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Ilustração por Cleber Santos / VICE. 
Música

Como o novo funk proibidão reflete a crise de segurança do Rio

Prisão do MC Poze do Rodo joga holofotes sobre a fase atual do funk narcocultural, com ramificações que vão até o trap.

No último fim de semana, o Marlon Brendo Coelho Couto Silva, mais conhecido internet afora como o MC Poze do Rodo, foi preso em Sorriso, interior do Mato Grosso, acusado, entre outras coisas, de fazer “apologia ao crime” durante a sua apresentação na cidade. Poze, que segue preso, é talvez o mais famoso representante de um estilo temático do funk que tem passado por um intenso ressurgimento no último ano: o proibidão.

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Em 2010, o MC Tovi tomava emprestado a melodia da “Fugidinha” de Michel Teló para criticar o governador do Rio de Janeiro e combater o projeto de Unidades de Polícia Pacificadora em “Não Entra Aqui a UPP”: “Eu tô revoltado com Sérgio Cabral/ Sem o baile aqui não vai ficar legal”. No mesmo ano, o MC Dido também deixava claro o seu repúdio com “UPP Filha da Puta Sai do Borel”. Em “Bala na Dilma Sapatão” (2011), o MC Vitinho atacava a ex-presidente, o governador Sérgio Cabral e ainda desafiava a Força Nacional: “Não vamo entregar assim, desentoca o arsenal/ É bala no viado do Sérgio Cabral/ Tomaram o nosso quartel general, que era o Complexo do Alemão/ É bala na piranha da Dilma sapatão”.

Músicas como essas dos MCs Tovi, Dido e Vitinho indicavam uma transformação no proibidão, o subgênero do funk que reflete sobre as benesses, os dilemas e o sofrimento na vida do crime e as consequências sociais da política de guerra ao tráfico. No ano da invasão do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro (na Penha), o proibidão refletia o acirramento do embate entre o Estado e facções nos morros cariocas. Diminuíram as letras com ataques às facções inimigas, substituídas por críticas ao Estado. “A partir de 2010, os ataques a agentes do Estado se tornam mais diretos e, às vezes, nominais. Essa mudança está menos associada à Chacina do Pan ou ao Massacre do Alemão (2007) do que à Guerra do Rio (2010)”, indica o musicólogo Carlos Palombini, pesquisador do proibidão carioca.

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Na sequência, o proibidão foi perdendo força devido a uma combinação de motivos, entre eles a guerra do Estado contra o Comando Vermelho, a suspensão dos bailes nas comunidades, os processos sofridos por alguns MCs e prisões ilegais de outros, a transferência do centro econômico do funk para São Paulo e a emergência da ostentação e expansão do pop funk. “Embora ainda se encontrem vozes, letras e produções musicais à moda antiga, mudam, do “Rap do Parapapá”, em 1994, aos dias de hoje, os meios de produção e distribuição; mudam os bailes; muda o mercado. O proibidão perde prestígio, visibilidade e, sobretudo, consistência estilística”, contextualiza Palombini.

Rebelde e contra-hegemônico por definição, o proibidão tem discurso eminentemente político. Se em 2010 os MCs cantaram o enfrentamento direto da favela com agentes oficiais do Estado (representado pelo BOPE, exército, PM e políticos), em 2019 o proibidão reflete a complexificação dos problemas de segurança pública e da guerra às drogas no Rio de Janeiro frente à expansão das milícias — que passaram a disputar o tráfico e o domínio territorial de favelas ao lado das facções.

Quase dez anos depois das invasões do Alemão e Vila Cruzeiro, o proibidão está conquistando destaque novamente. Preso no último sábado (28) por apologia ao crime e associação ao tráfico, o MC Poze do Rodo estourou na internet em outubro de 2018 com “Homenagem Para os Irmãos do Rodo”, música que exalta a memória dos que “morreu metendo bala pelo Comando Vermelho” e que “na favela do Rodo fez o seu papel”. Hoje o som bate oito milhões de visualizações no YouTube. Ex-traficante, Poze passou a cantar a partir do sucesso inesperado dessa música, construindo uma carreira. Atualmente canta não só no Rio, mas também em cidades como Minas Gerais e Natal. “Comecei [a cantar] recente. Era da vida errada, aí perdi uns amigos e fiz essa música de homenagem e bombou. Então tô há um ano rodando o Brasil todo como MC”, revelou em entrevista ao KMT Funk. Desde então, ele vem acumulando hits e colocou o proibidão novamente em alta. Só a sua apresentação na Roda de Funk ultrapassou os 3,5 milhões de views, tornando-se o vídeo mais visto do canal, referência do funk na favela.

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O sucesso de Poze impressiona, mas não é um fenômeno isolado. Ele está na ponta de um ressurgimento do proibidão, que se atualiza e volta a tomar vitalidade com artistas de uma nova geração, como o trapper Meno Tody, o MC Pele Johnson, o MC PQD e o MC Urubuzinho. Espécie de “Poesia Acústica” do proibidão, o Proibiza consolidou este movimento ao reunir os novos talentos Poze e PQD com os veteranos do subgênero Vitinho, Orelha e Juninho da 10.

Cria de uma comunidade historicamente dominada pelo Comando Vermelho que foi dominada pelas milícias (a favela do Rodo, no bairro de Santa Cruz), Poze é o MC que mais ataca milicianos em suas letras, como “Ai Nosso Fuzil Tá Demais e os Milícia Sai Correndo”, “Avisa Que a Tropa é Comando Vermelho” e “Elenco do Batô”. Nesta última, ele desafia explicitamente: “Nós tem AK, meiota e G3/ Milícia, se brotar, nóis vai matar vocês”. Filiado ao Terceiro Comando Puro, o MC Urubuzinho é o “rival” de Poze, mas suas músicas também retratam as milícias como um dos principais inimigos.

Outros artistas, embora não toquem explicitamente no tema das milícias, expõem aquilo que artistas e militantes das favelas como MV Bill, Celso Athaíde, Praga e José Junior (do AfroReggae) chamam de “narcocultura”. Isto é, como o comércio de drogas ilícitas atua como elemento da identidade social das favelas, especialmente da juventude — independentemente da participação ou não no tráfico. Classificando-se como “trapstar do CV” na música “Bailão”, com 7 milhões de views, Meno Tody fala sobre a rotina de um trabalhador do tráfico, entre plantões, armas, rivalidades com facções, preconceitos, a necessidade de sustentar a família, as táticas de sobrevivência no cotidiano violento, a sensação de poder e, enfim, a esperança de que “a música me tira disso ainda” e realizará o sonho de “mudar de vida”. Já o MC Pelé Johnson evidencia a escalada da violência na linha de frente na guerra ao tráfico em letras como “Joguei Granada”, uma versão de “Cansei de Farra”, do Dilsinho. Tudo isso toma um outro contexto diante da relação incestuosa entre o Estado e o poder paramilitar das milícias, que vem aumentando seu poder bélico e influência política nos últimos anos.

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O CRESCIMENTO DAS MILÍCIAS

Em 2009, o cenário de segurança pública do Rio de Janeiro registrava uma inversão. Naquele ano, as milícias passavam a ocupar mais favelas do que o Comando Vermelho, a maior facção da cidade. Dados levantados pelo Núcleo de Pesquisa das Violências da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostravam que quadrilhas de policiais, bombeiros e militares controlavam 400 áreas no Rio, contra 393 do Comando Vermelho — apenas 27 das comunidades da cidade (2,8%) estavam livres do poder de traficantes ou milicianos. Nessa disputa por territórios, o mais atingido pelas milícias foi o Comando Vermelho, que viu seu domínio de metade das favelas do Rio cair para 40,8%.

O governo, no entanto, ignorava o crescimento das milícias. Das 13 Unidades de Polícia Pacificadora instaladas até dezembro de 2010, apenas uma estava em área de influência de milicianos. A maior parte fora instalada em áreas do CV, que já havia perdido territórios para a expansão das milícias. Questionada sobre essa disparidade, a cúpula da Secretaria Pública avaliou que o combate às milícias não dependia das UPPs, bastando apenas investigar e prender os líderes dos grupos paramilitares para enfraquecê-los. “Essas pessoas têm endereço, família, responsabilidade familiar. Com investigação, liberando a polícia dessa guerra do tráfico, a gente controla as milícias talvez sem a necessidade de ocupação física da polícia”, afirmou o superintendente de Planejamento Operacional da secretaria, Roberto Alzir, à Folha de S. Paulo.

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A secretaria parece ter esquecido que o tráfico de drogas é um mercado e, como em todo mercado, existem concorrentes. Se o Estado atacava com muito mais agressividade uma firma específica do varejo de substâncias ilícitas (o Comando Vermelho), era presumível que outras firmas concorrentes iriam se beneficiar. Em um texto profético publicado em 2011, a socióloga Vera Malaguti Batista, especialista em criminologia e política criminal, questionava: “Se as UPPs não vão acabar com o tráfico de drogas, quem vai dominar a venda de drogas no Rio de Janeiro?”. A resposta está bem clara hoje: as milícias. “Se a milícia já tinha algumas atividades como venda de gás, gato net, transporte alternativo, por que as pessoas achavam que a polícia não ia entrar para o tráfico? É óbvio que a milícia ia acabar disputando com o tráfico e é o que está acontecendo, com algumas resistências de algumas firmas ou outras”, explica a antropóloga.

No dia 14 de maio de 2008, um repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal O Dia que realizavam uma reportagem sobre o tema foram torturados por 7h30 em Realengo. Em resposta, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito com objetivo de investigar a ação de milícias no estado. Presidida por Marcelo Freixo (PSOL), a “CPI das Milícias” indiciou mais de 200 pessoas e levou à prisão do deputado estadual Natalino Guimarães e do vereador Jerominho, acusados de chefiar o clã paramilitar então conhecido como Liga da Justiça. A CPI mostrou as conexões da milícia com a esfera política, mas até então não havia nenhuma menção ao tráfico de drogas. Anos depois, milicianos entraram no mercado, aproveitando o enfraquecimento do Comando Vermelho e estabelecendo aliança com outras facções — ou firmas do varejo de drogas, para usar um termo técnico.

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Assista ao nosso documentário sobre o Funk 150BPM:


“Desde 2012 nós identificamos que a milícia estava se associando, na verdade tomando o tráfico de uma facção chamada Terceiro Comando Puro (TCP), que é inimiga do Comando Vermelho. Tivemos a apreensão de um carregamento de skunk prensado em que no invólucro estava o símbolo do TCP e o símbolo do Batman, que é o que caracterizava a milícia de Santa Cruz, então chamada de Liga da Justiça. O TCP tinha interesse em ter proteção da milícia contra o CV e, por outro lado, a milícia ganha muito dinheiro com venda de drogas”, diz Luiz Antônio Ayres, promotor de justiça do Ministério Público do Rio.

Por crença sincera ou má fé, políticos cariocas divulgaram a ideia de que as milícias eram um tipo de combate ao tráfico. Ou pelo menos um problema menor. Cesar Maia dizia que o tráfico havia transformado os morros da cidade em praça de guerra ao ponto em que os policiais não podiam mais morar lá dentro. Esses policiais ameaçados de despejo é que, segundo o prefeito, originaram as milícias. Em 2006, no seu terceiro mandato como prefeito, ele afirmou: “As autodefesas comunitárias são um problema menor, muito menor do que o tráfico”. No mesmo ano, o prefeito Eduardo Paes, candidato a governador, elogiou as ações da milícia de Jacarepaguá, dizendo que elas recuperaram “a soberania nacional” em certos territórios.

Acontece que milícias agravaram a crise de segurança pública do Rio de Janeiro. “As milícias têm a característica de um câncer”, define o promotor Luiz Antônio Ayres. “Um câncer são células do organismo que se rebelam e começam a atacar o próprio organismo. A milícia tem esse caráter. Policiais, agentes de segurança pública de dentro do próprio Estado começam a agir de forma dissonante de suas funções por conta própria e começam a atacar o próprio Estado e a própria sociedade. Em paralelo, eles têm uma característica viral: a capacidade de adaptação aos mecanismos de repressão, ao território, às circunstâncias. Isso torna as milícias um problema muito difícil de ser combatido”. A milícia de Santa Cruz, por exemplo, passou a enterrar corpos no cemitério oficial da cidade em vez de cemitérios clandestinos. “No cemitério clandestino, vamos com a escavadeira, abrimos e encontramos os corpos. No cemitério oficial, não dá para fazer isso. Não posso pedir um mandado de exumação coletivo. É muito mais evoluído que o cemitério do tráfico”, afirma.

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A relação entre milícia e Estado transparece no levantamento do UOL que mostra que polícias do Rio mataram 881 pessoas no primeiro semestre deste ano — nenhuma delas em área de milícia, todas em zonas do tráfico e a maioria do Comando Vermelho. “É um indicativo de que a milícia conta com apoio de setores corruptos dentro da polícia, não há nenhuma dúvida. Isso quando não são policiais que estão nesse nível superior da milícia, nesse andar de cima que nós não sabemos ainda”, analisa Ayres. Já para Vera Malaguti Batista, a estatística revela “uma conivência entre as áreas de milícia e a gestão da área de segurança pública no Rio de Janeiro. “Mesmo que alguns personagens possam não ter se dado conta (não estou querendo sugerir nenhuma teoria da conspiração), a prática é essa mesmo: favorecer a ocupação e sempre focando no CV. O discurso é de que o CV é mais violento, mas as outras firmas têm uma relação maior com as milícias ou mesmo com a polícia oficial”.

RODO, ANTARES E CIDADE DE DEUS: GUERRA CONTRA O CV

O bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, virou palco de um dos maiores conflitos entre a milícia e o Comando Vermelho. É lá que estão as favelas do Rola (que foi rebatizada por traficantes como Rodo) e do Antares, historicamente dominadas pelo CV e que recentemente foram tomadas pela milícia conhecida como Bonde do Ecko, antiga Liga da Justiça, que fora investigada na CPI de 2008. “A milícia invadiu a área de Santa Cruz em 2006 e conseguiu o domínio total de todas comunidades em outubro de 2018, logo após o primeiro turno da eleição”, diz Luiz Antonio Ayres.

O promotor do Ministério Público trabalhou durante 20 anos na Zona Oeste e explica que o bairro é um território importante em dois aspectos. O primeiro é simbólico. “Dominar Santa Cruz, especialmente Antares e Rola, era uma questão de honra. Tem um fator psicológico envolvido nisso. Aquela área não recebeu UPP e sempre foi muito forte do Comando Vermelho. Tomar essa região mostra o poderio bélico da milícia”, aponta. O outro aspecto que determina a importância de Santa Cruz é econômico e estratégico. “Ali é próximo do Porto de Itaguaí, é próximo da rodovia Rio-Santos, que liga o Rio de Janeiro, pela Costa Verde e Angra, até Santos. Ali é uma via fácil de escoamento de recebimento de drogas e de armas, sempre foi para o CV. Então dominar a extrema Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro dá acesso aos milicianos a esses dois pontos de escoamento e de recebimento de drogas e armas”, explica Ayres, que estima que a milícia de Santa Cruz fatura em média R$ 250 milhões por ano em suas atividades ilícitas — embora ele ressalta que este número seja difícil de calcular com precisão.

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Em agosto, foi instaurada uma crise entre o poder executivo de Jair Bolsonaro e a Receita Federal no Porto de Itaguaí. O presidente criticou o órgão, dizendo que ele teria promovido uma “devassa” contra sua família. Poucos dias depois, o delegado da Receita no Porto, José Alex Nóbrega de Oliveira, disse a colegas que estava com o cargo ameaçado por “forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização”. Oliveira comandava uma espécie de força-tarefa para reprimir o contrabando no porto, que é cercado pela milícia. Desde 2018, foram apreendidos mais de R$ 1 bilhão em mercadorias irregulares. Secretários ameaçaram entregar seus cargos caso o delegado fosse exonerado, mas ele ficou e o motim foi colocado de lado.

A tomada das favelas do Rodo e Antares pelas milícias teve trama cinematográfica. Segundo relatos de policiais, o pivô da guerra foi Sonic, um chefe do tráfico de drogas do Comando Vermelho na região que mudou de lado, passando a integrar a milícia conhecida como Bonde do Ecko. Sonic teria fugido do Rodo levando armas (incluindo fuzis) e dinheiro vivo, escondendo-se nas comunidades vizinhas Cesarão e Aço sob segurança de milicianos. Postado no YouTube em 30 de julho de 2018, o funk “Recado do Rodo pro Sonic” narra que Sonic levou cinco fuzis e dez pistolas glocks. A música ainda promete “picotar” o X9 e avisa: “Nós te pega qualquer dia”.

“O Comando Vermelho se sentiu absolutamente derrotado, amedrontado, enfraquecido quando a milícia tomou aquele território todo. Hoje não está mais havendo disputa, o que está havendo é o CV tentando manter seu território e a milícia tentando invadir o território do CV”, destaca Ayres. De acordo com reportagem do jornal O Globo, as milícias estão presentes em 14 cidades do estado do RJ e estabelecidas em 26 bairros da capital. Somente no município do Rio, acredita-se que cerca de 2,2 milhões de pessoas estão sob o jugo de milicianos, direta ou indiretamente.

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E não deve parar por aí. Atualmente, a milícia tenta fechar um “cinturão” de domínio na Zona Oeste para efetivar um projeto de expansão para outras áreas da cidade, em particular a Zona Norte. Desde fevereiro, moradores da Cidade de Deus — outra área forte do CV na Zona Oeste, que desde o ano passado não possui mais UPP — relataram tentativas de invasão por parte dos milicianos. No dia 12 de setembro, foi registrada uma fuga em massa de traficantes na comunidade e especialistas afirmaram ao jornal O Globo que a milícia está “substituindo os traficantes no local”. Em setembro, invasões policiais na comunidade tornaram-se frequentes. O Batalhão de Operações Especiais (BOPE) chegou a derrubar barracos de moradores com o caveirão. Em páginas ligadas ao Comando Vermelho nas rede sociais, comenta-se que as operações sucessivas são formas da milícia se instalar no local.

PROIBIDÃO E NARCOCULTURA

Cria do Rodo, o MC Poze deixou sua comunidade quando ela foi invadida pela milícia. Agora, vive na Cidade de Deus, que está na mira dos milicianos. Em suas letras, Poze retrata a milícia como o principal inimigo e a favela do Rodo como um território a ser retomado por direito — quase como as autoridades palestinas reivindicam Jerusalém Oriental. “Na CDD só tem bandido faixa-preta, tentaram vir pegar o homem e a bala voou/ Nós é Comando Vermelhão de natureza/ A meta é voltar pro Rodo e voltar pro Batô”, ele canta em “Na CDD Só Tem Bandido Faixa Preta”, como se estivesse falando de si próprio.

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Além dessa, músicas como “Nosso Fuzil Tá Demais e os Milícia Sai Correndo” deixaram Poze conhecido também entre policiais e milicianos. Há dois meses, ele foi enquadrado pela polícia na saída de um show no baile do Manguinhos. Perdeu suas dedeiras de ouro, R$ 10 mil reais em dinheiro e foi obrigado a gravar um vídeo cantando em homenagem a um miliciano. A mesma coisa aconteceu com Urubuzinho, MC do Terceiro Comando Puro, rival de Poze. Mas continuar cantando sobre o Comando Vermelho (ou TCP) e sobre o lado certo da vida errada parece “uma questão de honra”, como o próprio Poze canta em “Nós Vai Voltar Pra Casa”. O CV perde territórios para as milícias, mas ainda possui uma força simbólica que perdura mesmo entre aqueles que não estão diretamente envolvidos nas atividades da firma.

“O legado mais importante do CV é um conjunto de símbolos, discursos e táticas que o grupo produziu”, observa o antropólogo norte-americano Ben Penglase, que morou em favelas do Rio e estudou como as firmas do tráfico carioca e violência policial moldam a sociedade brasileira. “O uso pelo CV de uma retórica de orgulho da comunidade local, de ‘defesa’ das favelas contra ataques de pessoas de fora e de enfrentamento aos abusos de autoridade tem sido crucial para a construção da autoridade do grupo”, defende o pesquisador no artigo “Comando Vermelho e o nascimento da narcocultura no Rio de Janeiro”.

Alguns artistas buscam se afastar dessa vertente, seja para alcançar públicos maiores, para evitar problemas com a polícia e/ou milícias ou por vontade artística mesmo. É o caso do Meno Tody, que depois de explodir com os clipes de “Bailão” e “Trapstar” — onde aparece com armas e drogas (fictícias) e rimando sobre a guerra e o dia a dia na boca — quer explorar outros assuntos em seu álbum que está por vir, como se nota no single “Ai Droga”. No caso de Tody, essa transição é facilitada pela aceitação social relativamente maior do rap. Outros MCs, de funk, com foco no público dos bailes de favela, radicalizam a ideia de combate e resistência. O MC PQD, do Complexo da Penha, em sua nova música, faz um desafio: “Desce do blindado pra fazer o mano a mano”. Já o MC Pelé Johnson, do Complexo PPG, ostenta o poder bélico: “Desde os 15 anos eu tô na boca, temos ponto 30, tem muita granada/ Avisa que nóis não tá de palhaçada”.

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O compositor Praga é autor de clássicos do proibidão, entre eles “Vida Bandida” do MC Smith, e também escreveu “Nóis Vai Voltar Pra Casa” do MC Poze. Para ele, o proibidão — dos veteranos e da nova geração — é símbolo do que classifica como uma “narcocultura”, termo que extraiu do documentário “Narco Cultura”. “É uma forma de denunciar que a cultura do funk consciente ou proibidão é estigmatizada e ligada ao narcotráfico, pois é seu único lugar de fala possível. Na verdade, ele traz luz a um ponto de vista que é ignorado nos desdobramentos da guerra às drogas (que na minha visão é mais uma guerra aos pobres) e até mesmo na própria guerra das drogas entre as facções. São as únicas testemunhas oculares, reféns entre miras que se confrontam e disparam projéteis capazes de varar centenas de metros, entre barracos com menos de um metro nos espaços entre uns e outros, alguns até colados parede com parede. Portanto, somente quem vive nesses territórios de exceção têm a real noção desse sentimento”, explica Praga.

No cenário atual, esse quadro de violência se intensificou não só pela expansão das milícias, mas também pela brutalização das políticas públicas de segurança dos governos de Jair Bolsonaro (PSL) e Wilson Witzel (PSC). Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, 1.245 civis foram mortos no Rio de Janeiro em decorrência de operações policiais apenas neste ano. Em nota, o Ministério Público Federal, através da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional, afirmou que uma política de segurança pública com esses resultados “não pode ser considerada como eficiente e compatível com o Estado Democrático de Direito”.

“O presidente e o governador têm um discurso de nenhum limite à atuação das polícias. Tanto que a proposta que chega ao congresso no pacote anticrime, com excludente de ilicitude, está favorecendo e incentivando as mortes. Em qualquer local do mundo, você tem um manual da polícia. É uma coisa universal. A gente está vivendo uma barbárie”, comenta a professora Vera Malaguti Batista. Ela indica que a situação é ainda pior nas áreas pobres. “Você vê que quando tem um massacre numa favela a única discussão é se o pobre é inocente ou culpado. Mas questionar a política de matança como uma política de polícia, ninguém questiona”.

Praga também acredita que a situação está pior com ascensão de governantes conservadores. “Eles apostam na bala como única saída pra tudo e assinam um cheque em branco para a polícia preencher com quanto sangue quiser. Os resultados? Catastróficos. As comunidades estão inabitáveis, a arbitrariedade das polícias e do governo ultrapassam limites antes impensáveis. Witzel age como se não houvesse outras pautas a serem discutidas num estado tão complexo e problemático como o nosso. Não há nenhum abalo sísmico nas estruturas financeiras, mercadológicas ou de logística no mercado atacadista de drogas, que com toda a certeza não é operado por pessoas pobres e ignorantes. Lembrando do helicoca do deputado Gustavo Perrella, do carro que transportava dezenas de quilos de maconha do filho da desembargadora e por último o piloto da FAB que integrava a comitiva do presidente e foi descoberto transportando drogas nos aviões. Vejo apenas uma caça às bruxas no varejo das drogas, com snipers abatendo bandidos descalços, helicópteros jogando granadas próximo a prédios residenciais e escolas nas favelas e patrulhas do exército confundindo carros de família com de bandidos, e rechaçando sem pena com 80 tiros”, critica.

Para o compositor, esse ressurgimento do proibidão “vem da necessidade de expressar o que vem acontecendo no estado, dada a falência do Estado como um todo”. A explícita perseguição às comunidades carentes, incluindo a crescente mortalidade de crianças e adolescentes pegos no meio do conflito, e o governador sugerindo jogar um míssil nas favelas. Praga encerra a entrevista com um recado: “À toda a população carente do Brasil e das favelas cariocas que votou no Bozo e no ex-juiz: bem-vindos ao inferno governado pelos demônios que vocês elegeram”.

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