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Como infligir dor física a idiotas

Importante em qualquer situação do quotidiano.

Ilustração por Thomas Slater O “Patrão” é aquilo a que a minha mãe chamaria de “horrível homenzinho”. Este gajo não é o meu patrão, mas, daquilo que eu percebi, faz algo que é considerado importante numa agência publicitária perto do restaurante onde trabalho. Talvez ele pertença a uma daquelas novas raças de publicitários, que parecem ter inventado a ironia e a auto-confiança, levando a descoberta para os ecrãs das televisões, preenchendo-os com presunção sem fim, com punhetas fúteis que — acho eu — foram criadas para me vender algo. Para ser sincero, não tenho qualquer ideia sobre o que se passa no dia-a-dia do emprego destas pessoas. Só gostava que este gajo deixasse de vir ao restaurante. Ele usa óculos de massa, tem umas mãos nojentas e está sempre com uma daquelas camisas ridículas, todas pretas mas com o colarinho e os punhos brancos. É demasiado vaidoso para ser gordo, mas, em vez disso, tem um ar inchado. O seu corpo está assim, muito provavelmente, por culpa de anos e anos da combinação "nenhum trabalho a sério" e "muito dinheiro ao fim do mês". Numa destas noites, o gajo veio cá jantar com os seus anões favoritos. Víboras cheias de presas, que arrastam o seu corpo pelo Soho. Às sextas, um grande grupo desta gente junta-se para o almoço de equipa. Por trabalharem numa agência publicitária, são tolos e felizes e, claro, todos usam roupas coloridas. T-shirts de uma só cor e grandes relógios, para os rapazes, e roupas abaixo do tamanho apropriado, para as meninas. Formam uma panóplia colorida na parede lateral do restaurante, naquela parte mais próxima da casa-de-banho. Há pestanas falsas em todo o lado, tornando o espaço em que trabalho numa casa de borboletas tropicais. Como se todas as borboletas tropicais fossem punheteiras mentais. Já tinha esperado pelo “Patrão” dezenas de vezes e nunca é fácil. O tipo não cumprimenta ninguém, nunca nos olha na cara e é sempre hediondo. É tão agressivo e propositadamente desagradável que, como um vilão da banda desenhada, deve chorar por dentro. Imagino-o sozinho em casa, nu em frente ao espelho, a soluçar perante a imagem de si próprio. O seu comportamento nesse dia pareceu-me habitual. Estava cansado. Demorou meio século, mas parece que finalmente percebeu que é o maior idiota da sala. Não houve, todavia, nenhuma mudança comportamental. Ele continuava a ser um parvalhão. “Ei, empregado!”, grita, “onde é que caralho está a nossa comida?” Dirijo-me, calmamente, até à mesa. “A sua comida? Caro senhor, vocês fizeram o pedido há três minutos. Onde é que acha que está a comida? Está a ser feita.” Nesse momento, a minha colega deixa uma garrafa de champanhe na mesa ao lado e diz-me que os clientes ligaram previamente, pedindo que a garrafa já lá estivesse, aberta e preparada, quando eles chegassem. O “Patrão” levanta o sobrolho. “O que é aquilo?”, aponta na minha direcção. “Por que é que não temos algo do género?” Expliquei-lhe que era champanhe e que ele não tinha nenhuma simplesmente porque não tinha solicitado. “Bem, então traz-nos uma”, diz. “Nós merecemos.” Os anões replicam: “Siiiiiiiim!” Enquanto estou a preparar o vinho na cozinha, consigo ouvi-los a cochichar. Quando regresso, o “Patrão” está a sorrir para os seus compinchas, que evitam olhar para mim e para a garrafa. O que me deixa pensativo. Ao despejar-lhe a bebida no copo, lembro-me de que nunca lhes perguntei se queriam água. Pergunto ao “Patrão”, em jeito de desculpa, se ele queria água da torneira, mineral, ou com gás. “Tanto faz”, respondeu ele, mandando-me embora com um gesto. Digo-lhe que as coisas só funcionam bem se for ele a escolher. O gajo revira os olhos. “Água com gás, ok?” Há um barulho atrás de mim. Olho e vejo o Farruh, o meu colega uzbeque, a cair pelas escadas abaixo. A malta que pediu champanhe antecipadamente chega e o gerente guia-os até à mesa, enquanto o Farruh se tenta recompor. Ao despejar-lhe água no copo, pergunto ao “Patrão” o que é que eles estão a celebrar. Inchado de orgulho, ele põe-se de pé, levanta o copo no ar e anuncia que a empresa ganhou, na noite anterior, o prémio de melhor campanha publicitária de sempre, no Prémios Média Ninguém Quer Saber, ou assim. BANG! A rolha da garrafa que o Farruh está a abrir atinge-o em cheio. O Farruh está perdido, a tentar lutar contra a situação. Tenta agarrar o pescoço da garrafa, mas a pressão aumenta. Um fluxo de chamapanhe eleva-se como uma cobra e começa a disparar pela sala. O Farruh contorce-se, como uma mangueira: "AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHH!!!!!" É como se fosse Natal por estes lados, toda a gente tem direito a alguma coisa. A malta começa a esconder-se debaixo das mesas para evitar o fluxo da champanhe. Só se vêem coisas a partir, álcool a cair do tecto e, depois, instala-se o silêncio. No meio deste nevoeiro de campo de guerra, ouve-se qualquer coisa por baixo da mesa 12. O "Patrão levanta-se, com o seu colarinho branco já vermelho de sangue. Cospe um dente que coloca na mesa. Talvez eu estivesse errado sobre a cena do espelho em casa: este homem nunca chorou. Até agora, a sangrar e ferido, não mostra qualquer vergonha. É uma caricatura da desgraça alheia. Olhando-me nos olhos, pela primeira vez de sempre, limpa a boca na parte externa da mão, cospe, fecha o punho e diz: "Então, empregado, onde é que caralho está a nossa comida?"