A luta política do Rohingya Futebol Clube é existir
Crédito: RJ Vogt

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VICE Sports

A luta política do Rohingya Futebol Clube é existir

Como vivem os operários que representam uma perseguida minoria étnica muçulmana em um país de maioria budista.

Do campo surrado de futebol que serve de casa para o Rohingya Futebol Clube, na Malásia, é possível avistar os pináculos cintilantes das Torres Petronas, um dos símbolos de Kuala Lumpur, a capital e maior cidade do país.

Sob uma bandeira artesanal do RFC, homens rohingyas — em sua maioria refugiados sem documentação, oriundos do Estado do Arracão, da costa ocidental de Mianmar, um país avesso a eles — aglomeram-se em torno da cerca para assistir a seus filhos e irmãos baterem bola em um gramado minguado.

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Mohammed Faruk, atacante titular e porta-voz não oficial do clube, diz que o RFC é uma seleção "nacional" e representa as centenas de milhares de rohingyas que vivem em condições similares ao apartheid, bem como a diáspora que se estende dos Estados Unidos à Malásia, cruzando a Arábia Saudita.

Faruk ajudou a fundar a equipe no início de 2015 como uma maneira de reforçar, por meio do esporte, a identidade de uma das maiores populações do mundo sem um Estado para chamar de seu.

Quando começa o treino, ele veste uma camisa cor-de-rosa do Rohingya, estampada com seu nome nas costas, e fica em polvorosa. Correndo atrás da bola solta, Faruk se deixa levar pelo jogo durante uma hora e tanto.

Depois do treino, ele me confessa uma vontade sua tão impraticável, em termos políticos, que mal consegue conter o riso: promover uma partida entre o Rohingya Futebol Clube e a seleção de Mianmar.

"Se topassem uma partida conosco, seria um amistoso", disse ele, referindo-se à nação que se recusa a reconhecer seu povo e é acusada, inclusive, de tentar exterminar os rohingyas. "Não somos agressivos, não somos terroristas. Somos amigáveis. Queremos paz."

O próprio ato de intitular o time "Rohingya" já é uma declaração política para uma minoria étnica muçulmana em um país de maioria budista. Jogar contra uma seleção nacional? "Creio que não tão cedo", disse U Ye Naing Win, editor da revista Myanmar Special Media, focada exclusivamente em futebol desde 2010. "O nome Rohingya é complicado."

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O negócio é sério: a mídia do Estado de Mianmar sequer publica a palavra. Tradicionalmente, o governo rotula o grupo como imigrantes bengalis ilegais, embora registros de povoamentos rohingyas na área remontem ao período colonial, e até ao sétimo século. Desde que uma junta militar tomou o poder, em 1962, a antiga colônia britânica marginaliza a minoria étnica. Em 1982, a Lei da Nacionalidade Birmanesa, instaurada pelo general Ne Win, oficialmente declarou os rohingyas "não-cidadãos", constituindo uma base para aquilo que, décadas depois, a ONG Humans Right Watch caracterizou como "crimes contra a humanidade e política de higienização étnica", e que especialistas consideram genocídio contínuo.

Mohammed Faruk, porta-voz não oficial e atacante titular do RFC. Foto por R.J. Vogt

Com a falta de um Estado veio a perseguição, e embora o país não seja mais considerado uma ditadura militar, a situação dos rohingyas não evoluiu. Faruk e boa parte de seus colegas de equipe fugiram de barco quando rebeliões anti-islâmicas e violência generalizada irromperam em 2012. Viraram parte da estatística, daquilo que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados mais tarde estimou ter sido um êxodo em massa de 86.000 pessoas em apenas dois anos. Mais 74.000 rohingyas atravessaram as fronteiras para Bangladesh desde outubro de 2016, quando o exército de Mianmar, supostamente respondendo a ataques contra a polícia da fronteira, passou a realizar operações de queimadas "anti-insurgências" ao norte do Arracão. Depoimentos de refugiados, coletados pelas Nações Unidas, incluem diversos relatos de agressão e estupro; quase metade dos entrevistados contou que algum membro de sua família fora assassinado.

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No mês passado, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas emitiu uma resolução convocando investigações sobre os supostos abusos das operações militares, desmentidos por oficiais do governo. Aung San Suu Kyi, nova presidente do governo democrático de Mianmar, vencedora do Nobel da Paz e defensora dos direitos humanos, não se pronunciou, e a comunidade internacional, até então, tem se mostrado incapaz de — ou relutante em — responsabilizar o país pela forma como trata os rohingyas.

"Infelizmente, ainda não vemos uma luz no fim do túnel para os rohingyas em Mianmar, tampouco há indícios de que o arco das organizações internacionais seja favorável a uma norma em prol de uma proteção civil mais robusta", escreveu David Simon, diretor do Programa de Estudos sobre Genocídios do Centro MacMillan (Universidade Yale), no início deste ano.

De volta ao campo do RFC na Malásia, um jogador chamado Abdullah, de óculos espelhados, me contou, enquanto mascava bétele, que fugiu em um barco de tráfico humano em 2012. Ele zigezagueou o Golfo de Bengala durante quatro meses, da Tailândia à Índia, de volta à Tailândia, e por fim rumo à Malásia, onde ainda aguarda, junto às Nações Unidas, o status oficial de refugiado. Ele comentou que a jornada foi um pesadelo, mas que agora está preocupado mesmo com a família, que ainda reside na principal região de repressão militar contra qualquer um que possa ser considerado um "insurgente rohingya".

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"Achei que já tinha chegado a minha vez", disse Abdullah, lembrando-se do dia em que escapou de um ataque militar à sua vila. "Minha mãe me disse para sair do país, então quando vi um barco cheio de pessoas, nadei até ele e fui junto."

A história parece distante quando Abdulla amarra as chuteiras e começa a fazer embaixadinhas. Ele trabalha como eletricista agora, fazendo bicos pela cidade. Jogar pelo RFC e acompanhar os melhores momentos do Barcelona são seus únicos passatempos; Luis Suarez é seu jogador favorito.

"Adoraria enfrentar um time de Mianmar", disse ele.

O RFC treina uma vez por semana, geralmente aos domingos. O time conta com 25 jogadores no elenco e uma lista de espera três vezes mais extensa. A maioria dos homens são operários de vinte e poucos anos, que tentam ganhar a vida às margens do mercado de trabalho da Malásia. Na liga amadora DD Social League, o RFC conta hoje com cinco vitórias, seis empates e quatro derrotas, um quadro respeitável, ainda que não na liderança, considerando que a maioria dos jogadores entra em campo logo depois de colocar a mão na massa, em cargos de construção e limpeza de ruas.

Os registros do clube guardados no escritório de Muhammed Noor, um dos cofundadores e principais patrocinadores do time — e CEO e fundador da Rvision, a única rede de notícias rohingya no mundo — mostram que o time acumulara 28 vitórias e apenas três derrotas em jogos anteriores, em partidas não oficiais contra equipes rohingyas de menor porte, em outros estados da Malásia. Embora essas equipes também contem com jogadores rohingyas, Noor disse que o RFC é a única verdadeira seleção "nacional", com jogadores de diversas vilas do Estado do Arracão e representantes de comunidades dos quatro cantos do mundo.

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Muhammed Noor, um dos cofundadores e principais patrocinadores do time. Foto por R.J. Vogt

"Os rohingyas costumam ser descritos como refugiados muito pobres", disse Noor. "Então definimos: 'Não vamos choramingar. Vamos juntar algumas pessoas, alguns jovens, e vamos trazer um pouco de esperança.'"

Junto a Faruk e o técnico Dildar, Noor fundou o RFC em 2015. Ele confere ao time certa influência internacional e experiência em negócios. Nascido na Arábia Saudita depois de seus pais fugirem do norte do Arracão, nos anos setenta, ele concluiu um mestrado em ciência da computação na Universidade SEGi, em Kuala Lumpur, trabalhou como engenheiro de plataforma na petroleira Petronas, e lançou o ambicioso canal de televisão Rvision em 2012.

O Rvision oferece programas culturais e religiosos, entrevistas, notícias e documentários na língua rohingya. A transmissão via satélite abrange mais de cem países ao redor do Oriente Médio, e o canal ainda distribui conteúdo no Facebook e no YouTube. Também cobre as partidas do Rohingya Futebol Clube, tentando assim promover um fio de esperança entre pessoas cuja identidade há muito se define pela falta de esperança. O YouTube Analytics revela espectadores no Oriente Médio, em Bangladesh e Mianmar. Noor estima que haja três milhões de rohingyas espalhados pelo mundo de olho no time.

"Sabe, não somos apenas pessoas pobres pedindo dinheiro nas ruas", disse Noor enquanto se esparramava numa poltrona em seu amplo escritório, na sede da Rvision, em Kuala Lumpur. "Temos talento. Por que não nos dão uma oportunidade para mostrar esse talento?"

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Embora ele reconheça que uma partida contra a seleção de Mianmar soe inverossímil, Noor acredita que seria um passo rumo a uma maior aceitação em Mianmar. Desde a fundação do time, ele já investiu milhares de dólares — do próprio bolso — em locações de estádio e ônibus para o RFC.

"A principal meta é ganhar reconhecimento. Não para o RFC, pois o RFC é um veículo", disse ele. "Reconhecimento para todo o povo rohingya. Queremos jogar — não precisa ser para valer, mas um amistoso ao menos. Seria um bom começo."

O presidente da Federação de Futebol de Mianmar, U Zaw Zaw, é um executivo de alto escalão, dono de plantações de borracha, resorts de luxo e um dos maiores bancos da nação; até pouco tempo atrás, ele figurava na lista negra dos Estados Unidos como parte das sanções contra a junta militar. Segundo uma declaração da federação, emitida em setembro de 2016, desde que Zaw Zaw se tornou presidente, há 12 anos, ele já gastou mais de 19,4 bilhões de quiates (14,3 milhões de dólares) em apoio ao esporte.

Marcar uma reunião com Zaw Zaw para propor uma possível partida com o Rohingya provou-se uma tarefa árdua. Seu assistente pessoal atendeu minha chamada e se interessou por uma entrevista — isso até eu mencionar a palavra "rohingya", momento em que ele educadamente prometeu repassar o pedido Zaw Zaw e desligou. Nunca me contataram de volta.

O porta-voz da Federação de Futebol de Mianmar, Zaw Minn Htike, também demonstrou abertura antes de gelar com a menção do termo "rohingya". Depois disso, recusou incontáveis telefonemas e uma entrevista tête-à-tête no escritório da federação.

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Rohingyas assistem ao treino de sua seleção. Foto por R.J. Vogt

Kyaw Zin Hlaing, o principal repórter esportivo do The Myanmar Times, um dos dois jornais diários de Mianmar publicados em inglês, gargalhou quando lhe indagaram as chances de uma partida entre a seleção de Mianmar e o Rohingya Futebol Clube.

Ye Naing Win, da revista Myanmar Special Media, disse que, mesmo para os clubes, não valeria a pena. "É cansativo para os jogadores revezar entre a seleção e os clubes."

Quando telefonei para Faruk para contar que as autoridades futebolísticas de Mianmar sequer discutiriam a possibilidade de jogar contra sua equipe, ele formulou uma teoria interessante sobre o caso.

"Isso nos entristece, mas [o motivo] pode ser que estejam com medo de jogar contar nós", disse. "Deve ser por isso que se recusam a responder."

Por ora, o RFC sabe que suas chances de reconhecimento são pequenas, pelo menos em casa, mas isso não os impede de continuar buscando reconhecimento em outros lugares.

Recentemente, por intermédio de uma organização australiana sem fins lucrativos chamada The Kick Project, o clube ganhou um financiamento de 12.200 dólares da missão diplomática australiana em Kuala Lumpur. O fundador e diretor do Kick Project, James Rose, disse que quando ficou sabendo da missão do clube — construir uma identidade por meio do esporte — sentiu que seria o programa-piloto ideal para sua organização.

"Evidentemente, eles estão enfrentando uma situação extrema", disse Rose. "A ideia é apoiar-se no esporte. É uma maneira simples de unir as pessoas… Oferece um ponto focal à comunidade [de refugiados rohingyas]. Derruba barreiras e constrói pontes sem que [as pessoas] tenham que pensar muito em política."

Rose viajou para Kuala Lumpur em fevereiro para adiantar pagamentos de reserva de campos, entregar novas camisas à equipe, e procurar locais para um centro esportivo comunitário. Ele imagina um espaço seguro de encontros, onde crianaçs rohingyas poderão ter acesso a equipamentos esportivos — como que uma "esporteoteca". Ele também aplicou o financiamento na compra de um velho ônibus azul e amarelo para o time e seus fãs viajarem durante os jogos fora de casa.

O Kick Project já está montando uma ramificação feminina do RFC, e Rose disse que uma pesquisa com a Rede Rohingya pelo Desenvolvimento das Mulheres, em Kuala Lumpur, revelou um interesse em badminton, netball e judô.

"Vamos ajudá-los com isso este ano", disse Rose. "O clube, os vestiários, além de um local para socializerem".

Ainda há muitos desafios diante de Faruk e seus colegas de time. Por serem imigrantes ilegais na Malásia, não têm acesso a educação pública, sistemas de saúde ou vistos de trabalho, e por serem uma das maiores populações do mundo sem Estado, tampouco têm para onde voltar.

No entanto, agora ostentam camisas novas, com um design fresquinho, sem os nomes individuais nas costas. Há apenas um nome, uma identidade, inscrito entre os ombros: Rohingya.

Tradução: Stephanie Fernandes