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Uma Casa Branca racista não é surpresa para os negros norte-americanos

Um homem branco e apoiado pela KKK chegar à presidência nos EUA dá medo, mas ainda assim não é um fato sem precedentes na história do país.
Paris
Por Paris

Barack Obama e Donald Trump apertam as mãos depois do primeiro encontro entre o atual presidente e seu sucessor, no Salão Oval na Casa Branca, em Washington, na quinta-feira, 10 de novembro de 2016. (AP Photo/Pablo Martinez Monsivais.)

O céu está caindo.

Pelo menos é assim que muita gente se sente com a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA. Como um país que se achava tão moralmente avançado elegeu um homem tão abertamente escroto? É isso que tem levado muita gente às ruas nos dias seguintes ao resultado das eleições, ainda mais com todo ultraje da internet vazando para a vida real.

Mas por mais que eu encoraje o ativismo saudável, algumas das pessoas nesses protestos precisam checar a história. A vitória de Trump não é um grande desvio da norma norte-americana, mas sim uma afirmação da política dos negócios — como de costume no país. A realidade fria é que estamos vendo a mesma merda de sempre.

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Os EUA têm um longo e pútrido legado de racismo: o país se desenvolveu sobre o lombo do trabalho escravo, se expandiu e se fortificou por meio de campanhas genocidas contra os nativos norte-americanos, e quase sempre esteve em guerra contra países e comunidades não-brancas desde o surgimento da nação. Por que alguém ainda se surpreende quando os EUA fazem algo desprezível?

Agora, se você se preocupa porque o presidente eleito foi apoiado por afiliados da KKK, eu entendo. Mas só nos últimos 50 anos tivemos pelo menos um juiz da Suprema Corte e um senador que tinham pertencido à seita, além de vários presidentes acusados de terem sido membros da KKK em diversos momentos de suas carreiras. Então, vá lá, não há nada de novo nisso.

É fato que tanto os democratas como os republicanos já tiveram papéis-chave na defesa de ideais da supremacia branca. Os democratas inauguraram a era Jim Crow no Sul pós-Guerra Civil, e sua causa foi carregada muito bem até o século 20 por gente como Bull Connor e George Wallace. E a exploração das ansiedades raciais entre os eleitores da classe trabalhadora branca pelo Partido Republicano (que ficaria conhecida como "Estratégia Sulista") tem sido devastadoramente eficiente.

O grande golpe de Trump é fazer os brancos da classe trabalhadora acharem que ele dá a mínima para eles.

Claro, alguns vão dizer que é um reflexo involuntário rotular a vitória de Trump como um produto do racismo, sugerindo que o milionário chegou à Casa Branca por ser "populista". O argumento é que Hillary Clinton estava muito confortável entre as classes abastadas dos EUA; nesse conto, a farsa de "homem trabalhador" de Trump foi o suficiente para convencer muitos brancos de que ele se importava mais com as pessoas do que o outro time — mesmo tendo Trump um histórico sólido de prejudicar gente simples em benefício próprio. (Sério, o grande golpe de Trump é fazer os brancos da classe trabalhadora acharem que ele dá a mínima para eles.)

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Mas quer saber de uma coisa? Quem não é branco não pode se dar ao luxo de ignorar a retórica racista de gente branca poderosa. E dada a violência que geralmente acompanha essa oratória, a promessa de novos empregos do "homem da falência no comando" para áreas dilapidadas não é suficiente para dissipar essas preocupações. Se você votou em Donald Trump, acho que você é um racista por tabela. E o fato de Donald Trump ter levado não só os votos da classe trabalhadora branca, mas — se você acredita nas pesquisas de boca de urna — dos brancos com ensino superior de classe média alta, significa que tem uma caralhada de racistas por aí.

Talvez isso fosse inevitável, já que uma queixa comum entre os homens brancos nos últimos anos é que eles se sentem marginalizados enquanto o país lentamente começa sua atrasada metamorfose para uma sociedade mais inclusiva. Eles começaram a se ver como vítimas de um tipo de racismo reverso imaginário, obrigados a compartilhar o poder que foi exclusivo dos brancos por tanto tempo. Segundo o Southern Poverty Law Center, que rastreia grupos de ódio nos EUA, esses sentimentos reverberam na internet e infestam fóruns como o 4chan, Facebook e Reddit, juntando simpatizantes sob a bandeira da "direita alternativa". A força motriz desse movimento é a ideia de que a identidade branca e a civilização ocidental estão sob um ataque constante do "politicamente correto" e da "justiça social".

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Leia também: "Caros brancos, parem de fingir que racismo reverso existe"

Sendo da direita alternativa ou não, muitos norte-americanos parecem ter ficado de saco cheio do novo EUA cosmopolita, onde um presidente negro foi eleito, as mulheres reafirmam a necessidade de igualdade de salários, negros exigem justiça racial proclamando que suas vidas importam e imigrantes conseguem ascender socialmente. Milhões de norte-americanos disseram "já chega" disso semana ao eleger Trump, e, de maneira muito tribal, votaram para o retorno dos EUA ao estado em que estavam mais confortáveis. Os brancos querem mesmo, nas palavras de seu querido líder, "Fazer a América Grande de Novo".

Só pra deixar registrado, não tenho medo de Donald Trump. Ele é um machão só dentro de seu círculo de comparsas endinheirados que nunca tiveram que lutar por nada. Ele é um falso durão e peso-pena político que defende o anti-intelectualismo, e cujos aliados mudam conforme o soprar do vento. Quer uma prova? Trump já começou a mudar o tom de seu discurso sobre extinguir o Obamacare. E sua proposta de um muro na fronteira com o México é simplesmente inviável.

Minha preocupação não é tanto que Trump possa fazer coisas horríveis — me preocupo que Trump legitime comportamentos racistas, xenófobos e misóginos, e encoraje outros a fazerem coisas horríveis. Não é o homem que me preocupa, mas seus simpatizantes e seu partido político.

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Tomie Lenear Jr., um pai de estudantes e consultor da UC Berkeley, ecoa esse sentimento, apontando que os estudantes logo começaram a sentir a mesma ansiedade depois do resultado das eleições. "Alguns acham que uma administração Trump pode deportar seus familiares ou pessoas que eles conhecem", me disse Lenear. "E muitos disseram que o clima social geral está mais violentamente carregado. Eles acham que podemos ter conflitos nas ruas."

E esses medos não são injustificados, com alegações de crimes de ódio e relatos de intimidação decolando desde a eleição.

Não que os democratas sejam particularmente legais com negros — não são. Hillary Clinton tinha uma história maculada que fez com que muitos não pudessem apoiá-la. Talvez a derrota obrigue o partido a começar a levar a sério meu pensamento, e o de muitas pessoas, de que seus líderes acham que têm o apoio dos afro-americanos garantido — e devem começar a abordar de verdade as preocupações relevantes deles e de outras pessoas não-brancas. Prometer qualquer coisa para ganhar votos na época de eleição, só para esquecer isso completamente depois, não vai mais colar.

Por enquanto, parece que as coisas têm que piorar antes de melhorar. O tempo vai dizer se a administração Trump causará os danos que muitos temem. De qualquer maneira, estou preparado — já estive aqui antes. Só é triste que, em 2016, a gente tenha caído no mesmo buraco de novo.

Paris é um rapper de São Francisco. Ele já teve vários negócios e nunca foi à falência. Siga o cara no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor

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