Illustration of a man looking downcast and mistrustful of people around him. By Hunter French
Ilustração por Hunter French.
Saúde

Minha terapeuta negra me ajudou a aceitar minha desconfiança com brancos

Desde que um policial branco apontou uma arma pra mim, tenho dúvidas sobre minha segurança ao redor de pessoas brancas. Minha terapeuta diz que dificilmente sou o único negro com esse medo.

A verdade é que não lembro quando comecei a me sentir assim, mas lembro quando uma viatura me cortou enquanto eu voltava pra casa tarde da noite num sábado, depois de uma festa anos atrás. Lembro da arma na minha cara de 25 anos naquele bairro arborizado de Toronto. E lembro do policial me revistando atrás da minha carteira enquanto eu ficava entre me mijar e querer sumir. Levou cinco minutos para ele dizer que eu combinava com a descrição de um assaltante na área, e bem menos tempo para se desculpar comigo. Mas venho revivendo aquele dia e duvidando da segurança ao redor de brancos desde então.

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Já tentei fingir que esse evento foi só uma circunstância de azar única. Mas nos últimos meses tenho sentido mais raiva, pensando num amigo que me chamou de crioulo quando eu tinha 11 anos, e na desculpa que ele deu no dia seguinte: “É como meu pai te chama”. Ou na mulher três anos atrás que me jogou as chaves do seu carro na frente de um restaurante chique achando que eu era um valete. Comecei a listar outros brancos na minha vida – incluindo pessoas com quem tive relacionamentos – e percebi que desconfiava discretamente de todos eles.

Na minha frente numa poltrona reclinada, minha terapeuta negra concordava com a cabeça enquanto tudo isso voltava à minha mente num desabafo de 30 minutos. Ela sabia que mesmo depois de todos esses anos, tinha uma razão para ainda lembrar do policial e todos os outros momentos feios que me levaram a seguinte conclusão:

“Não confio em brancos.”

Concordei com a cabeça pra ela, porque sabemos que essa desconfiança foi herdada e pode nunca desaparecer completamente.

Tenho razões óbvias para suspeitar de pessoas brancas. Depois da minha experiência, não confio em policiais brancos armados. Não confio em brancos com boné MAGA. E não confio em brancos que votam em urnas fechadas, sabendo que enquanto muitos deles dizem não ser racistas, eles não veem problema em votar num líder racista.

Ponha a culpa no registro de gerentes brancos que desvalorizam negros financeiramente. O censo de 2016 do Canadá mostrou que minorias visíveis ainda ganhavam 81,2% do que os brancos ganhavam em 2015. Ou o fato de que brancos ainda chamam a polícia para negros de que suspeitam só por estarem seguindo seu dia, apesar do perigo de que esse telefonema possa acabar em violência e até morte.

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O ativista pan-africano de direitos civis W.E.B. Du Bois cunhou uma versão do que estou passando como “consciência dupla” – o sentimento que negros experimentam quando metade deles se ajusta aos julgamentos da sociedade branca. “Um americano, um negro; duas almas, dois pensamentos”, ele escreveu. “Duas tentativas que não se reconciliam; dois ideais em guerra num corpo negro, cuja força por si só impede que seja despedaçado.”

É a suposição que geralmente faço quando imagino que brancos usam a cor da minha pele para supor as piores coisas sobre mim. Segundo minha terapeuta, meu ceticismo na verdade é um sentimento normal, e uma das reclamações mais comuns que ela ouve de seus pacientes negros.

Quando falei com a Dra. Monnica T. Williams, diretora do Centro de Disparidades de Saúde Mental da Universidade de Louisville, ela me disse quão comum é essa minha preocupação.

“Trabalhei com uma mulher negra que também era oficial da lei, e que começou a desgostar de brancos”, ela me disse por telefone. “Foi por causa dos abusos que ela via continuamente contra pessoas que pareciam com ela.” Outra paciente dela começou a desconfiar dos brancos em sua vida até que as coisas ficaram complicadas. “O marido dela era branco. Então, como você pode imaginar, isso se tornou um problema.”

Não encontrei um consenso sobre quanto trauma é relacionado a racismo. Segundo a Academia Nacional de Ciência, é possível herdar doenças mentais através de gerações. Num estudo separado de 2015, Rachel Yehuda e seus colegas do Hospital Monte Sinai descobriram que sobreviventes do Holocausto e seus filhos mostravam evidência de metilação, um gene ligado ao estresse. A implicação é que sobreviventes de trauma podem passar isso para os filhos.

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Quando perguntei a Yehuda se isso se aplicava a descendentes de negros que experimentaram racismo e transgressões da era Jim Crow, a resposta dela foi franca: “Não vejo como essas descobertas não se aplicariam a todos os descendentes de trauma, incluindo escravidão”.

Seria irracional esperar que um coelho aja normalmente no meio de raposas. E como minha terapeuta me informou, é natural sentir medo perto de brancos que compartilham privilégios com aqueles que desumanizaram a negritude.

É impossível pra mim ignorar racismo. Não são só os brancos usando capuz branco pontudo ou os caras na Casa Branca. É o tipo de racismo mais insidioso que se esconde por trás do verniz de brancos aparentemente bem-intencionados, que elogiam negros por serem bem articulados, com a sugestão que eloquência é um obstáculo intelectual para nós, ou as pessoas agarrando suas bolsas no dia a dia, aquela coisa de atravessar a rua quando me veem. Estar cercado por essas possibilidades infinitas em muitos espaços brancos em que navego só alimenta minha paranoia.

Enquanto eu queria poder acreditar que minha pele negra não me exclui do benefício de ser considerado bom e inocente, todas as evidências apontam para o contrário. O que é diferente agora é que comecei a aceitar isso.

Dois meses depois da minha primeira sessão de terapia, ainda estou fazendo minha versão de cura colocando tudo isso pra fora sem me sentir culpado. Sei que as ações de algumas pessoas não podem ser confundidas com as ações de uma raça inteira, que não posso responsabilizar todos os brancos pelos pecados de seus ancestrais.

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Mas muitas vezes eles são cúmplices e complacentes, ou pior, ignorantes. Eles podem ignorar seu próprio preconceito, e esse é um privilégio que não tenho como um homem negro vivendo neste país. É difícil confiar em pessoas que, quando o assunto raça surge, podem dizer que não veem cor ou não são políticas. Ainda assim, depende de mim dar a pessoas que percebem seu privilégio a chance de ser confiáveis, mesmo se a história torna isso inacreditavelmente difícil.

Meu ídolo literário e ensaísta mestre James Baldwin escreveu em seu livro de 1963 The Fire Next Time que o negro não pode arriscar supor que brancos valorizam sua própria humanidade sobre a significância da cor de sua pele. “Isso leva, de maneira imperceptível mas inevitável, a um estado mental que, tendo há tanto tempo aprendido a esperar o pior, a pessoa acha muito fácil esperar o pior.”

Enquanto eu ia para uma sessão de terapia recentemente, meus olhos atraíram a atenção de um policial branco enquanto eu andava sozinho numa calçada de Toronto. Respirei fundo, relaxei os olhos e endireitei a coluna, aí ensaiei o que faria – me mover devagar, sentir minha identidade no bolso direito, ser respeitoso – enquanto ele andava na minha direção. Ignorei o impulso de olhar para a arma dele com desconforto e optei por sorrir e concordar com a cabeça. Ele sorriu ao passar por mim para inspecionar um parquímetro, e me senti livre. Mas notei que estava sem fôlego.

Eu segurei a respiração o tempo todo.

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