Noisey

Coruja enfrenta os tempos sombrios do Brasil em 'Psicodelic'

MC de Osasco aborda solidão, depressão, saúde mental e amor pra ir na "contramão do senso comum".
Coruja BC1_foto Pedro Gomes (contra capa)
Foto: Pedro Gomes/Divulgação.

"O hip hop salvou minha vida". O velho mantra que estampa camisetas ao longo desse Brasil é a mais pura realidade de Coruja BC1. Cria de Munhoz Jr., quebrada de Osasco, o rapper paulista viu a violência desde moleque e cresceu em um contexto que estar vivo já é motivo de comemoração. Aos 24 anos e escrevendo rimas desde os oito, ele investe em um outro caminho para seus versos em Psicodelic, seu mais novo álbum criado a partir da frase que sua babalorixá disse: "devemos tomar cuidado com a nossa mente. Ela arma, engatilha e atira". Este também é o primeiro lançamento de Coruja desde que saiu da Laboratório Fantasma.

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Coruja é bastante conhecido no rap por ser um mestre das punchlines e sempre tratar de problemas estruturais da sociedade, seja o racismo ou a desigualdade social, inerente e indispensável para o funcionamento do capitalismo. Em Psicodelic, suas linhas continuam sim afiadas a estes temas, mas passeiam por uma variedade muito maior de assuntos olhando mais para dentro de si e se aprofundando em assuntos que passam pelo amor, a solidão, a depressão e saúde mental.

A cabeça de Coruja nem sempre esteve no lugar de hoje. Em 2018 o artista passou por um período de depressão, que fez com que muita coisa em sua vida mudasse e inclusive, gerou boa parte do material de Psicodelic. "Sou um homem de periferia fruto de um relacionamento interracial, então sempre busquei respostas do que sou, do que é o mundo e de como me encontrar nele. Esse foi um momento que parei de fazer o que estava fazendo, porque tinha muita coisa acontecendo na minha vida em todas as esferas, profissional, pessoal, de relacionamento… Nesse período, acabei buscando me entender como ser humano, ver as feridas que não tinha deixado de cicatrizar. O disco começa exatamente disso, com a história do meu pai, de ser criança e ter visto ele ser baleado", revela o MC.

"Quando estava me reencontrando, queria coisas palpáveis. Fui ver minha mãe, minha sobrinha, uns primos e uns parceiros da minha adolescência em Bauru. Voltei pro Munhoz, na mesma casa onde aconteceu tudo aquilo com meu pai. Respirei fundo e disse: é daqui que vai sair meu novo álbum", recorda. "Esse é um disco de autoanálise. Existe um mundo sombrio pra caralho lá fora e como eu arrumo meu próprio mundo? Preciso estar bem e cuidar da minha saúde mental pra poder vencer. Preciso falar de coisas que falo mas não do que todo mundo já sabe, falar de temas que vão conectar as pessoas a algo mais profundo do que o senso comum pode oferecer. Precisava ir mais fundo nos temas, para as pessoas verem muito mais que o Coruja da punchline e do egotrip. Quis fazer coisas que não esperam de mim mas eu sei fazer. Psicodelic é um disco na contramão do senso comum", conta o MC, que escolheu esse título para o álbum justamente por todas as faixas lidarem com questões relacionadas a sua mente.

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Psicodelic não é distinto apenas nas temáticas das letras. A sonoridade construída no disco flerta com estilos musicais para além do boombap de NDDN ou do trap que ele vinha fazendo. Diferente do álbum anterior, feito com apenas um produtor, Coruja chamou vários nomes para dar a roupagem que vinha buscando ao seu novo trabalho e contou com WillsBife, Deryck Cabrera, Skeeter, OgBeatzz, DJ Nyack, Canela, Melvin Santhana e Grou. "Nesse disco me aproximei mais do trap mesmo. 'Dopamina', por exemplo, é trap com um flow de trap. Sou um cara boombap e fiz um flow de trap no trap, com autotune e tudo. Isso é um pouco do meu lado MC também, de mostrar que sei fazer tudo. Quis deixar isso evidente no disco. Sou músico, me conecto com várias influências. Queria fazer algo diferente, mudar os beats, tanto que coproduzi a maioria dos sons, fiquei ali palpitando, pra fazer ficar bem com a minha cara", diz. "Tem uma frase do Shevchenko e Elloco que gosto muito e se encaixa no pós-trap que falo: 'por essa nem o futuro esperava'. Procuro fazer música que nem o futuro espera".

Além de entrar de cabeça no trap, Coruja escreveu um samba. Influenciado por seu avô, que pilhou o rapper a ser sambista desde pequeno, o MC resolveu gravar uma música em seu momento de reencontro, quando colou no Munhoz. "Essa é uma história real. É de um moleque que era da minha quebrada, não do Munhoz, da Vila Industrial. Ele jogava bola pra caralho só que surgiram umas necessidades na vida dele e ele foi pro corre. A vida dele era zoada. O pai tinha abandonado a mãe, que era empregada doméstica. Era muito parceiro e foi preso bem em uma época que tava pra fazer testes de futebol, ou seja, ele perdeu o sonho porque tinha uma necessidade de ganhar dinheiro", lembra. "Comecei a entrar numa brisa fazendo essa faixa, porque a gente tava vivendo aquela parada do Bolsonaro falando de volta da ditadura. Pensei em como poderia fazer um som sobre o irmão que foi pro corre, driblando a falta de liberdade de expressão. Escrevi 'Camisa 12' como se tivesse que contar essa história em 1969".

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Apesar de cantar solo em várias faixas, o MC investiu em várias participações no disco, entre elas a de Djonga, que coincidentemente, nasceu em 1994, um dia depois de Coruja e divide o nome Gustavo com Coruja. Até por isso a música se chama "Gu$tavo$" e chega em um misto de tiração de onda e marra geminiana. "O Djonga é um cara que tenho um amor muito grande. Ele foi muito próximo durante esse período de criação e meu novo ciclo. Prezo muito por isso, de fazer música com quem tá próximo. A gente já queria gravar junto tem muito tempo e quando o Skeeter fez esse beat, já canetei e mandei pra ele: 'acho que tenho um bagulho pra nós'. A expectativa pra um som com nós dois era alta e acho que suprimos isso", fala Coruja, que também apostou em participações de artistas menos conhecidos, assim como Djonga fez em Ladrão. "Esse álbum tem um negócio de trazer novos nomes. A gente tem que fazer isso. Se a gente não tiver grandes nomes, e falo de 30, 40 e não só cinco, não vamos ter um grande festival de rap no país".

É engraçado ver que ao longo de 14 músicas, Coruja faz diferente do que em NDDN. Vai pelo lado trap, canta em cima de um violão meio Djavan em "Meu Anjo" e segue a influência do samba em "Camisa 12", mas apesar de brincar de Lil Pump, continua bem Rakim, como no papo que dá em "Skr", música que pode até gerar interpretações de que é uma crítica, mas não é bem por aí. "Ela é um alerta, um papo de irmão, de olhar as consequências das coisas. Quantos não se aproximam neste momento do rap e estão sugando esses moleques do trap? Eu tô feliz pra caralho com a vitória de todos eles. A cena trap é positiva e quero ver todo mundo milionário. Não tô falando de dinheiro, tô falando de algo mais profundo, de como as drogas afetam e fazem parte de um plano de extermínio da população negra, de exaltar garotas brancas e como isso invisibiliza mais ainda a mulher negra, de como você precisa parecer um produto de entretenimento pra vender, de como o hip hop é tratado. O hip hop não é uma piada. Ele salvou minha vida. Esse bagulho é sério".

Independente, Coruja fez o corre de Psicodelic sem nenhuma gravadora ao seu lado, já que saiu da Laboratório Fantasma recentemente e como ele frisa, "sem nenhuma treta". O problema não envolveu nem Emicida, nem Fióti, mas sim um investidor que deu pra trás em um contrato assinado. "Voltar a ser independente é trabalhoso, mas muito gratificante, porque volto em um momento da minha carreira em que tenho mais influências e portas abertas. Fiz Psicodelic acontecer, clipes, cuidei do processo burocrático, artístico, executivo, de produção, com a minha equipe, lógico, mas isso me mostra a minha capacidade de fazer as coisas. Esse novo ciclo tem sido muito gratificante", analisa. "Moleque favelado, dormiu e morou na rua, em ocupação, já quase perdeu a vida em várias situações e fazer um disco desse tamanho, com veículos comentando, gente importante da música se importando, é uma vitória do caralho, é sabotar o impossível. O que a gente deve tentar fazer enquanto favelado, mesmo sabendo que as chances são mínimas, é tentar sabotar o impossível. Vou fazer que nem o Shevchenko e Elloco, por essa nem o futuro esperava".

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