Outro caso que me impressionou foi o de uma menina submetida à segunda cirurgia por uma doença crônica e que foi internada, anestesiada, aberta em centro cirúrgico e não pôde ter sua operação feita porque um material necessário quebrou durante o procedimento e não havia outro para substituição. A cirurgia foi interrompida sem a doença ter sido removida. Imaginem a situação do médico ao ter que explicar algo assim para a mãe. Que ela deve aceitar o inaceitável.É comum que caixas com pinças de cirurgias ou materiais para a realização de exames clínicos sejam comprados pelos próprios médicos e residentes. "Vaquinhas" entre os profissionais para continuar realizando determinados procedimentos são comuns, principalmente em ambiente de ensino.Os residentes são os médicos mais próximos dos pacientes do SUS. São eles que os visitam todos os dias, que agendam as cirurgias, que os orientam em pré e pós-operatórios. Criam laços, vínculos, ganham humildes e valiosos presentes. É durante a residência que moldamos a relação médico X paciente que desempenharemos ao longo da vida. É neste período que começamos a repensar as indicações de uma cirurgia de acordo com o contexto social da família envolvida; que passamos a prescrever os remédios de acordo com o que aquela família tem condições de pagar."Vejo muitos médicos com problemas psicológicos, deprimidos, esgotados. O sentimento prevalente é a desesperança e a exaustão"
O sentimento de impotência é constante, como quando cancelamos uma cirurgia para colocar outra mais urgente ou não pedimos todos os exames necessários por não estarem disponíveis. É uma tristeza que o profissional acaba absorvendo ao longo do tempo. Isso leva ao aumento da insensibilidade e da falta de empatia, endurece as relações humanas.Os médicos que trabalham em esquema de plantão (geralmente nas unidades de urgência ou em unidades fechadas como CTIs [Centro de Terapia Intensiva]) cumprem 12 ou 24 horas seguidas de trabalho – o que, somado ao estresse inerente à profissão e às péssimas condições de trabalho, leva a uma sobrecarga física e emocional intensa, favorecendo as falhas e colocando em risco a população. De forma geral, os médicos têm muitos vínculos empregatícios, trabalhos noturnos e diurnos no sistema público e privado. Costumamos dizer que não há desemprego na medicina, mas certamente há grande número de subempregos."É comum que caixas com pinças de cirurgias ou materiais para a realização de exames clínicos sejam comprados pelos próprios médicos e residentes"
Tenho dois vínculos de contratação temporária, um por situação de calamidade pública com o Ministério da Saúde e um por CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) com o município. O vínculo é frágil e nos impede muitas vezes de ter férias. São feitos novos contratos a cada seis meses. Assim o trabalhador não tem direito a se afastar do trabalho em licença de férias."Os médicos que trabalham em esquema de plantão cumprem 12 ou 24 horas seguidas de trabalho – o que, somado ao estresse inerente à profissão e às péssimas condições de trabalho, leva a uma sobrecarga física e emocional intensa"
Tive muitos colegas de turma que transbordavam ideologia na época de faculdade e foram decepcionados a tal nível que partiram para a medicina privada. Na faculdade, aliás, já sabíamos diferenciar os médicos que tinham perfil para trabalhar no SUS, que tinham disposição para fazer a saúde pública melhorar a cada dia. Todos tínhamos admiração por aquele ambiente de universidade pública, pelo alto nível de complexidade das doenças que chegavam ali. No SUS, poderíamos nos aprimorar nos casos mais difíceis, nas doenças raras e graves. Desafiadoras. Era raro ver médicos que trabalhavam exclusivamente em clínicas privadas. O reconhecimento profissional vinha do vínculo público de trabalho. Dava "status" trabalhar em hospital público."Ele [o ministro da saúde, Ricardo Barros] defende a criação de planos de saúde 'populares' para cobrir o vácuo deixado pelo SUS. É uma situação no mínimo questionável do ponto de vista do conflito de interesses."
A desorganização e a burocracia são grandes e letais. A produção nacional de medicamentos pela Biomanguinhos, farmácia da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que produz medicamentos de alta complexidade a baixo custo, é desfavorecida em detrimento da compra de medicamentos importados a um custo até 3000% mais caro. Isso ocorreu no caso da ribavirina, medicamento utilizado no tratamento das hepatites e comprado em regime emergencial de um laboratório privado, sendo que a incorporação da tecnologia já havia sido feita pelo SUS, capaz de produzir esta medicação por R$ 0,17.Pouco se fala também nas consequências a longo prazo do sucateamento das universidades públicas. Quem estudou em um Hospital Universitário sabe exatamente o diferencial que esta estrutura faz na graduação em medicina. O que mais tem me preocupado com a atual crise da saúde é qual será o futuro da medicina exercida no Brasil."Toneladas e toneladas de medicamentos e próteses perdem validade e são desprezados sem terem beneficiado nenhum paciente."
Os atuais alunos das mais respeitadas universidades estão recebendo diplomas tendo visto pouquíssimos doentes, tendo feito poucas anamneses, tendo palpado poucas barrigas. A crise fechou leitos, reduziu o número de servidores. Medicina se aprende vendo doenças, examinando doentes. Nossos médicos estão saindo mais fracos das universidades. Estamos formando uma geração deficiente no exercício da medicina e isso vai se refletir por muitos anos no tratamento que receberemos quando estivermos doentes. Eu, você, nossos filhos. Todos os médicos, sejam os que trabalham no sistema público ou privado, se formam no SUS. Com a crise, a qualidade desta formação está sendo esquecida e afetará direta ou indiretamente a todos os brasileiros nas próximas décadas.*O nome da entrevistada foi alterado para proteger sua identidadeSiga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram."Os atuais alunos das mais respeitadas universidades estão recebendo diplomas tendo visto pouquíssimos doentes, tendo feito poucas anamneses, tendo palpado poucas barrigas."