoproletários me corrige: “O Brasil tem um pós-conceito com sindicatos, porque muitos [sindicatos] estão falhando mesmo. Então essa desconfiança é natural e a gente tem que lidar com ela”, diz. “Eu acho que os trabalhadores de videogames são infoproletários, e isso mostra que a pauta da sindicalização, de fazer greve, de mobilizar de maneira classista é mais atual do que nunca. Quem acha que é uma coisa velha tá muito enganado, e o pessoal do Game Workers Unite provam isso.”


Se quiser se informar sobre o movimento, há duas edições (aqui e aqui) do zine disponíveis em inglês.

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