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crise dos refugiados

A integração de refugiados no mercado de trabalho pode ser a salvação da Europa

Fomos à Áustria ver como a Comissão Europeia está a lidar com o maior desafio dos nossos dias. Um trabalho muitas vezes invisível, mas que começa agora a dar frutos.
(Da esq. para a dir.) Abdel, Lorin e Assan, três casos de sucesso do processo de integração de refugiados no mercado de trabalho austríaco. Foto pelo autor.

Imagina que toda a tua vida até agora tinha sido passada a fugir da guerra. Desde que te lembras. De um país para outro, a deixar tudo para trás uma e outra vez, com excepção das memórias de morte e devastação.

Anas S. sabe bem o que isso é. Sabe melhor do que ninguém, aliás. Palestiniano, fugiu ainda criança com a família para a Síria. Da Síria saiu ainda antes do início da guerra civil, que se arrasta há oito longos anos, para ir trabalhar para a Líbia como assistente de engenharia civil numa empresa de construção. Já nunca mais conseguiu voltar ao país que, mais do que a Palestina considera seu, e viu-se mesmo forçado, mais uma vez, a fugir. Desta vez para a Europa. Sem nada. Chegou à costa grega como milhares e milhares de outros. No auge do que o Mundo vê como a "Crise dos Refugiados". Uma crise humanitária de proporções que não imaginávamos serem possíveis.

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Vê: "Os jovens refugiados sírios que estão a crescer num limbo"


Nós, as várias gerações de cidadãos globais que nascemos depois da II Guerra Mundial, nós os portugueses que crescemos depois da Guerra Colonial, nós os europeus que nos habituámos a viver numa Europa unida, não conseguimos compreender na totalidade - nem numa fracção, quanto mais na totalidade - o que, ano após ano, continuamos a ver nos nossos confortáveis e privilegiados ecrãs. Não conseguimos e muitas vezes não queremos. Porque é demasiado duro. Porque temos medo. Porque, muitas vezes, nem sequer temos a certeza de que lado devemos estar e esquecemo-nos que só devíamos estar de um. O da humanidade.

Tudo muito bonito dirás tu. Tudo já dito, escrito e reescrito. Pois. Só que neste caso nunca é demais e há sempre algo a acrescentar. Quanto mais não seja, porque bastas vezes nos esquecemos também de pensar nas vidas destas pessoas para lá daquele momento em que os barcos de borracha chegam à costa da Europa, para lá dos campos de condição humana abaixo de zero, para lá das imagens que nos chegam aos tais ecrãs confortáveis e, sobretudo, distantes.

Principalmente aqui, num Portugal que, apesar de aparentemente estar de portas abertas para acolher e receber e de o fazer com sucesso, tendo mesmo sido em 2016 um dos países que mais recolocaram refugiados na vida activa, não vivemos o impacto social brutal que outros países enfrentam e que têm sido um dos motores principais a alimentar o cada vez mais perigoso exacerbar dos extremismos por essa Europa fora. Alemanha, Suécia, França, Áustria, Finlândia, são alguns dos destinos mais procurados por quem foge em busca da sobrevivência, primeiro, e de uma vida melhor, depois.

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Anas S., uma vida a fugir da guerra. Foto pelo autor.

E é desse "procurar por uma vida melhor" que raramente nos lembramos. Não é só acolher, é preciso integrar e integrar não é meter pessoas em alojamentos precários e dar-lhes um subsídio de sobrevivência. Se te acontecesse a ti (e, acredita, nos dias que vivemos é sempre uma possibilidade em aberto), se tivesses de fugir para bem longe, sobrevivesses e chegasses a outro país, o que mais quererias era recomeçar a vida onde te viste forçado a interrompê-la. Estudar, trabalhar. Não tenhas dúvidas.

Para isso, no entanto, é preciso que esse país de acolhimento esteja preparado para te integrar. É preciso, por exemplo, aprenderes a língua e teres a resiliência para o fazer. É preciso que quem te acolhe saiba o que fazias antes, que competências tens. No papel isto parece tudo mais ou menos fácil. Uma pessoa acha que com mais ou menos tempo, mais ou menos burocracias tudo se faz. Só que não é bem assim. Há dificuldades de comunicação, há uma fuga que se deu sem olhar para trás, sem documentos, sem, obviamente, se pensar nos mais ínfimos detalhes.

E, claro, esta é a parte que normalmente fica de fora do voyeurismo mediático daquilo a que "confortavelmente" chamamos de "crise dos refugiados". É sempre mais fácil indignarmo-nos com o horror e não pensarmos em quem nos vários países da União Europeia está a trabalhar para ajudar estas pessoas a enfrentarem o desafio da integração. É a parte chata da coisa, não é? engravatados em escritórios de Bruxelas, a distribuírem dinheiro por entidades que desconhecemos, para fazerem um trabalho quase sem visibilidade nenhuma e que tendemos a ver como o fim de um problema, porque, simplesmente, deixamos de nos confrontar com ele. Deixamos de o ver na televisão e no feed do Facebook. Já está. Problema resolvido.

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Karim L. encontrou no fabrico de bicicletas uma nova vocação. Foto pelo autor

Só que não é bem assim. Voltemos a Anas S., palestiniano, sírio de coração, 33 anos, a fugir da guerra desde criança. Há três anos chegou à Áustria, à pequena cidade de Dornbirn, junto às fronteiras com a Alemanha e com a Suíça, depois de atravesar os balcãs, a pé. Uma história que prefere não detalhar, porque apesar de já falar alemão, diz que não é o suficiente para conseguir contar exactamente o que viveu. O sorriso franco que ostenta desaparece quando lho perguntam, até porque, garante, agora que pode ver os seus dois filhos a finalmente viverem em paz, recordar esses momentos não é opção.

Anas é um dos refugiados que está plenamente integrado no mercado de trabalho austríaco graças ao sucesso de um programa da Comissão Europeia que financia entidades em países como a Áustria e a Finlândia com o objectivo de apoiar a a integração social de refugiados e migrantes. O InvestEU tem objectivos de longo prazo e, graças ao sucesso que está a ter, pode vir a estender-se a mais países da União Europeia numa altura em que a migração continua a mostrar-se um desafio que exige não só coordenação, como capacidade de percebermos os benefícios dessa migração para lá dos óbvios constrangimentos.

No chamado Plano Juncker para o Investimento Europeu, a migração faz parte do top 10 de prioridades e o emprego, a educação, o treino vocacional e a inclusão social são os pilares e os desafios-chave. A Europa precisa de mão-de-obra qualificada em muitos sectores e é obrigatório percebermos que o futuro passa por olharmos para a crise dos refugiados como uma oportunidade para garantirmos aquilo que sempre vimos como o "sonho europeu". E integrarmos estas pessoas, é meio caminho andado para resolvermos o que ainda vemos como um problema. Fazê-lo não é gastar dinheiro, é, isso sim, investir.

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Lorin R., mãe solteira de 29 anos, está a caminho de conseguir a integração plena no mercado de trabalho. Foto pelo autor

Em Dornbirn, estão a ser dados passos de gigante nesse sentido. Podem ainda não ser muitos, mas os casos de sucesso como o de Anas não podem ser menosprezados. O trabalho que encontrou na Simplon Bikes, uma fábrica de bicicletas feitas à medida e que está a expandir-se internacionalmente, devolveu-lhe a dignidade. A vontade de viver e de contribuir para a mudança.

Tal como ao seu colega Abdel K., 30 anos, dois filhos, natural de Homs, na Síria. Informático de formação, fugiu por entre um horror inimaginável. Quatro semanas a pé da Grécia até finalmente chegar à Áustria. Através do projecto start2work, dinamizado em Dornbirn pela organização social local Caritas Vorarlberg, com um apoio do Fundo Social Europeu de quase 800 mil euros e que começou em 2016, aprendeu alemão, tirou um curso profissional e redescobriu-se na Simplon. "Adoro trabalhar com bicicletas, construi-las, vê-las sair da fábrica para os clientes. Sinto que o meu trabalho é útil e quero continuar a aperfeiçoar o que faço. nunca na vida pensei que algum dia estaria nesta situação e ter descoberto algo que gosto mesmo de fazer, foi uma grande alegria", diz-me Abdel, num quase suspiro de alívio.

O mesmo alívio que se sente quando se fala com Lorin R., 29 anos, também ela síria, mãe solteira e, claro, com ainda mais dificuldades em integrar-se quando finalmente chegou a solo europeu fugida de Homs. Lorin embarcou na mesma viagem de Abdel em busca da integração. As feridas, no entanto, são difíceis de sarar e a tristeza e insegurança ainda estão muito presentes no seu rosto fechado. Mas, está melhor, garante, a síria, que, através de uma medida denominada Serviço Público de Emprego - Mulheres na Tecnologia, também dinamizada no âmbito do start2work, está agora a finalizar um curso de optometria e prestes a entrar no mercado de trabalho. "Sinto que agora sim posso recomeçar, que posso dar um futuro à minha criança e que não sou um estorvo", diz Lorin.

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E é este o nosso desafio comum. O desafio europeu. Olharmos de frente para outras pessoas. São pessoas, não são empecilhos. E isto não é uma corrida de 100 metros. É uma maratona sem fim à vista.


A VICE PORTUGAL viajou a convite da Comissão Europeia.

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