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Desastre em Mariana

A violência doméstica em Mariana um ano depois

Contrariando recomendação do MP, a Samarco paga alguns auxílios pós-tragédia para homens — e não para mulheres — desestabilizando famílias na cidade

Por oito meses, a dona de casa Camila Costa*, antiga moradora de Bento Rodrigues, se sentiu humilhada ao ser tratada pela Samarco e pelo companheiro como "cidadã de segunda classe". Foi assim que Camila declarou se sentir e, alegando pressão psicológica, cortou com uma faca as costas de Álvaro Pereira*, seu antigo companheiro quando, mesmo separados, ainda moravam sobre o mesmo teto no centro de Mariana.

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A crise familiar teve início quando o então companheiro de Camila recebeu R$ 20 mil, valor de indenização referente ao imóvel da família que foi destruído no rompimento da barreira do Fundão, além de um salário mínimo por mês (R$ 905), e mais um valor destinado à cesta básica pagos pela Samarco em um cartão em nome de Álvaro.

A Samarco, segundo MP (Ministério Público), contraria recomendações da Justiça e da ONU ao conceder o cartão auxílio — benefício dado pela empresa às famílias que sofreram com os danos da tragédia — ao homem do casal, e não à Camila, como normalmente acontece em programas como o Bolsa Família, por exemplo, quando a conta fica em nome da mulher da casa.

Após a agressão, o caso de Camila foi levado à promotoria da cidade. A casa onde moravam em Bento Rodrigues, segundo ela sem maiores conflitos, foi uma das cerca de 290 residências do distrito destruídas há um ano pelo rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco (controlada por Vale e a anglo-australiana BHP Billiton).

De acordo com a assessoria da Samarco, "há algumas exceções [na entrega dos cartões de benefício], que foram entregues aos homens devido a própria solicitação do núcleo familiar" — os núcleos familiares, segundo a mineradora, foram identificados por meio de entrevistas realizadas pela empresa e a análise de dados e documentos com as vítimas do rompimento das barragens. A empresa cita um caso específico de um casal que embora tivesse o casamento registrado, não morava junto, sendo, então, identificados como dois núcleos familiares.

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Ainda segundo a assessoria da mineradora, "a empresa segue as orientações e diretrizes do Ministério Público e da ONU para que o cartão benefício seja entregue às mulheres".

Camila Costa* conta o assédio psicológico que passou ao ter de viver com o ex-companheiro sob o mesmo teto. Foto: Flavio Freire/VICE.

Segundo Camila, o benefício pago ao antigo companheiro foi o responsável por modificar a vida do casal. "O dinheiro faz a cabeça de qualquer um", diz ela. "O Álvaro nunca teve nada, quem trabalhava e tinha renda em casa era eu, e de repente ele tinha uma casa, dinheiro próprio, e começou a gastar com drogas, de todo tipo — até um pé de maconha ele comprou por R$ 500", comenta sobre a situação.

Como não foi citada por ele como companheira, Camila, que trabalhava em um programa de renda mínima da prefeitura, além de fazer outros pequenos serviços em Bento Rodrigues, não teve acesso a todos os acordos de repasse firmados entre a Samarco e as autoridades. Ela conta que, enquanto Álvaro permanecia em um hotel pago pela empresa, teve de se abrigar na casa de uma irmã. "Não deixavam nem eu entrar para ver meu filho dentro do hotel; eu tinha que esperar do lado de fora que ele descesse com o menino, e isso quando não me ignorava simplesmente dizendo que não estava."

"O pior é se sentir humilhada, era muito ruim ver ele recebendo um dinheiro que eu também tinha direito." Após lutar junto à Samarco, Camila acabou sendo alojada na casa junto com o já ex-companheiro, e recebendo o auxílio mensal comum a todos os oito mil afetados pela tragédia na bacia do Rio Doce.

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Passaram-se meses em que ela pensou diversas vezes em se matar, apesar do apoio de psicólogos e assistentes sociais bancados pela mineradora a serviço da prefeitura. Isso até o episódio narrado no início deste texto, que exigiu a intervenção do promotor de Mariana, Guilherme Meneghin.

O MP, com o auxílio de um sociólogo, atendeu vários casos de crise entre casais ou familiares envolvendo o cartão e o benefício ser concedido ao homem, e não a mulher. — Guilherme Meneghin

"O MP, com o auxílio de um sociólogo, atendeu vários casos de crise entre casais ou familiares envolvendo o cartão e o benefício ser concedido ao homem, e não a mulher, mas no caso de Camila, tivemos que apelar à Justiça, devido a gravidade", explica Meneghin.

Consta no relatório do MP que "mesmo alertada, a Samarco recusou-se a considerá-la atingida. Concluiu-se que o caso somente chegou a essa situação de conflito por causa da omissão da empresa". Após a intervenção na Justiça, Camila teve, enfim, acesso ao salário mínimo, cesta básica e adicional de 20% no pagamento para cada dependente. Os R$ 20 mil que Pereira deveria dividir com ela, no entanto, nunca foram pagos e Camila não espera recuperar. "Ele gastou tudo com porcaria", lamenta.

A Samarco agiu com irresponsabilidade, repassando o cartão e a chefia da família para a homem, ao contrário do que recomendamos. — Guilherme Meneghin

O caso de Camila, segundo o MP, é único em sua gravidade, mas está longe de ser uma exclusividade depois da tragédia. O promotor Meneghin conta que somente no município de Mariana, 345 cartões de compensação foram distribuídos às famílias atingidas em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Destes, ele calcula que em 20% dos casos a Samarco "agiu com irresponsabilidade, repassando o cartão e a chefia da família para a homem, ao contrário do que recomendamos. Assim, ao menos metade destes casos geraram problemas onde tivemos que intervir", relata o promotor, afirmando ainda que na maioria dos casos a simples passagem do cartão para o nome da mulher foi suficiente para resolver a crise instalada.

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Promotor Público de Mariana, Guilherme Meneghin aponta que os casos de conflito por "irresponsabilidade da Samarco" podem passar de 1500. Foto: Gustavo Basso.

O promotor aponta ainda que, após repassar os cartões às comunidades afetadas em toda a bacia do Rio Doce, o potencial de haver centenas de casos exigindo intervenção pode ser muito grande. "Nós temos dados apenas de Mariana, que é onde agimos, mas cerca de oito mil cartões de compensação foram repassados entre Minas Gerais e Espírito Santo — se seguirmos o padrão de 20% de casos, temos 1.600 potenciais crises geradas pelo descumprimento de uma recomendação da qual a empresa é, sim, responsável", relativiza Meneghin.

A VICE teve acesso a um documento redigido pelo movimento Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, um grupo formado por mais de 40 entidades que busca reverter os impactos socio-ambientais causados pelo que eles chamam de maior crime da mineração brasileira. No documento, o grupo que tem percorrido todo o Rio Doce informa: "Nem todos atingidos estão recebendo os ressarcimentos acordados, com destaque para as mulheres", e denuncia ainda "violências física, sexual, psicológica e moral sobre estas atingidas".

Luiz Jardins, professor de geografia da UERJ, faz parte de um grupo de pesquisadores sobre mineração que entrevistou dezenas de pessoas em diferentes visitas a Mariana e outras regiões de Minas Gerais para a elaboração de um relatório sobre a tragédia. Em uma das visitas, foi abordada a crise gerada pela transferência da gestão do dinheiro, das mulheres para os homens, tendo como exemplo o caso de uma ex-moradora de Bento Rodrigues.

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"Eu não acho difícil que hajam inúmeros casos semelhantes em comunidades ribeirinhas, com grupos de pescadores em que geralmente há uma maior geração de renda por parte dos homens, enquanto as mulheres gerenciam o lar", analisa ele, apontando um outro problema não exclusivo destas famílias, mas que em face da tragédia ficam mais visíveis: a falta de reconhecimento oficial do trabalho exercido pelas mulheres, seja por trabalhos informais, artesanato, agricultura ou mesmo a responsabilidade pelo cuidado da família.

Segundo a Samarco, "se em algum caso identificam o marido como chefe de família, o cartão [de auxílio] será em nome dele". A assessoria da mineradora explica que os casos com intervenção da Justiça para reconhecer a mulher como chefia familiar tinham, inicialmente, o homem considerado como responsável pelo núcleo familiar levantado pela empresa.

Isabel Aparecida* teve de brigar por meses para sua atividade como carroceira ser reconhecia como geração de renda pela Samarco. Foto: Flavio Freire/VICE.

Isabel Aparecida* era proprietária de uma casa em Bento Rodrigues cujo registro estava em seu nome, apesar de morar em outra casa com o marido. No imóvel registrado em seu nome moravam o filho, uma filha, o genro e o filho do casal, que tinham todas as despesas pagas pela própria Isabel com o dinheiro ganho com o transporte de lenha e estrume em uma carroça.

Quando o "tsunami" de lama da barragem de Fundão destruiu as duas casas, Isabel não foi considerada pela Samarco chefe da família ou geradora de renda, nem sequer responsável pelo sustento de uma família que vai além da sua. "O meu genro nunca fez nada, nem casou com minha filha. Ele foi ficando na minha casa e eu deixei porque ela estava grávida, mas ele nunca contribuiu com nada", comenta, sem esconder o incômodo: "Hoje já nem nos falamos".

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Após muito brigar com a Samarco — "toda semana eu vinha aqui no escritório deles reclamar, eu corro atrás!" —, Isabel conseguiu o reconhecimento da sua renda e o direito ao salário mínimo, ainda que recebido no cartão emitido em nome do marido. Já a crise com o genro se estendeu; seu filho ficou como beneficiário do cartão, que considera a irmã e o cunhado apenas como dependentes, mas entregou à mãe o controle das finanças.

O genro, nomeado chefe da família a contragosto de Isabel, reclamou da suposta ingerência nas contas. "Hoje já consegui até passar a chefia da família para meu filho, mas como meu genro é muito encostado, ainda nem sabe", conta. "Ele não bota um centavo na casa; nós escutamos falar muito de homens que passaram a beber e consumir drogas, mas eu não sei se é o caso."

Letícia Oliveira, membro da coordenação estadual do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) em MG, reforça a situação de desigualdade. "As mulheres foram as mais atingidas, muitas passaram a ser dependentes dos maridos, pois os cartões com verba de manutenção são destinados ao chefe da família, desconsiderando a mulher."

*O nome dos personagens foram modificados para preservar suas identidades.

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