"Mulheres, Raça e Classe"
Os negros nos Estados Unidos são 15% da população e aqui no Brasil, somos 52%.
O Donald Trump ter ganhado não é me surpreende. Pelo contrário, se a gente parar para pensar, em 1960, que em termos de história foi ontem, tinha segregação racial constitucional nos Estados Unidos. Os negros não podiam estudar nas mesmas escolas que brancos, não podiam frequentar os mesmos espaços, nos ônibus tinham que sentar no fundo. O que vem vencendo historicamente é essa supremacia branca nos Estados Unidos. Claro que existiram políticas importantes afirmativas, avanços importantes, como a eleição do primeiro presidente negro [Barack Obama]. Mas não diminuíram os assassinatos e o encarceramento da população negra. A lógica nunca mudou. Até hoje, tem algumas cidades do sul [dos EUA] com segregação. Então o Trump ter ganhado [as eleições nos EUA] nada mais é do que a representação do pensamento dessa sociedade norte-americana racista e segregacionista.O Trump ter ganhado [as eleições nos EUA] nada mais é do que a representação do pensamento dessa sociedade norte-americana racista e segregacionista.
As pessoas ainda têm muita resistência [para entender a importância da data]. Tem gente que questiona "por que não [um dia da] consciência branca ou consciência humana? É um senso comum absurdo porque não dá para falar em consciência humana enquanto pessoas negras não tiverem direitos iguais e sequer forem tratadas como humanas. A gente tem que afirmar "Consciência Negra" justamente porque o racismo existe. O [feriado] é uma maneira de lembrar do Zumbi dos Palmares, que é um grande ícone do movimento negro, lembrar da luta anti-racista no Brasil, serve para gente conhecer a história do nosso país por um ponto de vista da população negra porque ela ainda é muito contada pelo ponto de vista do branco europeu.Não dá para falar em consciência humana enquanto pessoas negras não tiverem direitos iguais e sequer forem tratadas como humanas.
O Fernando Holliday é um produto dessa sociedade racista. A gente está em um país que nega suas origens africanas, um país que criou o mito da democracia racial, onde muitos negros não se veem como negros. Até porque quem quer ser negro, quando ser negro significa ser feio, ter o cabelo ruim, ter as piores oportunidades? O racismo aliena porque é difícil bancar ser negro em um país racista. É muito comum encontrar pessoas negras que reproduzem esse discurso. Não porque elas têm consciência, mas porque a gente é ensinado desde cedo que o negro é feio e não se enxerga positivamente em nenhum espaço. É muito mais fácil adotar o discurso do colonizador. O Fernando tem de ser combatido politicamente. As pessoas querem pegar um bode expiatório para ser o grande culpado pela manutenção do racismo no Brasil, mas as pessoas brancas não se questionam sobre o papel delas [no racismo] e não falam dos privilégios que carregam, não querem discutir o papel e a responsabilidade delas para enfrentar a sociedade racista. Ser negro não é condição inerente para ter consciência sobre racismo, assim como ser mulher não é condição inerente para saber sobre o machismo. A gente aprende quando entra nos movimentos ou começa a ler sobre isso.O Fernando Holliday é um produto dessa sociedade racista.
Existe a Lei 10.639, de 2003, que altera a lei de diretrizes e bases da educação para incluir a obrigatoriedade do ensino da história africana brasileira nas escolas. Só que a lei não está sendo cumprida na sua totalidade. Esse é o problema: tem a lei, mas não há políticas públicas ou vontade política de alguns governantes para botar a lei em prática.É importante que gestores públicos tenham a preocupação de fazer a lei ser efetivada para as crianças terem desde muito cedo uma história contada por outro olhar. É importante para todo mundo: para a criança negra que vai ter a autoestima de se reconhecer naquela história e para criança branca entender que existem outras histórias e respeitar as pessoas que são diferentes dela. Além disso, por conta da demonização das religiões afro-brasileiras pelo cristianismo — que tem como base o racismo —, muitos professores cristãos não sabem separar sua religião da profissão.Por conta da demonização das religiões afro-brasileiras pelo cristianismo — que tem como base o racismo —, muitos professores cristãos não sabem separar sua religião da profissão.
Desde o período escravocrata, a população negra é tratada com muita violência. Tinha a figura do capitão do mato para perseguir os escravos que fugiam e a população negra era tratada como mercadoria. No pós-abolição, essa realidade muda, mas a violência começa a se dar de outras formas. Em 1941, tem a "Lei da Vadiagem", que significava prender pessoas negras que estavam na rua. Então começa a se criar formas de encarcerar essa população e de vê-la como violenta. O Estado pensa essa questão no sentido da repressão e violência, não como garantia de direitos. Isso é algo histórico, que se perpetua porque no Brasil há uma resistência em se discutir de fato o que é racismo. As pessoas acham que racismo é só no campo do indivíduo, quando alguém xinga alguém. Não entendem o raciso como sistema de opressão, que nega oportunidades e violenta a população negra. Não percebem que o racismo é estruturante e estrutural.As pessoas [no Brasil] acham que racismo é só no campo do indivíduo, quando alguém xinga alguém.
Como a gente não faz um debate sério sobre o que é o racismo, as pessoas não entendem que certas situações são racistas. Por exemplo dizer: "Você é negra, mas é bonita", ou "Ah, você não é tão negra assim", como se dissesse "não se deprecie tanto". Porque ser negro é associado a algo ruim. As pessoas não percebem porque está muito impregnado na nossa cultura e no nosso inconsciente coletivo, reproduzem sem refletir criticamente sobre essa questão. O racismo está tão naturalizado no Brasil que as pessoas não percebem o quanto ele é violento. O sujeito negro que reclama ainda é visto como "o que se faz de vítima", "aquele que está vendo coisa onde não tem". O racismo está em tudo. Não existe nenhum espaço livre de racismo na sociedade.O racismo está em tudo.
O racismo já é uma opressão estruturante, aliado ao machismo, coloca a mulher negra em uma situação de muito mais desvantagem. Não é à toa que a mulher negra é o grupo que mais sofre violação, que está na base da pirâmide social e que mais sofre o peso do capitalismo. Somos a maioria entre as empregadas domésticas, justamente por conta desse nosso ranço escravocrata. Se a mulher branca, por sofrer machismo, já está numa situação de desvantagem em relação ao homem branco, a mulher negra, aliada ao racismo, está numa situação muito pior. A Angela [Davis] fala que não dá para pensar nessas categorias isoladas porque raça informa classe e o racismo cria uma hierarquia de gênero, colocando a mulher negra numa situação muito maior de vulnerabilidade.Se a mulher branca, por sofrer machismo, já está numa situação de desvantagem em relação ao homem branco, a mulher negra, aliada ao racismo, está numa situação muito pior.
A gente não consegue acessar [as universidades] e quando acessa, somos poucas. E para quem está na academia também não é fácil porque temos uma produção acadêmica eurocêntrica branca e masculina. A nossa produção intelectual não é apresentada para nós. Eu estudei Angela Davis e outras autoras negras por conta [própria]. Não foi a academia que me proporcionou isso. Também tem também a solidão de muitas vezes você ser a única negra dentro da sala e ninguém perceber isso como uma violência. As pessoas brancas passam a vida inteira sem ter um professor negro e nem sequer se incomodam com o porquê disso. Quando eu estava no mestrado e era a única pessoa negra da turma toda. Ficava muito incomodada, mas os outros achavam que tudo era normal.As pessoas brancas passam a vida inteira sem ter um professor negro e nem sequer se incomodam com o porquê disso.
A mulher negra periférica é obrigada a sobreviver, tem que trabalhar para sustentar a família. Mas o fato de ela ter de trabalhar, ter de estar na rua não significa, necessariamente, que ela tem consciência feminista para outras coisas. O trabalho, o fato de ela ter de ser forte, guerreira é uma imposição do Estado, que é omisso. Eu não gosto de colocar a mulher negra inerentemente forte porque acho que é desumano. Eu também tenho direito à fragilidade. Eu sou uma pessoa como outra qualquer, tem dia que estou triste, que eu me sinto fraca. Nós somos fortes sim, mas querer naturalizar isso é escamotear a omissão do Estado. A gente tem que ser forte porque as oportunidades não são iguais, porque a realidade é muito violenta. A mulher negra também tem o direito de ser frágil e de não ter que carregar o mundo nas costas.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.A mulher negra também tem o direito de ser frágil.