FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Primitive Reason: da origem ao "Celebration"

Vinte anos orgânicos e sem maquinação.

Em ensaios para o "Celebration", com alguns dos músicos convidados. Estamos em 1996. Alternative Prison é lançado, “Seven Fingered Friend” é um dos singles mais eficazes da história da música portuguesa e os Primitive Reason — criados apenas três anos antes — são imediatamente catapultados para um patamar invejável com o estatuto de uma das bandas mais criativas e inovadoras da época. Duas décadas depois, com muitas mudanças, novas experiências, crescimento e consolidação pelo meio, eles por aqui continuam com a mesma garra de sempre. Após o lançamento de Power to the People no ano passado, a marca dos vinte anos exige uma grandiosa celebração, que nos aguarda no palco do São Jorge, em Lisboa, já na próxima quinta-feira, dia 6. Conversámos com Guillermo de Llera, o único membro fundador que integra a formação actual da banda, que nos falou da identidade dos Primitive Reason, do seu legado e ainda do que podemos esperar para este concerto. VICE: Se voltássemos a 1993 e vos contássemos que dali a vinte anos ainda por cá andariam a lançar discos e a fazer concertos, qual seria a vossa reacção?
Guillermo de Llera: A mim não me surpreenderia já que esse era o meu sonho e a minha intenção desde o início, mas tudo o que aconteceu entre '93 e hoje nem nos meus sonhos mais loucos…Desde os nossos inícios que tinha como objetivo para os Primitive Reason uma viagem entre estilos e aprendizagens díspares que iriam de alguma forma fazer a sua marca no panorama musical nacional e internacional, nem que fosse pelo exemplo de uma opção que prima pela originalidade e profundidade de conteúdo. Como foi a experiência de uma banda verdadeiramente alternativa a despontar nos inícios dos anos 90 em Cascais, e qual a importância desse contexto naquilo que vieram a ser os Primitive Reason durante todos estes anos?
A experiência foi única e difícil de se repetir, a meu ver, devido a uma conjunção de factores e circunstâncias atípicas que nos levaram àquele sucesso meteórico tão espontâneo. Cascais foi onde cresci e onde me vi imerso numa cultura deveras internacional pela atracção turística da cidade e por ser uma opção de residência preferencial para estrangeiros. Sou estrangeiro e estudei numa escola internacional na zona, onde conheci o Jorge Felizardo, baterista original e fundador da banda comigo e com o Brian Jackson, ele também estudante da escola Americana na altura. Juntamente com o Mark Cain, inglês que residia em Cascais e o Mikas Ventura, "o nosso Português", demos os primeiros passos como Primitive Reason nessa zona. Jorge Felizardo Brian Jackson Pondo a pergunta anterior noutros termos: o que vos separou de serem outros Delfins?
O que nos separou de sermos outros Delfins foi precisamente o espírito Primitive Reason que continua ainda bem vivo e nunca passou a fantasma do passado. Aquela nossa irreverência musical em conjunto com o nosso carácter contestatário foram o suficiente para aniquilar quaisquer comparações com outras bandas do momento. Não havia ponta por onde se pegar na altura de fazer uma análise comparativa, e teve de se aceitar os Primitive pelo que eram, sem comparações algumas. Normalmente diz-se que em equipa que ganha não se mexe, e na música são bastante raros os casos de bandas que consigam manter a sua identidade e qualidade quando passam por períodos de reestruturação. Apesar de terem sofrido constantes mudanças na sua formação ao longo dos anos, a essência dos Primitive Reason nunca se perdeu. Qual julgas ser a explicação para isto?
A única explicação que encontro é que sem a saída do membro responsável pela composição não se pode nunca perder a essência criativa. Sempre tive o cuidado de escolher membros que quiseram entrar no universo Primitive, por admirarem a sonoridade dos mesmos, e por se identificarem com o espírito da banda. Os Primitive Reason são um colectivo de mentes com visões muito parecidas, e há muitos músicos neste mundo por aí fora que se adequariam perfeitamente. Esta forma de pensar nos Primitive Reason como sendo um espírito que transcende qualquer membro que nele se encontre faz com que todos respeitemos a filosofia musical do grupo, sem nunca querer sobrepor a nossa visão pessoal à do grupo. Quantos mais discos fazemos, mais fácil fica integrar novos membros porque os exemplos de  possíveis caminhos musicais a tomar multiplicam-se. Podedizer-se que, de certa forma, tenho sido o guardião dessa filosofia ou espírito que é o fio condutor de todos os trabalhos Primitive Reason. O vosso estilo de fusão de géneros marcou uma geração que à data encontrava na vossa música algo de diferente e único do que se fazia na música em Portugal. Sentem esse tipo de legado, e que de alguma maneira abriram portas para outras bandas?
Sim, sentimos isso, e com muito orgulho. Demos o primeiro passo e fomos o primeiro exemplo de como uma banda completamente fora do comum pode vir a ter uma repercussão mediática completamente orgânica e sem nenhum tipo de maquinação. O que conquistou o nosso lugar na ribalta foi a nossa música e mais nada. Pode acontecer a qualquer banda e não tem fórmula alguma, tirando o trabalho duro, a dedicação total e o sacrifício pessoal. Num concerto em Junho de 2001. Para quem conhecer o tipo da foto, os Primitive perguntam isto na sua página de Facebook: "Paradise Garage… Can you name that crowdsurfer? Were you there? Tag and share…" Sentiam-se capazes de começar os Primitive Reason neste momento? Ou seja, consideram que o contexto daquela época era tão propício para a banda surgir que seria difícil replicar toda a importância que tiveram sob uma premissa diferente?
Se os Primitive Reason não existissem, inventava-os agora, é algo que levo dentro. Mas quanto ao contexto, toda aquela conjunção de factores que contribuíram para o nosso sucesso não existe neste momento. O país teria de estar numa fase de mudança, onde a procura de algo diferente estivesse muito mais presente na mentalidade de todas as pessoas, em todos os diversos níveis da sociedade. Seria portanto muito difícil de replicar toda a importância que tivemos da mesma forma, o que não exclui a possibilidade de ter uma importância paralela numa nova forma, como por exemplo sendo “a voz” de uma geração ou estrato social que procura distanciar-se por completo do status quo. Pergunto isto porque, na minha opinião, a cena musical portuguesa atravessou um período meio sombrio ali na viragem do novo milénio e nos anos que se seguiram, em que as únicas bandas nacionais que davam frutos e se mantinham frescas eram aquelas que já tinham um certo estatuto e afirmação — vocês sendo uma delas, e ocorrem-me também como exemplo os Mão Morta. No entanto, desde há alguns anos que ressurgiu um boomcriativo com muitas bandas novas a fazerem óptima música dos mais variados géneros. Como vês o panorama musical português actual e como o comparas com o início da década de 90?
Tens toda a razão na tua análise da viragem do milénio. Houve ali um abatimento dos princípios criativos instaurados nos anos 90 que permitiam a experimentação e cruzamento entre géneros musicais novos e mais antigos, muito por nossa culpa. Considero no entanto que, por causa da internet e do livre acesso a influências externas às dos taste-makers mediáticos, nasceu uma nova geração de artistas e músicos que utilizam como referência o mundo e não só os “veteranos da música” do seu próprio país. Isto trouxe uma abordagem fresca e nova que só veio beneficiar a música portuguesa. Os modos da música chegar ao público alteraram-se brutalmente ao longo destes vinte anos: basta um Bandcamp para meteres online tudo o que fazes e permitires que os teus ouvintes contribuam de forma directa para a tua actividade. No ano passado, com o Power to the People, vocês experimentaram com sucesso uma plataforma de crowdfunding que financiou a produção do disco — algo notável considerando que em Portugal esta ainda é uma estratégia relativamente marginalizada. É este o caminho?
Sim, sim e sim. Este é o caminho da liberdade artística.No mundo da música como o era há bem pouco tempo, uma banda ou um artista tinha de se associar a certos “investidores” para gravar, produzir e distribuir o seu disco. Pensando na produção de um disco como um investimento de várias partes implicadas, percebe-se que, no fundo, é um negócio e que os investidores querem interferir no desenvolvimento do “seu” produto e, por isso, muitas vezes desvirtuam a ideia ou conceito original. Tudo isto para a música ir da banda aos fãs. A arte e o dinheiro tinham de forçosamente passar por uma série de intermediários que, no caso da arte, tornava-se mais comercial, com mais hipótese de retorno para os investidores. No caso do dinheiro… bem, digamos que o músico era o último a comer e, normalmente, só sobravam migalhas. Ora agora, com a internet permanentemente na nossa vida quotidiana, as redes sociais, a facilidade de compra e pagamento na net e a simplicidade de processos, juntamente com o desenvolvimento de equipamento topo de gama de gravação “caseira”, uma banda pode fazer chegar a sua música aos seus ouvintes directamente, sem intermediários. Melhor ainda, os fãs podem pré-comprar o próximo trabalho de uma banda, assim dando-lhes os recursos necessários para a materialização do mesmo: tempo de composição, estúdio, mistura, masterização, grafismo, duplicação. Tudo isto custa, daí os tais “investidores” no passado. No backstage do Paradise Garage, em 2001. Fotografia por António Francisco Melão. Ao longo de 20 anos, e tendo em conta todas estas entradas e saídas de membros, nunca pensaram em desistir dos Primitive Reason?
Tantas e tantas vezes, mas nunca a sério. É normal às vezes desesperarmos — a vida de um artista não-comercial não é fácil — mas sem a música, para nós, a vida não tem sentido, e quando comparamos a liberdade artística e o crescimento pessoal associados a esta banda, todas as outras possibilidades acabam por nos parecer vazias e nada atractivas. Além de, a certa altura, se terem mudado para Nova Iorque, tiveram a possibilidade de tocar um pouco por todo o lado e em espaços absolutamente icónicos. Por exemplo, foram uma das últimas bandas a actuar no antigo estádio José Alvalade. Qual foi a situação mais inacreditável pela qual passaram?
Essa foi uma das tais situações mais incríveis. Eu cresci como sportinguista, vi muitos grandes jogos e concertos no antigo estádio e tive a honra de me despedir dele desde o palco. O simbolismo é sem paralelo. Também diria que tocar no CBGB’s em Nova Iorque foi um desses momentos — fomos a única banda de Portugal que por lá tocou. Ou então partilhar um palco com o David Bowie num Super Bock Super Rock, logo no início da nossa carreira. Para mim o David Bowie era dos poucos artistas comerciais que apostava na sua originalidade como trunfo. Há mais, muito mais… Sei que andaram na estrada com Misfits e têm boas memórias disso. Como foi a experiência?
Foi do mais lindo. Para eles éramos os “our Portuguese brothers” como nos chamavam todos os dias. Tinham um respeito enorme por nós e pelo que estávamos a fazer, e vindo duma banda icónica como os Misfits… que mais se pode dizer? Falemos do concerto de dia 6 de Março. O que podemos esperar desta celebração no São Jorge?
O dia 6 vai ser um dia que ficará para sempre na história dos Primitive Reason como um dos pontos altos da nossa carreira. Encaramos essa noite com uma verdadeira celebração de tudo o que vivemos desde os inícios, com muita positividade, boa disposição e vontade de partir a loiça toda — no bom sentido, claro. Ainda há não muito tempo no metro ouvi baixinho a “Seven Fingered Friend” a tocar no telemóvel de um tipo que não devia ter mais de 18 anos. Quem esperam ver neste vosso concerto: malta que vos ouviu em walkmans e discmans ou esta juventude das hashtags?
Sabes, tenho uma parecida. Outro dia eu e o Abel tocávamos um concerto acústico e vem ter connosco uma senhora que nos diz: “Vinha a passear com o meu filho de 13 anos e ele disse-me que os Primitive Reason estavam a tocar por perto porque ele reconhecia aquela voz. Eu vim pedir um autógrafo, porque também sou uma grande fã.” Gostaria de pensar que as três gerações Primitive estarão lá representadas, mas se há escola no dia a seguir não há nada a fazer… Se calhar temos de começar a fazer matinées também! Esperamos que o dia 6 seja um dia muito frutífero para todas as baby-sitters de Lisboa. Como convidados especiais já anunciaram a Ana Stillwell, Marta Ren e Nelassassin, para além de antigos membros de Primitive Reason.  Na minha opinião estas escolhas acabam por fazer todo o sentido, já que reflectem a diversidade e a convergência de estilos distintos que sempre vos caracterizaram — houve de facto essa vontade em trazer elementos novos e variados para a mesa e fazer do concerto algo único?
Sim, houve essa vontade e nós aproveitámos a oportunidade para fazer convites a quem achávamos que fazia mais sentido e a quem gostávamos de ouvir num contexto Primitive. Podemos esperar ainda mais confirmações? O Bobo Grey — que já foi encarnado pelo Ricardo Barriga — estará presente?
Desta feita o Barrigas não vai ser possesso pelo Bobo Grey, mas acho que alguém será. Mas isso, só no dia 6! Soube que nos vossos primeiros e caóticos concertos em Cascais chegaram a contar com versões tão inesperadas como a “Yellow Submarine” dos Beatles. Podemos esperar alguma surpresa do género no alinhamento?
Apesar de a ideia ser brilhante, não há espaço para mais no set. Cortámos a meio o alinhamento inicial porque estava demasiado longo e ainda assim estamos perto das trinta canções. Mas haverá surpresas, já que se vão poder ouvir canções que nunca tocámos ao vivo. O que poderemos esperar dos Primitive Reason para os próximos tempos? Marco já na agenda um novo “Celebration” para 6 de Março de 2034?
Marca, que vai sair bomba! Estamos perante um novo início de actividade desenfreada e está a acontecer um ressurgimento Primitive. O hiato acabou e nos próximos cinco anos, no mínimo, poder-se-á ouvir muita música dos Primitive Reason. Aqui estamos, vamos dando os nossos saltos para o “mundo lá fora”, levando a música portuguesa alternativa connosco, quais embaixadores da “outra música” que por aqui se faz. Neste ano de 2014 vamos ouvir bastantes colaborações com outros artistas no verdadeiro espírito colectivo Primitive, e, em 2015, um novo disco. Se não sair um novo disco em 2015 é porque este Power to the People transcendeu todas as expectativas e estamos ainda a mostrá-lo ao mundo — seria coisa boa. Um grande abraço a todos. Stay True, Stay Primitive! Obrigado, Guillermo. Fotografias cedidas por Primitive Reason