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Um novo banho de sangue nas prisões brasileiras será inevitável, apontam especialistas

Com mais de 100 presos mortos na primeira semana do ano, estudiosos apontam os problemas que as prisões superlotadas brasileiras sofrem com o acirramento da disputa entre facções.
Foto: Beto Martins

A primeira semana de 2017 no Brasil chegou ao fim com um saldo de 102 presos mortos dentro do sistema carcerário nacional. O número representa 26,9% de todas as mortes registradas dentro de unidades prisionais em 2016 no país, que foram de ao menos 379.

Foi no dia 1ª de janeiro que tivemos notícia da maior chacina promovida exclusivamente por presos na história do país. O número de mortos (60) ficou abaixo somente dos 111 presos assassinados pela Polícia Militar, em 2 de outubro de 1992, no que ficou conhecido como massacre do Carandiru.

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A briga pelo controle do tráfico de drogas em Manaus teria motivado as mortes de 60 supostos membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) por rivais do grupo Família do Norte (FDN). A chacina ocorreu dentro do presídio Anísio Jobim, durante motim que durou por aproximadamente 17 horas.

Na madrugada do dia 6, ao menos 31 presos também foram mortos na penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Bela Vista, capital de Roraima. Alguns corpos foram decapitados e outros desmembrados.

Os mortos em Roraima, por sua vez, integrariam as facções Comando Vermelho, que se originou no Rio de Janeiro, e da FDN. A suspeita é de que a chacina em Bela Vista tenha sido uma retaliação do PCC à carnificina ocorrida em Manaus. Uma foto, que teria sido feita no dia da rebelião, mostra o seguinte texto, escrito com sangue no chão: "FDN e CV. Extermina. Quem manda aqui é o PCC. Sangue se paga com sangue".

"FDN e CV. Extermina. Quem manda aqui é o PCC. Sangue se paga com sangue". Foto: Reprodução

Em coletiva de imprensa, o ministro da Justiça Alexandre de Moraes refutou a possibilidade de uma retaliação promovida pelo PCC. Ele resumiu a chacina a um "acerto interno de contas".

Uma nova rebelião ocorreu dia 8 em Manaus. Durante o motim na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, ao menos quatro detentos teriam sido mortos — três decapitados e um por asfixia. Na manhã do mesmo dia, três corpos foram localizados em um matagal ao lado da penitenciária Anísio Jobim, onde ocorreu a primeira rebelião do ano.

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O Ministro da Justiça autorizou, ainda no dia 8, o envio de apoio federal aos governos do Amazonas, Rondônia e Mato Grosso. O pedido foi feito pelos três estados, informou a assessoria do Ministério da Justiça.

O ministério acrescentou ainda que, no dia 17, o ministro irá se reunir com os secretários de Segurança Pública e Assuntos Penitenciários de todo o país. Serão debatidas medidas imediatas para combater a crise do sistema carcerário brasileiro.

De 2000 a 2014, o número de presos no Brasil saltou de 233 mil para 622 mil no final de 2014.

A VICE questionou o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) sobre o número de rebeliões registradas no Brasil no ano passado, além da quantidade de mortes ocorridas em cada motim. No entanto, o órgão, ligado ao Ministério da Justiça, se limitou a informar que as informações referentes à demanda constam no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2014.

Segundo o documento, 565 mortes violentas foram computadas no primeiro semestre de 2014 dentro de unidades prisionais. Os dados não consideram os óbitos de São Paulo e Rio de Janeiro, que não enviaram informações ao estudo.

No documento, inclusive, não há o número de rebeliões ocorridas durante o período requisitado pela reportagem. Inclusive, a palavra "rebelião" não é mencionada em nenhum momento nas 147 páginas do relatório.

Os dados, porém, dão conta da explosão carcerária no país. De 2000 a 2014, o número de presos saltou de 233 mil para 622 mil no final de 2014. O estudo informa também que a população encarcerada ocupa o espaço destinado a 376.669 detentos, estourando e muito o limite de vagas disponíveis.

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Plano Nacional de Segurança

Após as chacinas no presídio Anísio Jobim, no Amazonas, e na penitenciária agrícola Monte Cristo, em Roraima, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes anunciou, no último dia 5, um novo Plano Nacional de Segurança.

Segundo o ministro, o plano foca na integração, coordenação e cooperação entre Governo Federal, Estados e a sociedade. "Entre os pontos principais da proposta, estão a modernização do sistema penitenciário e o combate integrado às organizações criminosas. Também figuram como prioridades a redução do feminicídio e violência contra a mulher; a diminuição de homicídios dolosos e o combate integrado ao tráfico de drogas e armas", diz trecho de nota.

O ministro Alexandre de Moraes enquanto anunciava o Plano Nacional de Segurança. Foto: Agência Brasil

O jurista Luiz Flávio Gomes vê com ceticismo a proposta anunciada pelo ministro Alexandre de Moraes. "Plano Nacional de Segurança já foi anunciado nos governos FHC, Lula, Dilma e agora Temer. Ou seja, anunciam uma coisa e, depois, não a concretizam. Não tem nada de concreto e imediato no que foi até agora proposto".

O jurista acrescentou que criminosos "não violentos" são submetidos ao poder das facções criminosas e por isso perdem a possibilidade de se ressocializarem. "Como o Estado não age dentro dos presídios, as facções aumentam o número de seus soldados", argumenta Flávio.

"Os inimigos fazem (seus rivais) comerem orelhas e olhos de aliados antes de todos serem mortos." — Agente penitenciária

Uma agente penitenciária da grande São Paulo, que não quis ser identificada temendo represálias afirmou que "quando começa uma guerra (entre criminosos) agentes não podem fazer nada. Os profissionais do sistema (penitenciário) geralmente não contam com o apoio da diretoria (das unidades)".

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A agente que trabalha há 25 anos no sistema carcerário de São Paulo afirmou nunca ter visto uma situação como a ocorrida nos presídios da região Norte do país. "Como dezenas de funcionários vão dar conta de milhares de presos?", questionou.

Imagem de presos mortos violentamente durante o massacre de Manaus. Foto: Reprodução

Vídeos aos quais a VICE teve acesso mostram presos do Anísio Jobim com cabeças, orelhas e olhos arrancados pelos rivais. "Os inimigos fazem (seus rivais) comerem orelhas e olhos de aliados antes de todos serem mortos. Sei de casos em que chegaram a assar numa churrasqueira os órgãos dos inimigos", relata a agente ouvida pela reportagem.

Em um dos vídeos que a VICE teve acesso, presos usam facas, abrem o tórax dos inimigos, arrancam os corações dos rivais e jogam o órgão dentro de baldes. "Isso aqui (mostra o balde) é tudo PCC", diz a voz do "cinegrafista".

A agente informou também que as facções "concorrentes" do PCC nutrem um "grande ódio" pelos membros do primeiro comando, por conta do esquema agressivo de negócios da organização criminosa paulista. "Quando matam alguém do PCC, geralmente ocorrem comemorações".

A agente crê que podem ocorrer futuras retaliações por parte da facção paulista, motivadas por uma eventual "manifestação de força".

 "A FDN é mais forte que o PCC na região Norte e, por isso, resolvem as coisas da forma que as coisas por lá são resolvidas: na faca" — Jorge Lordello, Dr. Segurança

Sobre a chacina do dia 1ª em Manaus, o especialista em segurança pública e privada Jorge Lordello, o Doutor Segurança da RedeTV!, afirmou que a brutalidade das execuções seria um aspecto cultural. "Até onde sei, a FDN é mais forte que o PCC na região Norte e, por isso, resolvem as coisas da forma que as coisas por lá são resolvidas (ilicitamente): na faca. Não posso prever, mas imagino que o PCC não vá retaliar a facção rival, que aparentemente usou a violência para facilitar a fuga de alguns presos (segundo divulgado, mais de 180 detentos fugiram da unidade prisional do Amazonas durante a rebelião) ".

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O jurista Luiz Flávio Gomes pensa diferente. Afirmou que a situação nos presídios brasileiros pode ficar pior do que já é. "Estamos caminhando para o colapso total.  Os presídios hoje são o Brasil em miniatura. O país passa pelos mesmos problemas: o crime que manda, não há respeito à Lei, cada um faz o que bem entende".

"A bandeira branca caiu" — antropóloga Karina Biondi

A antropóloga Karina Biondi, autora de Junto e misturado: uma etnografia do PCC, disse que "quando mais se aprisiona pessoas, mais se fortalece as facções criminosas".

Acrescentou que em São Paulo imperava a "bandeira branca", impedindo que mortes se realizassem dentro do sistema prisional. "Parece que a bandeira branca caiu, ao menos fora de São Paulo. Sem isso, não há nada que impeça a violência. A chance de ocorrer mais mortes é grande".

Karina ainda disse que o PCC não é tão organizado com relação aos "salves" (mensagens) remetidos por supostos membros da facção. "A autenticidade dos 'salves' não pode ser confirmada, pois membros da facção prezam pelo anonimato".

"Já vivemos uma guerra não declarada" — especialista em segurança pública Cristiano Menezes

O professor de Segurança Pública Cristiano Menezes,  Universidade Policial (Unipol), doutor em criminologia pela universidade de Oxford e especialista em direito constitucional, afirmou que o controle social, por parte do Estado, "não tem mais freio". "Já vivemos uma guerra não declarada. Enquanto o Estado não declarar guerra contra os criminosos não haverá solução".

Acrescentou não crer que a educação mude as coisas na atual realidade em que vivemos. "Como não foram tomadas medidas anteriores, com relação à educação das pessoas, seria necessário usar o que chamamos na criminologia de controle formal (porrada)".

Mas o especialista não acredita nas duas medidas expostas e afirmou que um "banho de sangue" será inevitável – tanto com a intervenção do governo, ou não. "Enquanto o Estado for condescendente com atitudes e deixar o crime crescer de forma desordenada, alcançando todas as esferas da sociedade, continuaremos reféns de um grupo (criminoso) que há de dominar a situação".

Finalizou afirmando que o PCC vai "exterminar" toda a FDN. "O PCC fez uma aliança nacional e internacional. Vão morrer todos que se opõem a eles".

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