FYI.

This story is over 5 years old.

Desporto

Cristiano Ronaldo: retrato do artista quando jovem

Um predestinado. Caso houvesse dúvidas.

Quando penso no longínquo ano de 2002, reencontro um passado remoto em que o comum adepto de futebol tinha de penar depois de sucessivas movimentações no mercado de transferência sem poder fazer meia dúzia de buscas no YouTube. Imaginem uma realidade paralela em que as direções do Benfica ou do Sporting pudessem, então, teclar "Emanuele Pesaresi", ou "Dimitrios Nalitzis". Não seria esse um universo completamente distinto?

Publicidade

Quando os adeptos sportinguistas começaram a ouvir ecos das façanhas de um miúdo madeirense na equipa de reservas, a curiosidade de ver o tal craque na, digamos, "piscina dos grandes", era já precedida pela boa fama que outros jovens haviam granjeado na altura (basta pensarmos nos campeões Hugo Viana ou Quaresma). Portanto, enquanto não se estreasse, e à falta do necessário link de YouTube, o rapaz seria, simplesmente, apenas "mais um jovem talentoso".

De resto, o conceito de um ala rápido e virtuoso não era propriamente uma ideia nova no futebol português. Desde o "violino" Albano, até Futre, passando por Chalana, ou Simões, várias décadas de futebol confirmaram o estereótipo do português baixinho, ou magricela, capaz de meia dúzia de rasgos de génio — ou, no caso dos menos disciplinados, a rendição aos rodriguinhos e às construções na areia.

É aqui que a balança divide os putos com jeito dos predestinados. Com 17 anos apenas, Cristiano Ronaldo não só conseguia correr com bola a um ritmo estonteante como, para mal dos pecados da tradição tuga, tinha a ousadia de o fazer em direcção à baliza do adversário, em vez de driblar para trás. É claro que perdia muitas bolas em fintas inconsequentes. Dir-se-ia (e ainda se diz) que é um individualista, que tem uma concepção errada de um desporto que se quer colectivo. Há certos argumentos razoáveis que apoiam essa teoria, alguns dos quais os de John Carlin, que diz que o Ronaldo joga futebol como se fosse um tenista.

Publicidade

O brasileiro Gérson tinha toda a razão quando dizia que quem tem de correr é a bola e não o jogador. Mas, a verdade é que o individualismo pode ser sinal de um carisma musculado e de uma capacidade inata para liderar. Acho que nem é necessário relembrar como uma certa dose de individualismo foi o que nos permitiu ver aquele tal golo numa tarde escaldante de 86 no México.

Ainda assim, John Carlin diz que Ronaldo sofre de uma "estreiteza de vistas", ou seja, que só vê a equipa contrária. Podíamos começar uma enorme análise sociológica sobre o amadurecimento precoce e a "subida a pulso" de Cristiano, comparando o seu trajecto inevitavelmente individualista com o de Messi, o menino que o Barcelona adoptou e que foi ensinado a jogar o mesmo tipo de futebol (holandês, colectivista) pela mesma equipa, anos a fio.

Basta apenas ver o jogo do madeirense para entender tudo: há um dramatismo enorme, cada golo é um murro no estômago, muitos festejos têm uma enorme mala ostia incontida. Um golo de Messi é uma brincadeira sem malícia, uma marotice — alguém leva isso a mal? Um golo de Ronaldo é de uma violência feroz, dói como uma facada. E se alguém os sofre é porque merece, porque cada 90 minutos são os 12 trabalhos de Hércules e ai de quem se intrometa. Não admira que se contem pelos dedos das mãos os estádios em que Ronaldo é bem recebido.

Aurélio Pereira, o John Peel da bola, conta uma história interessante sobre o ingresso do menino Cristiano nos escalões jovens do Sporting e os traços que, prontamente, lhe saltaram à vista: "o desprezo ao erro", "a tenacidade", "a capacidade de jogar sobre pressão".

Publicidade

Os 30 anos de "banco" não deixaram espaço para dúvidas — foi isto que Alex Ferguson viu quando decidiu contratar o miúdo. E este não fez por menos. Quando chegou a Manchester, Cristiano pediu que lhe inscrevessem um 28 na camisola (o número que levava de Alvalade), mas Ferguson fez questão de que ele usasse o número 7, de Best ou Cantona.

Prescreveu-lhe uma dieta: cortou-lhe a margem de manobra para as brincadeiras com a bola até que isto fosse uma excepção, mas não lhe tapou a veia latina e esperou que ele desenvolvesse corpo de homem e um killer instinct em frente à baliza. Agora, no Real Madrid, driblar não significa muito menos do que atropelar os defesas adversários e os recordes de Di Stéfano, ou Hugo Sanchez, vão caindo como tordos.

A única vez que vi ao vivo Cristiano Ronaldo jogar tinha ele 17 anos. Foi num amigável contra o Celta de Vigo, no velhinho e lendário estádio de Balaídos. Para além de um golo de Luís Filipe, retenho na memória meia dúzia de corridas insolentes pela banda fora, umas mais bem sucedidas do que outras, seguidas pelo olhar complacente de Laszlo Bölöni. A estreia oficial acontecera no mês anterior contra o Inter de Milão — pode, por isso, dizer-se que joga sob pressão desde o primeiro minuto da carreira.

SPORTING — INTER DE MILÃO (14 DE AGOSTO DE 2002)

A cerca de meia hora do fim, o jogo não tem golos. Cristiano entra, mas não inventa nenhum milagre, o jogo fica-se pelo 0-0 e a segunda mão condena o Sporting a cair na Taça UEFA (anos negros do futebol português, em que o campeão não tinha direito a entrada directa nos grupos da Champions).

No entanto, nesse primeiro jogo, dois momentos ficam logo na retina. Uma arrancada pela ala esquerda em que torce os rins a Matías Almeyda e, depois, um rodopio sobre a linha lateral, deixando Di Biagio enterrado no relvado a pensar na invasão do Afeganistão, coisa que pedia um gif.

Publicidade

SPORTING — MANCHESTER UNITED (6 DE AGOSTO DE 2003)

Não há maneira de evitar este jogo. Poderia até escolher a excelente exibição e o bis contra o Moreirense, mas este é o primeiro grande momento definidor de toda a carreira — O'Shea que o diga. Estamos no início da época de 2003/04, o jogo é o da inauguração do novo Estádio de Alvalade,e o Manchester, encantado com aquilo que vê, abre o porta-moedas.

Uma direcção onde pontificava uma ganadaria de génios como Godinho Lopes, ou Carlos Freitas não pensa duas vezes e despacha o madeirense. A primeira vez que o Sporting jogou no novo Estádio foi a última, até ver, em que os adeptos viram o puto-maravilha de leão ao peito.

MANCHESTER UNITED — BOLTON (16 DE AGOSTO DE 2003)

Três dias (!) após a chegada a Manchester, Ferguson lança Cristiano em campo. A câmera não se cansa de focar o dorsal pesado que ele leva nas costas, enquanto pisa o relvado de peito aberto, tranquilo. Na primeira jornada, o United ganha apenas por um golo e o Bolton não desarma.

Durante os 30 minutos seguintes, Ronaldo ganha um penalty e ainda inicia a jogada de mais um golo. Old Trafford empolga-se e os comentadores relatam o resto do jogo de queixo cada vez mais caído: "Dear me… He's got all."

MANCHESTER UNITED — MILWALL (22 DE MAIO DE 2004)

Só o último jogo da época pode redimir o Manchester de um ano em que todos os grandes objectivos falham. A primeira parte revela um Ronaldo muito mais confiante e atrevido. Durante 40 minutos, pega constantemente na bola e parte para cima dos defesas do Milwall. Ainda antes do intervalo, marca o primeiro golo da tarde, de cabeça.

Desde jogadas como esta até ganhar o campeonato, a Liga dos Campeões, a primeira bola de Ouro e ter a Stretford End a gritar por ele, ou a fazer 80 mil aparecerem no Santiago Bernabéu para o ver dar toques, parece que foi um ápice.