Lideranças das primeiras ocupações no Centro de SP falam sobre a trajetória do movimento
Edifício ocupado Wilton Paes de Almeida em frangalhos após tragédia de 1º de maio. Foto: Marcos Fantini/VICE

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reportagem

Lideranças das primeiras ocupações no Centro de SP falam sobre a trajetória do movimento

Verônica Kroll, do Fórum de Cortiços, e Gegê, do Movimento de Moradia do Centro, ponderam os avanços e retrocessos na luta por moradia digna na região central da cidade.

Depois do incêndio e desabamento do edifício ocupado Wilton Paes de Almeida, o assunto de uma política habitacional para o Centro de São Paulo retorna à ordem do dia e por algum tempo ocupará as mídias. O impacto da tragédia expõe as falhas de planejamento urbano de uma das maiores capitais do mundo. Três décadas desde as primeiras movimentações em torno da questão, e o quadro ainda segue emperrado. Prova disso é que as demandas das primeiras lideranças permanecem as mesmas. “Eu organizei a primeira ocupação no Centro de São Paulo, em 1988, já por conta dos despejos dos cortiços”, relembra Verônica Kroll, coordenadora do Fórum de Cortiços e Sem Teto de São Paulo e membro da Coordenação Executiva da União dos Movimentos de Moradia. “Eram muitos despejos, e não tinha nenhuma lei que protegesse os cortiços. Porque o cortiço não tem contrato, eram contratos de boca, um recibo do intermediário, e os proprietários despejavam as famílias na hora que bem queriam. Foi por isso que tudo começou”.

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Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, coordenador do Movimento de Moradia do Centro, liderança da União dos Movimentos de Moradia e da Central de Movimentos Populares, atua em movimentos sociais desde o final dos anos 70 e é referência dos sem teto. Ele crava que as demandas por moradias dignas no Centro para a população de baixa renda não interessam ao sistema capitalista, e incomodam especialmente a “pequena burguesia”. “É a ideologia de classes. Pobre, preto e puta tem que morar o mais distante possível. Por isso temos hoje Cidade Tiradentes, Zona Sul, que são verdadeiras cidades dentro de uma cidade que não para de crescer. E crescendo de forma desalinhada, um crescimento que chamo de inchaço. Ela só incha”.

A vitória de Luiza Erundina para o Governo Municipal de São Paulo pode ser tomada como ponto de partida para se falar da trajetória dos atuais movimentos por moradia digna organizados na cidade. A gestão 1989-92 contrapôs de forma inédita o modo com que os governos anteriores lidavam com os movimentos de moradia. As ocupações, que antes eram sempre acompanhadas de reintegrações de posse, puderam vislumbrar algum apoio para as suas reivindicações.

Uma dessas reivindicações era a construção de uma política habitacional condizente com a renda das pessoas, já que muitas famílias, após o preenchimento da ficha na COHAB, ao serem chamadas, eram informadas que a sua renda não atingia a meta para aquisição dos produtos oferecidos. A partir daí, constituem-se as premissas para a posterior formulação do Fundo Nacional de Moradia Popular – FNMP. Mas levou uma década para que os movimentos conseguissem sair das periferias e ocupar e permanecer nos imóveis ociosos da região central.

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O primeiro espaço ocupado sob a liderança de Verônica foi o antigo Casarão Santos Dumont, com 500 famílias, no dia 8 de março de 95. Esta ocupação foi uma resposta ao estancamento das ações do Governo Mário Covas [1995-98 / 98-2002], que havia prometido 10 mil moradias no Centro para resolver a questão dos cortiços, porém rejeitou todos os prédios indicados pelo movimento. “A partir daí a gente foi ocupando. Ocupamos um casarão da USP, na rua Pirineus, onde conseguimos fazer um projeto em que moraram 28 famílias. O governo desapropriou o prédio, virou o Museu da Eletricidade. Nossa ideia, no fundo, era construir quase 200 apartamentos, mas a Secretaria da Cultura e da CDHU, na época, não se entenderam”, lamenta Verônica.

Verônica Kroll em visita à obra do Projeto São Francisco (Guaianases). Imagem: Fórum de Cortiços/Divulgação

Atualmente, a luta por moradia no Centro é uma causa que os movimentos em geral tratam com normalidade. Mas no final dos anos 80, alguém de baixa renda morar no Centro era algo impensável até pelos próprios militantes, de acordo com Gegê. “Eu lembro que, quando comecei a defender morar no Centro com dignidade, o lugar onde estou, a seis minutos da Praça da Sé, quando dava 17h você não via ninguém querendo andar sozinho, porque era um deserto. Nesse deserto, nós começamos a ocupar o Grande Centro”, relata ele. “E mesmo assim, muita gente que fala hoje da luta na região, naquela época dava gargalhadas sobre a ideia. Numa plenária com 400 pessoas, mais de uma vez foi dito que eu era muito metido por defender que o povo morasse aqui”.

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Desde aqueles tempos, mesmo com a multiplicação das frentes e movimentos – são hoje cerca de 70 ocupações no Centro, tenta-se criar uma política pública para o centro da cidade: "Uma revitalização de forma adequada. Hoje, já se tem alguns programas, muito pequenos, mas tem. O que a gente quer é uma lei municipal que dê garantias, que tenha um orçamento maior para o município, que o Estado coloque dinheiro no município e o Governo Federal também. Porque o que está mais perto da população é o município. E o município de São Paulo tem um Conselho que delibera. Essas eram as nossas reivindicações, e são até hoje”, argumenta ela. As reivindicações não mudam porque os problemas ainda são parecidos, critica. “Ninguém quer nada de graça. Mas o salário das pessoas não acompanha o valor do aluguel, o problema é esse. As famílias não têm essas condições.” E acrescenta: “Hoje, as ocupações são um risco. Porque, querendo ou não, o tráfico entra e domina. É igual nas comunidades, não tem como. Perde-se a liderança lá dentro. É isso o que acontece”.

Gegê, do MMC/SP. Imagem via YouTube

Uma das propostas defendidas por Gegê para a criação de moradias sociais na região central de São Paulo é construir prédios acima de espaços que servem de estacionamento para automóveis. “Eu falei isso no governo Luíza Erundina, e até o nosso pessoal olhou pra mim e deu risada”, Gegê pragueja. “Falei isso no governo Marta Suplicy, Haddad. O Haddad disse pra mim que eu tinha toda a razão. Mas não se dá sequência em nada porque, se não, vai mexer num vespeiro onde a burguesia não quer. Por isso a cidade inchou, mas não fica caro morar no centro, é mentira. Quem diz isso é o sistema selvagem, o capitalismo. Eles não querem que o povo pobre more ali dignamente. Continuamos defendendo o direito de morar na cidade como cidadão, e não viver enquanto explorado”.

Gegê enxerga algumas distorções e falta de unidade no modo como os movimentos se multiplicaram e passaram a atuar. Ele condena, por exemplo, a cobrança de aluguel nas ocupações: “Não dá pra botar as pessoas pra dentro da ocupação e no dia seguinte começar a cobrar pra elas morarem lá. É contraditório. O problema é que o povo sempre dá um jeitinho, e assim muita gente tem vivido ao longo da história do Brasil.” Na ótica do ativista, a tragédia de 1º de maio vai resultar em “perseguição e limpeza”. “E é isso o que já estão fazendo. A resposta vai ser trágica para as famílias que hoje vegetam dentro dessas 70 ocupações. Higienização, é o que vai acontecer”.

Verônica Kroll não vai por um lado tão pessimista. “Se as lideranças souberem cobrar e a gente se unir, pode ser que saia alguma coisa”, diz, citando alguns exemplos de avanços: “Conseguimos regularizar muitos mutirões que não pagavam, da época da Luiza Erundina, pra se ter uma ideia. Conseguimos fazer as desapropriações da época do Haddad continuarem e virarem locações sociais, como era a proposta. O fundo municipal, que tinha que ter bastante dinheiro, o ano passado teve só 27 milhões. E, mesmo assim, foi feita bastante coisa. Terminou aquele Casarão do Carmo, da época da Erundina, a reforma do Riachuelo – trocou o elevador –, fez o Asdrúbal de Nascimento, tirou escola e creche que estava em cima de área contaminada. Se quer, faz. O problema é que os vereadores votam um orçamento de habitação que é ridículo pra cidade de São Paulo”.

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