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Primeira conferência de cultura nerd, pop e geek realizada por e para jovens de quebrada do Brasil. Foto: Carol Lima/VICE.

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Entretenimento

Por dentro do Perifacon

A primeira conferência de cultura nerd, pop e geek realizada por e para jovens de quebrada do Brasil reuniu mais de 4 mil pessoas.

Neste domingo (24), palmas, gritos e comemorações de quatro moleques que aparentavam não ter mais de 12 anos ecoavam nos corredores do quinto andar da Fábrica de Cultura do Capão Redondo. Um dos cinco locais construídos pela Secretaria de Cultura de São Paulo para promover atividades gratuitas para os moradores da região, naquele dia abrigava a Perifacon — o programa de domingo para Rian, Henrique, Guilherme e Jonathan. O quarteto trocou o futebol na rua de cima pelos tabuleiros do jogo de RPG Not Clone. “É a primeira vez que a gente joga esse jogo. Tamo curtindo pra caramba, tia”, contaram.

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Naquele dia, todos os sete andares do prédio estavam reservados para primeira conferência de cultura nerd, pop e geek realizada por e para jovens de quebrada do Brasil -- o evento reuniu mais de 4 mil pessoas e teve uma superlotação já antes do horário de almoço. A programação contou com nove horas de games, exposição de arte, HQs, banquinhas, sessões de autógrafo, debates, apresentação de dança K-pop e uma competição de Cosplay.

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Os meninos jogando “Not Clone” na sala dedicada à jogos RPG. Foto: Carol Lima/VICE.

Desde setembro do ano passado, Igor Nogueira, 24, e mais seis amigos estão idealizando esse evento. O que era pra ser uma feira de exposição de quadrinhos, acabou virando um mega encontro de cultura pop periférica. “A ideia veio numa conversa de rolê, em que estávamos falando sobre como é difícil as pessoas consumirem cultura geek e pop nerd porque é sempre longe e muito caro. Foi daí que nos reunimos pra fazer uma conferência nerd na nossa quebrada.”

Para Igor, a correria toda se tornou mais difícil ainda por terem que encarar a dinâmica de suas próprias vidas. Só quem mora longe dos centros urbanos e está no corre o dia inteiro sabe como é difícil se locomover e arranjar um tempo para organizar projetos paralelos. “A gente só podia se encontrar das 22h às 5h, então viramos noites pra isso”, relembra o designer gráfico.

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“Cada um juntou o que sabia pra construir a Perifacon”, explica Igor Nogueira, um dos organizadores do evento. Foto: Carol Lima/VICE.

Para ele, essa é a realização de um sonho coletivo. “É muito importante pra gente ter um evento de cultura nerd e conseguir fazer isso na quebrada. Não é só rap e funk. A galera também produz cultura pop e nerd.” Já para os artistas que produzem isso todos os dias e não tem tanta oportunidade para expor nessas feiras mais elitizadas, foi um grande marco.

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Anderson Meneses, 27, é co-fundador da Agência Mural, veículo que se propõe a desestereotipar a visão da mídia sobre as periferias, e disse que a Perifacon tem a importância para as comunidades que a Semana de Arte Moderna já teve pro país.

Na visão do produtor de conteúdo e especialista em quadrinhos, LOAD, o Perifacon é um sonho que todo nerd de periferia já teve. “Vendo que a molecada que tá aqui tem condições de estar aqui sem precisar pagar, só por vontade mesmo, e saber a importância disso, é como se eu estivesse pagando uma dívida pro LOAD do passado.”

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LOAD expôs seus quadrinhos e ofereceu sessão de autógrafos no evento. Foto: Carol Lima/VICE.

O evento contou com centenas de artistas apresentando e vendendo seus trabalhos, que antes só tinham espaço na internet.

“Tive que começar a olhar pra mim como referência para a arte”

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Lucas Lima no “beco dos artistas”, espaço dedicado para exposição de trabalhos de arte. Foto: Carol Lima/VICE.

Lucas Lima, 25, não lembra a primeira vez que começou a desenhar. “Provavelmente já antes de começar a escrever”, conta entre risos. Ele sempre costumava copiar desenhos de super-heróis na TV, mas a falta de representação o frustrava, até o dia em que olhou no espelho. “Eu fiz faculdade de artes visuais e pesquisando muito sobre história da arte, eu vi que não estava em nenhum lugar. Eu vi que tinha que ir pra outras inspirações, então eu comecei a olhar pra mim.”

Além de fazer desenhos no estilo de xilogravura, que dá uma sensação diferente para a tonalidade da pele de cada personagem, ele também faz quadrinhos. No seu principal, Lucas inventou o “Vazio”. Essa entidade conta um pouco sobre a vivência de um jovem negro na periferia. “É aquela ideia de você não é nada, mas ao mesmo tempo você é tudo naquele espaço.”

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Coletivo que forma jovens para descentralizar a arte

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Da direita para esquerda: Camila Ribeiro, Gustavo Domingues e Andressa Mota, fundadores do coletivo Criart. Foto: Carol Lima/VICE.

No começo do ano passado, Camila Ribeiro, 25, Gustavo Domingues, 20, e Andressa Mota, 18, tiveram a ideia de criar uma formação gratuita de arte para uma galera do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. A ideia era pegar lápis, algumas folhas de papel e reunir pessoas de 16 a 20 anos que tinham interesse nessa área para ensiná-los sobre design gráfico e storytelling de quadrinhos.

Para a primeira turma, eles receberam 30 inscritos, que teve como resultado duas zines inspiradas em seus bairros e suas experiências nesses espaços. O Criart ainda faz alguns trabalhos de design gráfico e gerenciamento de mídias sociais pra poder bancar a segunda leva de estudantes do M’Boi Mirim, região em que foi fundado o coletivo.

Pessoas pretas fazendo jogos para pessoas pretas

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Raquel Motta desenvolveu o jogo, que foi inspirado no livro “Angola Janga: Uma história de Palmares”. Foto: Carol Lima/VICE.

Raquel Motta, 23, começou a fazer faculdade de Análise de Desenvolvimento de Sistemas muito nova. Depois disso, ela virou programadora de games e desenvolveu um dos jogos que estava exposto na Perifacon. O jogo, programado por ela, conta a história de um escravizado que precisa fugir do engenho e tem como objetivo chegar até Palmares livre e salvo.

“É incrível ver a quantidade de pessoas que se interessam pelo conteúdo, porque a gente sabe que no Brasil não existem tantas pessoas pretas fazendo jogos para pessoas pretas. Então ver outras pessoas que gostam disso e se identificam é fantástico.”

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Os cosplays que lotaram a quadra do bairro

Mais pro final da tarde, como atração principal para fechar a primeira conferência nerd e pop de quebrada, a quadra lotou para torcer e admirar todos os cosplays do local. Thais Hern, 31, foi quem apresentou o concurso. Ela é gerente de conteúdo do Nigeek, canal midiático nerd voltado para o público negro. Com o evento, a carioca vê uma forte revolução no mundo geek. “Eu que frequento esse tipo de evento há dez anos, posso falar: Estar num evento na periferia é outra sensação. É algo que a dez anos atrás a gente não imaginaria ver.”

O grande ganhador foi Wellington Ferreira, que mora no Campo Limpo, pertinho da Fábrica de Cultura, e trabalha como cosplay do Pantera Negra há quatro anos. Incrivelmente parecido com o Chadwick Boseman, Wellington conseguiu levar a arquibancada a loucura com uma frase que resumiu todo o programa que foi feito pelas mãos de uma galera jovem e talentosa, para todas as crianças que estavam ali presentes. “Como o rei T’Challa disse no filme ‘temos que cuidar uns dos outros como se fossemos uma só tribo.’”

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Thais Hern, a apresentadora do concurso de cosplays. Foto: Carol Lima/VICE.

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Wellington ganhou o concurso como cosplay do super-herói da Marvel, Pantera Negra. Foto: Carol Lima/VICE.

Todo mundo que estava presente no Capão Redondo saiu com a certeza de que acompanhou o início de uma nova era para as feiras de cultura geek no Brasil. A concretização de uma ideia inovadora tomou forma na acessibilidade, no encontro e na diversão das pessoas que conseguiram estar naquele lugar sem ter o dinheiro ou a distância como impedimento.

Baseado nisso que prosperou o Perifacon: um evento totalmente independente, feito pelas mãos de uma galera jovem que conseguiu reunir um público que a indústria nunca tinha investido ou dado atenção anteriormente.

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