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Fui Torturado no Sri Lanka por Abrigar Tigres Tâmeis

“Pugal” é um tâmil de 27 anos do leste do Sri Lanka. Ele teve o asilo concedido pelo Reino Unido depois de ser torturado em seu país natal e nos contou sobre os abusos que sofreu nas mãos de pessoas que ele acredita serem soldados sob o comando do...

O primeiro-ministro australiano Tony Abbott (foto via).

Semana passada, o governo australiano decidiu não copatrocinar um inquérito da ONU sobre os abusos contra os direitos humanos no Sri Lanka. O governo do Sri Lanka louvou essa decisão “corajosa” e o secretário da defesa cingalês, Gotabaya Rajapaksa, posou para uma foto com o ministro da imigração australiano Scott Morrison, entregando a ele uma caixa especial de chá Dilmah.

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O acordo – que essencialmente é o governo australiano fazendo vista grossa para os cidadãos torturados no Sri Lanka, entre outros abusos – foi criticado por colocar a Austrália “no mesmo time que China, Rússia e Congo, que se opuseram à investigação”. O acordo aparentemente se baseou nas relações excelentes entre os dois países, o que – claro – não justifica nada.

A notícia veio alguns meses depois que o primeiro-ministro Tony Abbott defendeu os registros de direitos humanos no Sri Lanka, afirmando que “às vezes, em circunstâncias difíceis, coisas difíceis acontecem”. Essa apatia ética não é exatamente uma surpresa vinda de um governo que vem adotando uma postura cada vez mais militarizada, para “defender” o país de qualquer pessoa de pele escura, trancafiando refugiados e pessoas que buscam asilo em campos de detenção no exterior.

Muitos dos supostos abusos contra os direitos humanos aconteceram durante a guerra civil no Sri Lanka, que acabou em 2009 quando as forças do governo venceram os Tigres de Liberação do Tamil Eelam (LTTE em inglês, mais conhecidos como Tigres Tâmeis), depois de mais de duas décadas de conflito. O fim do combate também acabou com as esperanças dos Tigres de estabilizar um estado tâmil autônomo – ou, pelo menos, semiautônomo – no norte e leste da ilha.

Anbu, uma vítima de tortura de 36 anos, mostra as cicatrizes deixadas por um ferro em brasa.

Os Tigres vêm sendo ligados a vários massacres e assassinatos, e uma fonte me contou que durante a campanha de ataques a ônibus na capital da ilha, Colombo, mães e pais tentavam viajar separados, para evitar que os filhos ficassem órfãos caso o ônibus em que eles estivessem explodisse. Claro, o inquérito da ONU não ocorrerá somente sobre as atividades dos Tâmeis – ele também vai investigar supostos abusos cometidos pelo governo do Sri Lanka, e é por isso que o conluio da Austrália abalou tanto os críticos.

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“Pugal” (que pediu para ter seu nome mudado para proteger sua família no Sri Lanka) é um tâmil de 27 anos do leste do Sri Lanka. Ele teve o asilo concedido pelo Reino Unido depois de ser torturado em seu país natal e agora está recebendo tratamento da organização Freedom from Torture. Eu me encontrei com ele no escritório da organização em Finsbury Park, onde ele me contou sobre os abusos que sofreu nas mãos de pessoas que ele acredita serem soldados sob o comando do governo do Sri Lanka. Isso é o que ele tem a dizer:

“Pugal” no escritório da Freedom from Torture.

Meu irmão tinha mandado duas pessoas para Colombo. Eu os hospedei na minha casa, os ajudei e cuidei deles entre 2008 e 2009. Quando eles chegaram, meu irmão me disse que eles eram estudantes e eu acreditei. Mas, depois de dois meses, encontrei armas. Eles tinham pistolas e também algo que parecia uma bomba – eles eram membros do LTTE.

Assim que a guerra terminou em maio de 2009, o governo começou uma grande campanha para prender pessoas que ajudaram os Tigres em Colombo. Eles estavam vasculhando todas as casas tâmeis para ver se alguém tinha chegado recentemente. Durante essas buscas eles me levaram para a polícia pela primeira vez. Eles verificaram todos os registros, mas nos mandaram de volta, dizendo que estava tudo em ordem.

Depois disso, os dois caras do LTTE saíram da minha casa, mas não me disseram nada. Eu não sabia como contatar meu irmão. Esses caras tinham ido embora sem me dizer nada, e percebi que estava correndo algum tipo de perigo, então comecei a dormir na casa de uma tia num subúrbio de Colombo. Conversei com um pastor tâmil na igreja que eu costumava frequentar e discuti esse problema com ele.

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Ele me alertou: “Por que você não vai embora daqui? Por que você não sai do país?” Logo me candidatei para um visto de estudante, para poder vir para Londres e estudar, mas fui recusado.

Manifestantes tâmeis na Praça do Parlamento (foto via).

Na segunda vez em que me candidatei, consegui o visto, mas na noite de 1º de abril, eles vieram e bateram na porta da minha tia. Meu tio perguntou “Quem é?” e ele disseram “A polícia”, mas eles eram do exército. Eles verificaram os documentos de identidade de todo mundo. Eles olharam o meu e disseram que eu tinha que ir com eles para responder algumas perguntas.

Meu tio perguntou: “Para onde vocês estão levando ele?”, mas eles me deram uma coronhada de AK-47 no peito e eu caí contra o muro. Eles torceram meu braço atrás das minhas costas e me jogaram no jipe deles. Depois me vendaram.

Eles me levaram para algum lugar, não sei aonde. Eles tiraram minha venda e vi que outras cinco pessoas estavam lá. Um dos caras era o membro do LTTE que tinha ficado na minha casa. Ele estava todo ensanguentado e era óbvio que ele tinha sido espancado. Depois três caras armados entraram e me tiraram da cela. Eles me levaram para uma sala próxima. Eu sabia o que ia acontecer comigo, porque todo mundo sabe o que acontece com os tâmeis nessa situação.

Eles tiraram minha roupa e amarraram minhas mãos numa barra de metal. Eles começaram a me fazer perguntas e a me bater. Eles usaram vigas de ferro e canos de PVC cheios de areia e terra. Doía muito, mas não deixava marcas. Foi a primeira vez que fui espancado na vida. Eu não conseguia aguentar a dor. Eu estava gritando. Chorando. Foi a primeira vez na vida que vi não um homem na minha frente, mas um animal. Implorei que eles parassem, mas eles não pararam. Eles não eram humanos. Eu me senti sem vida. Depois de tudo, me levaram de volta para a cela, mas não me desamarraram. Minhas costas latejavam de dor. Eu me encostei na parede e pressionei minhas costas nela para amortecer a dor.

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Na manhã seguinte, eles vieram de novo. Colocaram um número no meu pescoço, tiraram minha foto e minha digital. Me levaram de volta para a cela, me desamarraram e me deram um pão e uma caixa de leite. Naquela noite, três homens do exército vieram me pegar. Achei que ia morrer.

Um homem ligou um aparelho de ferro, se aproximou de mim e disse: “Se você não disser a verdade, vou te queimar”. Eu não sabia o quanto dizer a ele – só continuava repetindo que não tinha feito nada. Mesmo assim, ele queimou minha mão. A cada pergunta, ele me queimava na coxa.

Fui torturado por mais de uma semana, e em três ocasiões diferentes eles me torturaram sexualmente. Eles me estupraram e colocaram seus pênis na minha boca. Eles estavam totalmente bêbados, todos os três.

Fiquei só de cueca o tempo todo que fiquei lá.

“Pugal.”

No último dia, dois oficiais pediram para que eu saísse. Eles me vendaram e me colocaram num veículo. Pensei: “OK, eles estão me levando para dar cabo em mim”. Como sou cristão, comecei a rezar. Eu tinha certeza de que ia morrer. Rezei para Deus dizendo “Te entrego meu espírito – agora vou morrer”.

De repente, a van parou. Eles me fizeram ajoelhar, então pensei que iam me matar ali. Mas eles só me tiraram do veículo e me colocaram em outro carro.

Os caras que estavam nesse segundo veículo tiraram minha venda. Para minha surpresa, o homem que tirou minha venda era um amigo do meu sogro. Eles tinha entrado em contato com um agente [um contato que pode subornar oficiais e organizar viagens para o exterior] e deram a ele uma grande quantia para me tirar de lá. No total, os subornos – incluindo o que dei ao meu agente para chegar ao Reino Unido – foram de cinco milhões de rúpias (mais de R$92.000). No Sri Lanka, isso são as economias de uma vida inteira – o suficiente para comprar uma casa modesta. As pessoas que não têm dinheiro para o suborno morrem.

Tradução: Marina Schnoor