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Politică

O homem que detonou a Ku Klux Klan

Stetson Kennedy foi o primeiro homem a se infiltrar e expor a Ku Klux Klan. Ele talvez seja o mais persistente e desprezado defensor dos direitos humanos a circular por este planeta esquecido por Deus.
O defensor dos direitos humanos Stetson Kennedy foi o primeiro a expor a Ku Klux Klan

Retrato por Jason Henry
Fotos de arquivo cortesia de Stetson Kennedy

Stetson Kennedy talvez seja o mais persistente e desprezado defensor dos direitos humanos a circular por este planeta esquecido por Deus. Ao longo de sua carreira, desempenhou o papel de escritor, ativista, folclorista, jornalista, naturalista e poeta, e foi o primeiro homem a se infiltrar e expor a Ku Klux Klan. Sua linha de trabalho exige um tipo de coragem forjada em uma era que ficou para trás—uma época que estimulava indivíduos com tamanha inteligência e culhões que para eles era impossível ficar de braços cruzados enquanto os negros eram enforcados em árvores e os pobres comiam terra. Nascido na Flórida, em 1916, Stetson não é totalmente desconhecido, mas com certeza é menos conhecido do que deveria. Seus feitos chegaram tão cedo e com tanta frequência na luta pela igualdade que foram um dos primeiros a ser enterrados pela avalanche da história. A dimensão de sua cruzada contra a injustiça dá a impressão de que existe um exército secreto de Stetsons vagando pelos EUA ao longo dos últimos 94 anos, combatendo de forma determinada e incessante os piores aspectos da condição humana. Membro de uma geração que ele próprio descreveu como a “geração de vanguarda” de meados do século XX, Stetson teve participação importante na abolição do imposto de inscrição para poder votar, e das eleições primárias exclusivas para brancos. Em 1942, ele escreveu Palmetto Country, um estudo sociocultural definitivo sobre o estado da Flórida, baseado nas pesquisas que realizou enquanto trabalhava no Florida Writers’ Project, iniciativa que fazia parte de um programa governamental de geração de empregos do New Deal. Stetson concorreu ao Senado dos EUA em 1950, com uma campanha baseada no lema “igualdade total” (Woody Guthrie chegou a compor jingles para a campanha), e alguns anos mais tarde lançou I Rode with the Ku Klux Klan (Eu Andei com a Ku Klux Klan), mais tarde rebatizado como The Klan Unmasked (A Klan Sem Máscaras). Essa denúncia foi fruto de um ano trabalhando infiltrado dentro do Império Invisível, e só foi publicada na íntegra nos EUA em 1990. E o mais impressionante é que Stetson vem mantendo de forma paciente e engenhosa “uma bomba-relógio” nas mãos desde que produziu sua reportagem — uma imensa quantidade de informações sobre a Klan, que inclui livros de rituais ultrassecretos, sinais, contrassinais, senhas, juramentos, detalhes sobre a cadeia de comando da organização e até um “manual” para fazer cruzes em chamas. O material estará disponível no site da Fundação Stetson Kennedy (stetsonkennedy.com). Stetson comparou a importância da divulgação dessas informações sobre a Klan com seu depoimento diante da Comissão das Nações Unidas em Genebra sobre o Trabalho Escravo, algo tão grandioso que é impossível para quem não estava presente compreender a dimensão de suas implicações. Essa sua passagem pela Europa fez com que ele desviasse a sua rota inesperadamente. Stetson passou os oito anos seguintes viajando pelo continente, e seu trabalho chamou a atenção de Jean-Paul Sartre, que publicou seu livro Jim Crow Guide to the USA (Guia Jim Crow para os EUA) na França em 1956, um material com o qual ninguém mais se envolveria na época. Hoje Stetson passa grande parte do seu tempo na Fundação Stetson Kennedy, uma organização sem fins lucrativos dedicada à “defesa dos direitos humanos, da justiça social, do meio ambiente e da preservação das culturas locais”. A sede fica dentro de sua propriedade, chamada Beluthahatchee, um lugar especial às margens do rio St. Johns, na Flórida—uma “Shangri-la moderna, onde todas as coisas desagradáveis são perdoadas e esquecidas”, de acordo com a renomada antropóloga e folclorista Zora Neale Hurston. Foi lá que esta entrevista foi realizada.

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Apesar de várias tentativas, o Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso se recusou a acolher as provas inéditas e substanciais que Stetson oferecia sobre as atividades terroristas perpetradas pela KKK. Irritado com a situação, ele viajou até Washington com uma maleta cheia de documentos para apresentar seu caso ao comitê vestido como um membro da Klan. Não demorou muito para a polícia ser chamada para detê-lo e interrogá-lo.

VICE: Desde que Obama foi eleito presidente dos EUA, algumas pessoas argumentam que hoje vivemos em uma era “pós-racial”, ou estamos prestes a entrar em uma. O que você acha disso?
Stetson Kennedy: A luta pelos direitos humanos é um continuum sem começo nem fim. Não acho que exista essa coisa de “pós-racismo”. O racismo não é um fenômeno restrito aos EUA, é algo que sempre existiu na história da sociedade humana, quase sem exceção. Mas o progresso nas relações raciais nos EUA tem sido notável. Em muitos aspectos, as coisas superaram as minhas melhores expectativas. Na França, em meados do século XX, eu via casais inter-raciais empurrando seus carrinhos de bebê nos parques e ninguém se importava com isso. Eu era o único que reparava, por assim dizer. Naquela época, eu achava que demoraria uns 1.000 anos para os americanos deixarem de se preocupar com esse tipo de coisa. Mas não demorou tanto assim, o que prova que a nossa sociedade pode promover mudanças profundas e às vezes mudar com bastante rapidez. Nos EUA, não apenas paramos de usar termos pejorativos em relação aos negros como aposentamos as escarradeiras e abandonamos a mania de buzinar sem parar. Era impossível dormir em Manhattan, porque todo mundo buzinava ao mesmo tempo. Mudanças podem acontecer. Uma mudança tipo a do Obama?
A eleição do Obama foi, como se sabe, ganha por uma margem pequena de votos, o que significa que o país está dividido. Antes da eleição, um amigo meu estava nas Carolinas com os velhos amigos. Ele voltou com uma mensagem: a Klan estava apoiando Obama porque queria que ele ganhasse para poder assassiná-lo e dar início a uma guerra racial. Pela minha experiência, desde os anos 40, a Klan sempre quis provocar uma guerra racial, esse era um dos motivos por trás da matança de crianças e de uma série de incêndios em igrejas ocorridos no Sul dos EUA naquela época. É verdade que o país está dividido em relação a muitas outras questões além da política do governo Obama e do fato de termos um afro-americano na Casa Branca. Algumas dessas questões são políticas, outras sociais e outras religiosas, mas a minha maior preocupação é que a mentalidade da Klan foi, na minha opinião, transformada, ou talvez eu devesse dizer transplantada. Como assim?
Houve uma mudança de uniforme. A história da Klan é marcada pelas mudanças de uniforme. Eles começaram com o cinza da farda dos Confederados e depois passaram a usar os lençóis. Então, quando os brancos retomaram o poder e a segregação foi restabelecida, o uniforme passou a ser o azul dos policiais e o cáqui dos xerifes. Durante um tempo, foram os chamados oficiais da lei que garantiam o poder dos brancos, mas as túnicas acabaram voltando. Eu testemunhei pessoalmente discussões e debates depois da II Guerra Mundial sobre se os veteranos deveriam voltar ou não a usar os lençóis, se não era uma coisa muito antiquada. Aí começamos a ver veteranos de guerra fardados nas reuniões e manifestações da Klan. A origem da atividade miliciana, que se enraizou em vários estados dos EUA, remonta ao período pós-guerra. Eles trouxeram sua mentalidade e seu modo de agir com eles. Muito se fala a respeito da sua personalidade, que você foi capaz de interagir por muito tempo com pessoas que faziam coisas horríveis sem perder o controle uma única vez. Como foi possível se dar bem com eles durante tanto tempo enquanto você esteve infiltrado?
Vou colocar dessa maneira: uma vez, o meu telefone tocou e uma voz disse: “Aqui é a Klan”. Eu desliguei. Na segunda vez em que aconteceu eu disse que era a “contra-Klan” e deixei o sujeito falar. No fim, era o líder da Klan do distrito de Stark, Flórida. Ao invés de me ameaçar ele me perguntou se eu faria o favor de ajudá-lo a fazer a sua árvore genealógica. Esse sujeito era chamado de o Grande Titã. O pai e o avô dele foram acusados pelo assassinato de Joseph Shoemaker em Tampa, nos anos 1930. Shoemaker foi preso, mas a polícia o tirou da cadeia e o entregou na mão de homens da Klan devidamente caracterizados bem na frente do tribunal. Eles o castraram, mergulharam em um tonel de piche escaldante e o espancaram até a morte. O pai e o avô desse sujeito foram acusados de ter feito parte disso. Ele queria ajuda para estabelecer sua linhagem. Eu mandei alguns recortes de jornal para ele. Em que momento o patriotismo e o racismo se tornaram tão interligados nos EUA? Trata-se de algo tão incorporado à cultura americana que não pode ser extirpado?
O membro do Comitê de Atividades Anti-Americanas no Congresso, John E. Rankin, do Mississippi, disse que a Klan era uma instituição tão nacional quanto a torta de maçã. Eu tentei muitas vezes fazer com que provas chegassem a eles, e eles sempre se recusaram a ver, ou então nem respondiam. Uma vez peguei um ônibus até Washington. Depois de chegar lá, entrei num táxi e vesti o meu traje da Klan. O taxista ficou olhando no retrovisor e quase bateu o carro. Fomos até a sede do Congresso, e eu entrei usando o meu traje e carregando uma maleta tão lotada de provas que mal conseguia fechá-la — estava transbordando de papéis. Quando bati na porta, as secretárias começaram a gritar e saíram correndo. Eu me sentei e comecei a folhear os meus papéis. Um sujeito entreabriu a porta da sala ao lado, deu uma olhada e fechou rapidinho. Seis policiais do Capitólio apareceram e eu fui detido. Fiquei muito honrado por terem mandado seis deles. Me levaram para o porão e, depois que eu me expliquei, o tenente me mandou tirar meu traje e nunca mais aparecer ali vestido daquele jeito. Isso foi o máximo que consegui com o Congresso, mas consegui chamar a atenção do público. A Klan ainda tem alguma relevância?
Na minha opinião, as milícias são a manifestação moderna da tradição de violência e supremacia branca da Klan. A atividade das milícias, em algumas questões e em muitos aspectos, é muito mais radical do que a Klan. Em linhas gerais, a Klan era considerada patriota e leal ao governo dos EUA, ao passo que as milícias querem depor o governo federal por meio da força e reescrever a Constituição de modo que apenas os brancos caucasianos sejam reconhecidos como cidadãos. Muitas dessas milícias falam dessas questões como um holocausto global, a expatriação dos negros para a África e a restituição da segregação oficial para aqueles que ficarem. Na prática, seria um país 100% fascista, um regime americano nazista. Do meu ponto de vista, esse pessoal do Tea Party equivale às primeiras tropas de assalto do partido nazista alemão, quando Hitler podia contar com apenas meia dúzia delas. Eles têm o mesmo tipo de mentalidade, personalidade e potencial para praticar o mal.

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Stetson mostrando uma de suas camisetas favoritas. Uma das peças menos atraentes do guarda-ropupa de Stetson.

Você tem ideia de como podemos combater esses grupos? Existe alguma maneira de detê-los sem recorrer à violência?
Bom, não é preciso nem dizer que a tendência das supostas forças da lei—municipais, estaduais, regionais e federais — era passar a mão na cabeça das milícias como se fossem bons cidadãos descarregando a tensão sem o intuito de prejudicar ninguém. Mas dá para imaginar o que aconteceria se a Associacão Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, ou a Liga Antidifamação, ou a B’nai B’rith, ou a La Raza começassem a usar fardas, andar com armamento militar e praticar exercícios de guerra com munição de verdade. Eles iriam para trás das grades em dois tempos. Claro, seus defensores dizem que a Constituição garante o direito dos cidadãos de portar armas. Mas ninguém faz nada a respeito da expressão “uma milícia bem regulamentada”. Tenho certeza de que aqueles que escreveram a Constituição tinham em mente milícias estaduais bem regulamentadas, não exércitos particulares. A proibição dos exércitos particulares está lá, só não está sendo respeitada. Acho que estamos pondo o país em grande perigo ao permitir que isso continue. Eu falei sobre isso em uma rádio local um tempo atrás, e o líder da milícia da região ligou para lá. Eu perguntei: “Você se considera bem armado?”, e ele respondeu: “Com certeza”. Então ele listou, todo orgulhoso, as armas de seu arsenal. Eu perguntei: “Quem você pretende matar?”, e ele disse: “Qualquer um que tentar tirar as minhas armas”. Se a autoridade competente resolvesse pôr em prática as leis contra exércitos particulares, talvez tivéssemos uma espécie de guerra civil. Esse pessoal é fanático. A minha preocupação não é só com o racismo — essas pessoas são contrarrevolucionárias convictas, e estou me referindo à revolução que levou à independência dos Estados Unidos. São terroristas, pessoas totalmente anacrônicas. Você chegou a pedir a sua ficha nos órgãos federais com base na Lei de Liberdade de Informação?
Sim, e me custou US$ 40,45. Cada página custa cinco centavos, e a minha ficha tinha 809 páginas. Ficou claro desde o início do meu trabalho que o FBI via a minha atuação contra a segregação racial como uma atividade subversiva. Eles escreviam relatórios sobre mim dizendo: “Sem dúvida nenhuma ele continuará a escrever artigos contra a segregação e a favor dos direitos trabalhistas”. Dá para acreditar? Eles tinham razão, eu estava tentando subverter a supremacia branca, então eles não estavam tão por fora. Era isso mesmo. Na mídia e em outros lugares, hoje somos tratados como consumidores, e não como cidadãos. Você testemunhou essa transformação. Como isso afetou o sonho americano?
Durante a Grande Depressão, o sonho americano, o grande objetivo da nossa sociedade, era ter “um frango em cada panela”. Hoje em dia é ter dois carros, uma lancha e todo tipo de mercadorias. Em meados do século XX, o lema da Câmara do Comércio dos Estados Unidos era “formar uma classe média”. Isso é uma coisa boa. Hoje, meio século depois, estamos diante do fenômeno da depauperação da classe média. E a migração da indústria e do capital para mercados com mão-de-obra mais barata em outras partes do mundo deixou o país à míngua, tanto que em vez de nos preocuparmos com a degradação de antigas áreas industriais temos que começar a nos preocupar com a degradação de todo um país. Para mim, é um caso de alta traição. Os capitalistas resolveram virar as costas para dois séculos de lutas sangrentas e sofridas por melhores condições de trabalho e simplesmente foram para lugares onde não precisavam se preocupar com essas coisas. Isso significa que a Revolução Industrial está começando de novo sem nenhuma restrição. O que isso implica para o futuro não dá para saber. Acho que corremos o risco de nos transformarmos em um país de terceiro mundo, endividado, decadente, ultrapassado. Você acha que os EUA não são capazes de superar outra Grande Depressão? Isso já aconteceu antes.
Mas a fuga do capital e da indústria representa algo muito mais grave do que qualquer recessão passageira. Todo esse capital foi criado com o esforço dos americanos, com recursos americanos. Hoje milhões de americanos sabem o que é ter dinheiro e vivem de maneira confortável. Antes da Grande Depressão, milhões e milhões de pessoas viviam bem próximas da linha da pobreza, então sabiam como lidar com ela e lutar para sair dela. A miséria não era algo tão traumático quanto vai ser para essa classe média quando ela estiver na rua da amargura. Essas pessoas não têm a menor ideia do que significa ser pobre. Eu não me surpreenderia se o número de suicídios crescesse de forma drástica à medida que a crise se acentuar. Seus efeitos estão só começando a ser sentidos, acredito eu. Mesmo os mais pessimistas imaginam o que pode estar por vir em termos econômicos e de meio ambiente. Woody Guthrie era um dos seus maiores amigos e defensores, e ele teve uma tremenda influência sobre a música folk, principalmente sobre Bob Dylan. Como foi que você o conheceu?
O Woody ganhou notoriedade junto ao público graças a Alan Lomax. O Alan tinha vindo para a Flórida e me contratou como consultor quando fazia alguns programas de rádio para a CBS durante a guerra. Aparentemente, ele deu para o Woody um exemplar do meu primeiro livro, Palmetto Country, que foi publicado em 1942. Algum tempo depois, o Woody me mandou a sobrecapa do livro com palavras elogiosas — que dizia como a maioria dos livros o fazia se sentir por baixo, mas que aquele o fez se sentir muito bem, e que, se eu continuasse a trilhar o meu próprio caminho, a contribuição que eu poderia trazer para a humanidade seria ilimitada. Também disse para eu não estranhar se ele aparecesse na minha casa qualquer dia com seu violão para bater um papo. Não foi exatamente assim que aconteceu. Um dia o Woody me ligou da rodoviária e me pediu para ir buscá-lo e levá-lo até Beluthahatchee. Na época eu morava na carcaça de um ônibus dos anos 30, mas tinha uma varanda coberta bem grande que servia de cozinha. O Woody preferiu dormir em uma barraca no meio da mata, debaixo dos carvalhos. Ele passou um bom tempo aqui, entre idas e vindas. Vinha quase sempre acompanhado de Ramblin’ Jack Elliott, que era quem dirigia. Alguns anos depois da sua primeira visita, ele apareceu com uma menina de 21 anos chamada Anneke. O Woody tinha 41, e ela largou o marido, que era ator, para vir para Beluthahatchee com ele. Quando eles foram embora, uma das minhas vizinhas negras falou: “Que tipo de gente era essa?”. “Como assim?”, perguntei. E ela disse: “Eu e o meu marido viemos pedir permissão para pescar aqui no domingo de manhã e os dois saíram pelados do ônibus. Como é que você chama esse tipo de gente?”. Eu respondi: “É só o Woody”.

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“John S. Perkins”, membro da Klan, tira a máscara e revela seu verdadeiro nome, Stetson Kennedy, durante uma coletiva de imprensa na Liga Antidifamação da B’nai B’rith em Nova York, 1947.

Você concorreu ao Senado em 1950, e o Woody compôs um jingle para a sua campanha que causou muita repercussão negativa entre as pessoas que não queriam que a sua cruzada contra o racismo ganhasse força. Na verdade, alguns autores e historiadores afirmam que você se mudou para a Europa em virtude de ameaças da Klan e de outros.
Houve muitos relatos dizendo que eu saí do país porque a Klan estava promovendo uma caça às bruxas. Nenhum deles era verdadeiro. Então o que te motivou a ir embora?
Eu estava aqui em Beluthahatchee escavando um lago de 80 mil metros quadrados, coberto de lama, quando vi uma pequena nota no jornal dizendo: “Comissão das Nações Unidas sobre o Trabalho Escravo cancela sessão em Nova York”. Ninguém havia aparecido para denunciar qualquer tipo de trabalho escravo em lugar nenhum do Hemisfério Ocidental. Então eu fui correndo para o posto de telégrafo e me ofereci para enviar um avião cheio de trabalhadores em regime de escravidão das plantações de repolho e batata da minha região. Eles responderam que a sessão já havia sido cancelada, mas que se eu chegasse a Genebra em dez dias, às minhas próprias custas, eu seria ouvido como uma testemunha especialista. Eu estava completamente duro, mas fui correndo para uma plantação aqui perto com o meu gravador. Em pouco tempo consegui recolher material suficiente para mostrar à ONU. Eu disse mais uma vez que poderia levar um avião cheio de trabalhadores em regime de escravidão, mas eles disseram que não, eu deveria ir sozinho. Fui batendo de casa em casa entre os meus vizinhos, que eram negros, e consegui o suficiente para uma passagem de ida e 8 dólares para gastar. Foi por isso que eu fui para a Europa. Fiquei uns oito anos por lá. E enquanto você estava lá escreveu um dos principais livros da sua carreira: The Jim Crow Guide to the USA, que ninguém nos EUA queria publicar.
O Jean-Paul Sartre o publicou na França e, logo depois, um agente da CIA, bem jovem e elegante, foi até mim com um exemplar da primeira edição francesa e disse: “Isto aqui é incômodo demais! Se você desmentir tudo e disser que o material é fajuto, nós garantimos a sua independência financeira para o resto da sua vida”. Eu respondi: “Se você apontar alguma coisa incorreta eu corrijo de graça”. Ele foi embora bufando, então eu convoquei a imprensa e denunciei a tentativa da CIA de me subornar. Depois disso fui para Roma, e por acaso estava ocorrendo uma eleição por lá. A CIA tem o hábito de gastar milhões de dólares nas eleições europeias, apoiando determinados grupos e tentando criar novos partidos. Em Roma, havia um partido apoiado pela CIA, e eu vi alguns funcionários colando cartazes para eles. Fui atrás deles com um pedaço de pau e, quando viravam a esquina, eu arrancava os cartazes antes da cola secar. Uma vez não esperei nem eles virarem a esquina. Eles me viram e me levaram para a delegacia e tudo o mais. Eu também queria falar sobre o seu trabalho como folclorista. Muita gente não entende o que é o folclore, muito menos sua importância cultural. Como você o define?
Zora Neale Hurston foi quem criou aquela que talvez seja a definição mais precisa e duradoura: “O folclore é o caldo da vida humana”. Tolstói dizia que, quando queria falar sobre alguma coisa séria, procurava os camponeses analfabetos, porque a mente deles não havia sido ofuscada por nenhum tipo de educação formal. Existe no folclore a categoria de ditos populares, que geralmente se resumem a uma frase. Me esforcei para reunir essas frases em todos os lugares que visitei, como a de um senhor negro de idade que disse: “Quando se está na Geórgia, é preciso agir de acordo”. Achei que isso resumia com perfeição o sistema de segregação da época. Ou a da empregada doméstica que falou: “Só alimento os brancos com colheres de cabo beeeem compridos”. Esses são exemplos do que estou falando. Certa vez você perguntou: “Será que apenas séculos de fraternidade serão capazes de apagar séculos de inimizade?”, mas como podemos chegar a um ponto de solidariedade absoluta?
Sempre me perguntam qual é a solução para acabar com a violência entre grupos, culturas e pessoas, sendo que alguns desses conflitos existem há milênios. Não acho que seja realista dizer “se abracem e façam as pazes”. Não sei o que pode pôr um ponto final nisso. Talvez precisemos criar algum tipo de força internacional para lidar com essa questão. Dito isso, não acho que alguma lei seja capaz de pôr um fim à violência, e não acredito que as inimizades vão desaparecer do dia para a noite, porque a única maneira de erradicar séculos de derramamento de sangue é viver como bons vizinhos e bons cidadãos. Venho procurando uma resposta durante a minha vida inteira, e isso foi o máximo que consegui obter. Criar leis, respeitar as leis e conviver em harmonia, gostem ou não, até começarem a gostar da ideia. Martin Luther King e vários outros passaram anos falando sobre tolerância, mas acho que essa não é a palavra certa, porque implica em que existe algo errado que é preciso tolerar. Precisamos encontrar outra maneira de dizer isso, algo como respeito mútuo. A palavra tolerância tem uma conotação errada. Alguns diriam que é o poder que impede a sociedade de evoluir e adotar a verdadeira igualdade.
Nós vemos o governo como uma entidade todo-poderosa, mas na verdade existe algo chamado setor privado, que é muito controlador. Na minha opinião, não é exagero dizer que ele subverteu a democracia nos salões do governo, porque eu não sei onde essa tendência de privatização vai parar. Estamos quase em um ponto em que parece uma boa ideia privatizar o governo e mudá-lo da Pennsylvania Avenue para Wall Street, onde está o verdadeiro poder. Woody Guthrie costumava perguntar: “O que foi que deu errado aqui, afinal?”. Acho que a resposta teria apenas uma palavra: “ganância”. Para mim está bem claro que a humanidade não pode deixar de combater a ganância, caso contrário estamos fadados a enfrentar uma série
de problemas.